Provavelmente, o tema que mais me ocupou nos últimos anos foi o chamado “acordo de cooperação premiada”, mal regulado na lei n.12.850/13. Muito tenho escrito sobre este novo instituto, sempre procurando compreendê-lo através de uma interpretação sistemática, vale dizer, dentro dos princípios reinantes na nossa Constituição Federal e do sistema que se extrai do nosso Cod. Proc. Penal, do Cod. Penal e da Lei de Execução Penal.
O plenário do Supremo Tribunal Federal está debatendo vários aspectos relevantes dos acordos de cooperação premiada, sendo que o julgamento foi suspenso após alguns votos proferidos.
Na verdade, este julgamento foi provocado por um agravo regimental e uma questão de ordem, suscitada pelo ministro Fachin. Embora o objeto destes incidentes processuais sejam limitados à competência para a homologação dos acordos de cooperação no âmbito dos tribunais e também à cognição a ser feita pelo relator, o Supremo Tribunal está debatendo uma questão mais relevante e controvertida.
Na verdade, obiter dictum, os ministros estão debatendo se a homologação judicial do acordo de cooperação premiada vincula o órgão jurisdicional competente para prolatar a sentença ou acordo condenatório ao final do processo. Embora a decisão sobre esta questão não tenha eficácia vinculante para futuros julgamentos, é de grande relevância a publicação do entendimento dos vários ministros, ainda que seja uma manifestação provisória e fora do objeto dos procedimentos.
É de se lastimar que o julgamento possa estar “contaminado” pela situação de fato que a todos preocupa, qual seja, a atuação da chamada “Operação da Lava-Jato e a punição destes ou daqueles políticos. Muitos acabam esquecendo que esta decisão é também uma decisão que pode “revolucionar” o nosso sistema de justiça criminal, transformando-o em um sistema de negociações, onde predominam os “negócios jurídicos processuais”, nos moldes do sistema anglo-saxão.
Com o escopo de contribuir para o aperfeiçoamento do nosso sistema de justiça criminal, venho produzindo alguns pequenos e singelos textos sobre o que está sendo debatido neste relevante julgamento, ainda não concluído. Desta forma, reproduzo abaixo tais reflexões, apresentando-as em ordem cronológica para melhor contextualizá-las.
1) O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL TENDE A SUBSTITUIR O PROCESSO PENAL POR UM CONTRATO!!!
O julgamento foi suspenso, mas já dá para termos um triste prognóstico do resultado do julgamento. Estou me referindo ao julgamento do plenário sobre a interpretação do instituto vulgarmente chamado de Delação Premiada.
Em breve devemos ter um "enterro" do devido processo penal, que poderá ser substituído por um acordo entre um membro do Ministério Público e um criminoso confesso.
A pena, e qualquer pena, não mais será aplicada e individualizada pelo Poder Judiciário, mas será a que resultar de um contrato, de um negócio jurídico pré-processual. Isto valeria também para os vários regimes de cumprimento de pena!!!
Vale dizer, o que está disposto no Cod. Penal e na Lei de Execução Penal pode ser derrogado pelo acordo de cooperação premiada!!!
O S.T.F. tende a decidir que, homologado o acordo pelo ministro relator, as suas turmas e o seu próprio plenário estarão vinculados ao contrato. Vale dizer, na prática, acabou o colegiado. Vamos mais longe, o Poder Judiciário está abdicando das suas funções constitucionais, dando ao Ministério Público um poder absoluto e sem qualquer tipo de controle!!!
No meu entendimento, todos estes equívocos decorrem do estabelecimento de uma errada premissa, qual seja, o acordo de "delação premiada" pode individualizar a pena e o seu regime de cumprimento, vinculando a sentença ou o acórdão a serem prolatados no processo.
Entendo que o controle judicial da legalidade do acordo, quando de sua homologação, não dispensa o exame relativo à compatibilidade do prêmio prometido com o disposto no art.4 da lei n.12.850/13 e com as regras pertinentes do Cod. Penal e da Lei de Execução Penal.
Assisti perplexo à sessão do S.T.F., pela televisão, e fiquei impressionado com a falta de melhor conhecimento sistemático do instituto jurídico. Os ministros estavam argumentando sem um foco determinado e sustentando entendimentos que não se harmonizavam ou conflitavam, em uma verdadeira "torre de babel". Mais parecia uma "oficina" de debates, daqueles que são realizados em nível acadêmico, em sala de aula ...
Na minha avaliação, neste primeiro momento, a melhor intervenção foi do ministro Gilmar Mendes, embora se possa desconfiar de que suas motivações não sejam muito ligadas ao aperfeiçoamento do nosso sistema de justiça criminal, como é a minha. Corretamente, ele chamou a atenção para alguns acordos que estão prevendo prêmios não autorizados pela legislação ou mesmo até vedados pelo nosso sistema normativo. Chegou a dizer que o Ministério Público, através destes acordos, estaria legislando e substituindo o Poder Judiciário na sua atividade jurisdicional.
Percebe-se claramente que os ministros darão os seus votos mais preocupados em não prejudicar a chamada "Lava Jato" do que com o aperfeiçoamento do nosso sistema jurídico.
Tudo muito lamentável. Tudo isto nos causa um profundo desalento. Um profundo desestímulo...
2) ALGUM DIA ELES VÃO SE ARREPENDER!!!
O Supremo Tribunal Federal está prestes a chancelar dois monstros:
1) O negociado derrogando o legislado;
3) O Ministério Público podendo agir ao arrepio do nosso sistema normativo.
Parece que os Ministros do S.T.F. não perceberam que estes poderes estão sendo reconhecidos não apenas para o P.G.R., mas também para qualquer Procurador da República ou qualquer Promotor de Justiça, em qualquer comarca deste nosso pais continental.
Se o "prêmio de não oferecer a denúncia" puder ser concedido sem qualquer controle dentro do Ministério Público ou do art. 28 do Cod. Proc. Penal, estaremos adotando o princípio da oportunidade da ação penal pública para crimes gravíssimos, praticados no seio de uma organização criminosa !!!
Este poder desmedido, que está sendo outorgado ao Ministério Público, vai expô-lo a todo tipo de crítica, como já está ocorrendo no caso da delação da JBS. Imagine este prêmio sendo concedido nos rincões mais longínquos do nosso país, sem qualquer controle eficaz ...
Assim, não se trata de excepcionar o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública para crimes de menor gravidade, mas sim dar ao membro do Ministério Público o poder de decidir se um determinado delinquente deve ou não ser punido, independentemente da gravidade do crime praticado. Basta delatar seus comparsas.
Para que exista algum tipo de controle deste poder quase que absoluto, só nos resta admitir a ação penal privada subsidiária da pública nestas hipóteses, numa interpretação extensiva do disposto no art. 29 do Cod. Proc. Penal e art. 5, inc. LIX, da Constituição da República, embora seja ela muito rara em nossa realidade forense.
4) NÃO CONSIGO ACEITAR!!!
Como admitir que um membro do Ministério Público e um membro de uma organização criminosa possam criar regras jurídicas para um caso concreto, derrogando normas do Cod. Penal e da Lei de Execução Penal ???
Como admitir que, através de um acordo de delação premiada, possam criar um novo sistema de penas para o Direito Penal e novos regimes de cumprimento de penas de prisão não previstos na Lei de Execução Penal ???
Como admitir o princípio da oportunidade do exercício da ação penal pública para crimes gravíssimos, desde que praticados no seio de uma organização criminosa ??? Vale dizer, como admitir que o Ministério Público possa decidir quem vai ou não punir, mesmo diante de confissão um delito grave ???
Como admitir que um contrato ou negócio jurídico (acordo de delação) possa se substituir ao próprio sistema de justiça criminal ???
Como admitir que o princípio constitucional da individualização da pena, próprio do Poder Judiciário, possa migrar para um contrato firmado entre o Ministério Público e um delinquente ???
Como admitir uma ampla discricionariedade no sistema de justiça criminal ???
Como admitir que os fins justificam os meios no Estado de Direito Democrático ???
Como admitir que um contrato possa obrigar o juiz do processo da condenação a aplicar uma pena e um regime de pena negociados, por vezes, não previstos em nosso sistema normativo ???
Como admitir, em um órgão jurisdicional colegiado, que todos os julgadores fiquem vinculados ao acordo homologado pelo relator, violando-se a independência funcional dos desembargadores ou dos ministros dos tribunais superiores ??? Se prevalece a decisão homologatória do relator, na prática, resulta negado o próprio colegiado...
Como admitir todas estas "mazelas", mormente sem um efetivo controle interno e externo ???
5) LIBEROU GERAL !!!!
Pelo voto do ministro Barroso, o contrato de delação premiada pode prever penas e regimes de penas não previstos na nossa legislação, embora composta de normas cogentes, pois de Direito Público. A ressalva é que não agrave a situação do criminoso colaborador.
Reputo como uma verdadeira derrocada do nosso tradicional sistema jurídico em prol dos contratos. Pelo mencionado voto, o membro do Ministério Público e o criminoso confesso podem "legislar" e até criar regras que contrariem o Código Penal, o Cod. Proc. Penal e a Lei de Execução Penal !!!
Trata-se do neoliberalismo trazido ao Direito Penal e ao Direito Proc. Penal. Disse o ministro ser favorável à "justiça pactuada". Teremos um sistema de justiça penal mais privatista do que o vigorante na Roma antiga !!!
Em temos de "justiça penal", já não temos mais segurança de absolutamente nada. Tudo depende dos contratos a serem firmados pelo Ministério Público e os criminosos !!!
Exatamente tudo aquilo que venho combatendo há anos.
Importante ressalvar o excelente voto do ministro Ricardo Lewandowiski, enfatizando que a homologação do acordo de cooperação premiada não impede que o órgão jurisdicional competente para o julgamento final volte a examinar a legalidade e a constitucionalidade das cláusulas do acordo de cooperação premiada. A decisão de homologação não tem a imutabilidade própria da coisa julgada e o tribunal não poderia fechar os olhos para questões desta gravidade. É uma esperança para um melhor entendimento do controvertido instituto.
7) DELAÇÕES PREMIADAS. CONCLUSÕES DECORRENTES DE ANTERIORES ESTUDOS.
Tendo em vista que o plenário do S.T.F. irá examinar algumas das relevantes questões decorrentes da interpretação do artigo 4 da lei n.12.850/13, reitero algumas das muitas conclusões a que cheguei nos vários estudos sobre o tema, publicados na minha “coluna” do site Empório do Direito:
1) No acordo de cooperação premiada, não deve ser fixada a pena, cabendo ao juiz da condenação individualizá-la, segundo os critérios previstos no art.59 do Cod. Penal.
2) Fixada a pena pelo juiz da condenação, caberá a este órgão jurisdicional reduzir a pena ou substituí-la, segundo tenha ficado avençado no acordo judicialmente homologado. De qualquer forma, tais prêmios não podem ser concedidos em desrespeito às regras do Código Penal e da Lei de Execução Penal. Em termos de Direito Público, não se pode admitir que os negócios jurídicos possam derrogar normas jurídicas cogentes.
3) Nos órgãos colegiados, cada magistrado aplicará a pena que julgar adequada, estando somente vinculado à redução ou substituição prevista no acordo de cooperação premiada, sempre obedecendo às restrições previstas em nosso sistema normativo.
4) Caso se admita que o acordo possa já determinar a pena a ser aplicada, com o que não concordo, em se tratando de órgão colegiado, todos os desembargadores ou ministros devem se pronunciar sobre a homologação ou não do acordo de cooperação premiada. Caso contrário, a homologação apenas do relator irá subtrair dos demais julgadores a independência que têm para aplicar a pena, fazendo desaparecer, na realidade, o próprio colegiado.
5) Na hipótese do parágrafo 4 do artigo 4 da lei n.12.850/13 – prêmio de não oferecer a denúncia – o Ministério Público deve requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, a fim de que ocorra o controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, nos termos do art.28 do Cod. Proc. Penal. A toda evidência, a última palavra será do órgão de cúpula do Ministério Público, como é próprio do sistema acusatório.
6) Nos casos de competência originária dos tribunais, ainda na hipótese do prêmio de não oferecimento da denúncia, o Ministério Público deve manifestar a decisão de arquivamento perante o plenário do tribunal, para que haja publicidade e transparência dos motivos pelos quais o Ministério Público não vai atuar. Para quem admite a ação penal privada subsidiária, tal manifestação perante o Tribunal é relevante para o termo inicial do prazo decadencial (publicação do acórdão).
7) No casos de competência originária dos tribunais, à míngua de um controle legal do descumprimento ou não do princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública – pois não se aplica o disposto no art.28 do Cod. Proc. Penal - passamos a entender cabível a ação penal privada subsidiária da pública, por parte do ofendido, mesmo na hipótese de arquivamento, tendo em vista o disposto no art.5, parágrafo LIX, da Constituição Federal.
8) De qualquer forma, o prêmio de não denunciar, ainda que homologado judicialmente o acordo, não havendo, ação, processo e jurisdição não faz coisa julgada material, tendo eficácia “rebus sic stantibus”, sendo aplicável a regra do art.18 do Cod. Proc. Penal e a Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal.
9) O acordo de delação premiada, ainda que homologado judicialmente, por não fazer coisa julgada material, pode ser desconstituído como qualquer outro negócio jurídico, através de ação anulatória própria. Em caso de nulidade (não anulabilidade), ela pode ser declarada a qualquer momento, mesmo de ofício.
10) O ofendido dos crimes que sejam objeto da investigação ou do processo penal tem legitimação e pode ter interesse em recorrer da decisão judicial que homologue o acordo de delação premiada, no todo ou em parte.
11) Os institutos jurídicos previstos na lei n.12.850/13 devem ser interpretados em conformidade com o sistema de justiça criminal, que encontra respaldo em várias regras da Constituição da República.
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