Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
Os apartes, compreendidos como interrupções feitas durante a fala de um orador no Tribunal do Júri, desempenham um papel controverso no processo penal brasileiro. Historicamente, foram vistos como uma forma de garantir o contraditório e a interação entre as partes. Contudo, a reforma processual penal promovida pela Lei 11.689/08 trouxe limites rigorosos a essa prática, buscando equilibrar a dinâmica dos debates com a preservação da ampla defesa e da ordem processual.
O que se questiona é em que medida os apartes, quando praticados de forma indiscriminada ou fora das hipóteses previstas em lei, podem comprometer a plenitude de defesa e a legitimidade do julgamento no Tribunal do Júri? A resposta a essa pergunta exige uma análise detalhada do atual regramento processual, especialmente os artigos 480 e 497 do Código de Processo Penal, e da atuação do juiz-presidente como mediador das interrupções.
O objetivo principal deste artigo é examinar a regulamentação dos apartes no Tribunal do Júri, com base nas alterações introduzidas pela Lei 11.689/08, identificando as hipóteses legais de admissibilidade e os impactos de sua aplicação na prática. Adicionalmente, busca-se compreender o papel do juiz-presidente na condução das interrupções e na garantia de um julgamento justo.
A hipótese que norteia este estudo é a de que a limitação rigorosa dos apartes, conforme previsto no Código de Processo Penal, promove maior equilíbrio nos debates do Tribunal do Júri, assegurando a plenitude de defesa e a imparcialidade do julgamento. Por outro lado, a prática de apartes fora das hipóteses legais pode configurar cerceamento de defesa ou tumulto processual, comprometendo a decisão dos jurados e, consequentemente, a validade do julgamento.
Dessa forma, o presente artigo busca contribuir para o entendimento das implicações jurídicas e práticas dos apartes no Tribunal do Júri, analisando sua regulamentação à luz das garantias processuais fundamentais e da atuação ética e combativa das partes. Para isso, este estudo adota uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, fundamentada em uma análise documental e bibliográfica. A pesquisa concentra-se na regulamentação dos apartes no Tribunal do Júri, com base na legislação vigente, especialmente a Lei 11.689/08, e nos artigos 480 e 497 do Código de Processo Penal. Além disso, busca-se compreender os impactos dessa regulamentação na prática processual e nas garantias fundamentais das partes.
Com a reforma processual trazida pela Lei 11.689/08, a interrupção da fala de um orador pela parte adversa, conhecida como aparte, passou a ser restrita a situações específicas e excepcionais no Tribunal do Júri (1). O artigo 480 do Código de Processo Penal estabelece que “a acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento, e por intermédio do juiz-presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados, solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado".
Em síntese, quando uma das partes está utilizando seu tempo de fala, seja na sustentação inicial, na réplica ou na tréplica, sua interrupção só é admitida em duas situações: a) para indicar a página do documento mencionado ou lido, a pedido da parte adversa ou dos jurados, e b) para os jurados solicitarem esclarecimentos sobre um fato mencionado pelo orador, sempre por intermédio do juiz-presidente (2).
Essas regras demonstram a necessidade de preservar a integridade do momento de sustentação oral, que representa um esforço significativo de organização e argumentação por parte do orador. A introdução do artigo 497, inciso XII, do Código de Processo Penal reforça essa proteção, permitindo que o juiz-presidente autorize uma intervenção de até três minutos, desde que justificada, e acrescente esse tempo ao total da fala do orador original, independentemente do uso completo do período concedido ao aparteador (3).
Ao juiz-presidente cabe o papel de avaliar a pertinência e a conveniência das interrupções solicitadas, com o poder de rejeitar aquelas que sejam despropositadas ou destinadas a desestabilizar a parte que está no uso da palavra. A condução dos debates no Tribunal do Júri segue uma ordem rigorosa: primeiro a fala da acusação, seguida pela defesa, e, se necessário, pela réplica e tréplica. Assim, os apartes são permitidos apenas dentro das condições previstas na legislação, visando manter a ordem e a clareza dos debates (2).
O abuso de apartes ou interrupções indevidas pode comprometer a validade do julgamento, caracterizando cerceamento do direito de defesa ou de acusação. Quando isso ocorre, é essencial que o juiz-presidente intervenha para restituir o tempo ao debatedor prejudicado, garantindo a observância das garantias processuais fundamentais. Esse cuidado é necessário para preservar a equidade do processo e assegurar que as decisões dos jurados sejam baseadas em argumentos devidamente apresentados e compreendidos, dentro dos limites legais (4).
O Tribunal do Júri exige que todas as partes mantenham um comportamento ético, respeitoso e alinhado às finalidades da justiça, sem promover tumultos ou desrespeitar os oponentes. O papel do juiz-presidente, nesse contexto, é assegurar que os debates se desenvolvam de forma organizada, protegendo a integridade do julgamento e a confiança nas instituições judiciais (3).
A proteção contra interrupções não autorizadas durante a fala da defesa ou da acusação no Tribunal do Júri é essencial para assegurar as garantias processuais fundamentais. Essa medida inclui a restituição do tempo perdido ao debatedor prejudicado, reforçando o devido processo legal. Isso se fundamenta no reconhecimento de que, para a efetividade das garantias penais, não basta confiar exclusivamente à jurisdição a aplicação do direito em matéria criminal. Ao longo da história, o amplo poder concedido aos magistrados mostrou-se insuficiente para proteger a liberdade individual, permitindo que decisões judiciais fossem influenciadas pela vontade pessoal, em detrimento da lei (5).
Assim, é indispensável que o processo penal seja estruturado para garantir a integridade dos direitos fundamentais, conferindo às partes a plena utilização dos instrumentos processuais previstos em lei. Tal estrutura deve permitir uma participação ativa na formação do convencimento de um tribunal imparcial, fundamentado em critérios objetivos e controláveis, dentro dos limites processuais (5).
O plenário do Júri, por sua vez, deve ser um espaço reservado para profissionais que atuem de forma ética, digna e respeitosa. Acusação e defesa têm o dever de apresentar argumentos objetivos, que esclareçam os jurados sobre os fatos em análise, sem recorrer a atitudes desrespeitosas ou tumultuadoras que prejudiquem o andamento dos trabalhos e a confiança nas instituições judiciais (3).
Os apartes, embora regulamentados pelo Código de Processo Penal, podem ser utilizados de forma indevida, gerando prejuízos à defesa ou à acusação. A lei estabelece, de forma taxativa, as hipóteses em que o orador pode ser interrompido, como nos artigos 480 e 497, inciso XII. Nessas situações, a interrupção deve sempre ser intermediada pelo juiz-presidente, que possui o papel de avaliar a necessidade e a conveniência da intervenção, impedindo abusos que possam confundir os jurados ou atrapalhar o raciocínio da parte que está no uso da palavra (2).
A preservação da palavra do orador é essencial para garantir que os jurados compreendam plenamente os fatos e para manter a legitimidade do julgamento. O juiz-presidente tem o dever de impedir que intervenções injustificadas tumultuem o processo, protegendo o equilíbrio e a imparcialidade do Júri. Esse cuidado reflete a necessidade de um processo penal que respeite as garantias das partes e a seriedade dos trabalhos realizados no plenário (5).
Dessa forma, a atuação combativa e séria de acusação e defesa, pautada no respeito e na objetividade, é indispensável para o bom funcionamento do Tribunal do Júri. A prática de apartes indevidos não só prejudica a parte adversa, mas também compromete a imagem e a confiabilidade do sistema judicial perante a sociedade. Assim, o controle rigoroso das interrupções contribui para a promoção de julgamentos justos e para o fortalecimento das instituições democráticas (3).
No Tribunal do Júri, espera-se que advogados e representantes do Ministério Público atuem de maneira combativa, séria e respeitosa, sempre pautados pela racionalidade e comprometidos com a apresentação de suas teses aos jurados. Essa postura é essencial não apenas para garantir a credibilidade dos argumentos expostos, mas também para preservar a dignidade do Poder Judiciário e a confiança que a sociedade deposita no sistema de justiça (1).
A cordialidade e o respeito mútuo entre as partes não são meros formalismos, mas sim atos que engrandecem o julgamento e refletem a seriedade com que se tratam as questões submetidas ao Júri. Por outro lado, estratégias que visam criar tumulto ou desordem no julgamento não prejudicam apenas a parte adversa; elas comprometem a integridade do próprio processo e desrespeitam os cidadãos responsáveis por emitir o veredicto. Tais práticas configuram um desprestígio ao papel central dos jurados no sistema democrático de justiça, além de desvirtuar os princípios éticos que devem reger a atuação no Tribunal (2).
Piero Calamandrei (1), ao refletir sobre o comportamento inadequado nas cortes, traça uma analogia que ilustra o papel do profissional que age desrespeitosamente no tribunal. Ele compara tal comportamento ao de um camponês que, ao perder algo, em vez de recorrer à súplica devota, recorre a ofensas e blasfêmias contra Santo Antônio, na esperança de intimidar o santo a agir mais rapidamente. Esse exemplo revela que atitudes impositivas e desrespeitosas não apenas falham em atingir seu objetivo, como também comprometem a imagem e a eficácia das instituições envolvidas.
A ampliação dessa perspectiva no Tribunal do Júri ressalta a importância de uma atuação ética e equilibrada por parte dos profissionais envolvidos. Não se trata apenas de respeitar formalidades, mas de compreender que a lisura e a civilidade no discurso são fundamentais para garantir que os jurados possam analisar os fatos de maneira objetiva, sem serem influenciados por desordem ou manipulações emocionais. O comportamento das partes deve ser direcionado ao esclarecimento racional dos jurados, ajudando-os a formar suas convicções de maneira fundamentada e justa (2).
Portanto, é imperativo que o Tribunal do Júri seja um ambiente de respeito mútuo e profissionalismo. A atuação desrespeitosa ou tumultuada não apenas subverte os princípios do contraditório e da ampla defesa, mas também enfraquece a confiança da sociedade nas decisões judiciais. Ao contrário, uma conduta respeitosa e objetiva reafirma o papel do Poder Judiciário como guardião da justiça e promove o fortalecimento das instituições democráticas.
A regulamentação dos apartes no Tribunal do Júri, introduzida pela Lei 11.689/08, representa um avanço significativo na busca por debates mais organizados e respeitosos. A limitação das hipóteses em que as interrupções são permitidas reforça a proteção à ampla defesa e ao contraditório, além de assegurar que o tempo de fala das partes seja utilizado de forma produtiva e equitativa.
O papel do juiz-presidente é crucial para a condução adequada dos debates, impedindo abusos que possam comprometer o raciocínio das partes e a objetividade dos jurados. Além disso, o comportamento ético e profissional de advogados e representantes do Ministério Público é indispensável para preservar a credibilidade do Tribunal e garantir um julgamento justo e imparcial.
O estudo conclui que o respeito às normas processuais e a manutenção de um ambiente respeitoso no plenário são fundamentais não apenas para a proteção dos direitos das partes, mas também para o fortalecimento das instituições democráticas e a confiança da sociedade no sistema de justiça. O controle rigoroso das interrupções, alinhado ao devido processo legal, contribui para decisões judiciais mais legítimas e eficazes, promovendo a equidade no julgamento e a integridade do Tribunal do Júri.
Notas e referências:
(1) CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(2) TASSE, Adel El. Novo Rito do Tribunal do Júri, O. Curitiba: Juruá, 2008.
(3) RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: visão linguística, histórica, social e jurídica 5 ed. rev e atual. São Paulo: Atlas, 2015.
(4) OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim. Tribunal do Júri Popular - Na Ordem Jurídica Constitucional - Atualizado pelas Novas Reformas Processuais - Leis 11.689/08 e 11.690/08. Curitiba: Juruá, 2008.
(5) CAMPOS, Walfredo. Tribunal do Júri: Teoria e Prática. 9. ed. Leme, SP: Editora Mizuno, 2024.
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