Os contratualidas: Hobbes, o autoritário

03/06/2020

Em países com mais ou menos riqueza, desde que se viva com razoável distribuição de renda e oportunidades sociais, vive-se em paz. Não é o nosso caso. No Brasil, vivemos espantosas dessemelhanças. Somos algo assim como dois povos, um de costas para o outro, em uma mesma pátria.

Tornamo-nos um lugar de conflitos. Já banalizados, os fatos estão fartamente estampados na mídia; não obstante, provocam pouco interesse. Só quando explosões conflituosas são feitas em espetáculo midiático, fala-se, e aí com surpresa, medo e indignação, da agressão caótica que constrange.

Ora, a surpresa é hipócrita e a indignação é cínica. Para olhos de querer ver, a condição de brutal exploração na qual se desenvolveram as relações sociais brasileiras tem longa e sabida história e não poderia resultar noutra coisa que não fossem a violência e o medo que desconfortam.

Nessas ocasiões, muitos pedem abertamente por punição (e não tão poucos sugerem extinção) aos imputados como bandidos. Essa “proposição” é organizada por parte substancial da mídia, aquela popularesca que vende discursos de bravata a gente ignorante, odienta e justiceira.

A questão é mais complexa do que o encarceramento geral, ou mesmo que a eliminação de alguns. Afinal, já somos campeões de ambas as coisas. Toda consciência sensata sabe que o Brasil tem que compor o seu nunca realizado contrato de convivência e nele há que incluir os deixados à margem.

Se olharmos a geografia dos excluídos: favelas, morros, alagados, palafitas, periferias, quebradas, veremos os pobres, os filhos dos escravizados, dos indígenas aculturados, dos imigrantes malogrados; veremos os migrantes: os boias-frias, os sem-terra, os sem-teto; veremos os sujeitos produzidos e reproduzidos nessas circunstâncias expulsoras.

Criamos esta nação de miséria. A essa nação miserável foi imputada, ademais da responsabilidade por sua condição, a condição de responsável pelas circunstâncias históricas que lhe aniquilou recursos e chances, como se ela fosse voluntária da própria pobreza. Evidente, em se pensando e agindo assim, assim persistirão os efeitos desse desajuste.

Os aparatos de repressão até contêm, mas não solucionam a pressão dos excluídos. Já não há alternativa que não seja admitir a existência e reconhecer, ainda que a contragosto, o direito de existir de todos. E existir é, ou há de ser, viver dentro do mínimo considerado civilizado que a sociedade tem condições – logo, obrigação ética – de proporcionar.

Proporcionar não como concessão de classe privilegiada, mas como contrato entre cidadãos iguais. Dos nomeados contratualistas, Thomas Hobbes (1588-1679) faz o elogio da autoridade, mas relaciona condições para o humano sair do estado de natureza e viver sob a ordem de um contrato social. Conforme O Leviatã (Os Pensadores, Abril Cultural):

“A diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar” (p. 75). “A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples natureza, na qual todos os homens são iguais” (p. 91).

Ora, este é o sentido do contrato social, ou do abandono da vida bruta porém igualitária, para investir na vida comum em harmonia: segurança e condições de igualdade: “Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros” (p. 92).

O Estado é uma invenção dos homens para possibilitar-lhe consensualmente uma existência segura. “Por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as outras comodidades da vida” (p. 200). Aos que, no Estado brasileiro, gozam de privilégios, é já passada a hora de ceder um tanto, para haver paz.

Por bem ou por mal, todos querem – com o direito de querer – a sua porção das tantas coisas boas que este país oferece. Os excluídos podem buscar legitimamente o que Hobbes nomeia estado de guerra: “Numa tal situação, não há sociedade. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (p. 76). Estamos advertidos.

 

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