Ordálias na Antiguidade (Parte 2)

04/06/2016

Por Tiago Didier - 04/06/2016

Leia também: Parte 1, Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6, Parte 7Parte 8, Parte 9, Parte 10

Os registros iniciais de uso da ordália foram encontrados nas civilizações da Antiga Mesopotâmia, no período da Antiguidade, inscritos nos primeiros códigos legais da história da humanidade.  Essa forma de sistematização e codificação das normas representou um grande avanço na aplicação das leis e estabilidade social. Antes disso, prevalecia os costumes e tradições orais como fontes jurídicas, causando arbitrariedades e insegurança dentro da comunidade.

O código Ur-Nammu, criado por volta de 2.100 a.C, é o ordenamento jurídico escrito e organizado mais antigo do mundo. Foi descoberto nas ruínas dos templos dedicados ao imperador Ur-Nammu, reunificador da Mesopotâmia e famoso pela construção de monumentos e vitórias militares. A lei 14, talhada em pedra, determina que se um homem acusar a esposa de outro de promiscuidade e a ordália do Rio Sagrado a inocentar, o acusador deverá pagar moedas de prata ao acusado.

Os povos da Mesopotâmia acreditavam que o rio Eufrates, referido nos códigos como Rio Sagrado, tinha natureza religiosa, imaculada e mística e que, por isso, nunca poderia julgar errado. O acusado deveria se jogar no rio. Se afundasse, era considerado culpado, e flutuando, inocente.

O Código de Hamurabi, mais conhecido do que o seu antecessor Ur-Nammu, foi escrito por volta de 1.700 a.C, no período do reinado de Hamurabi e descoberto somente em 1901 pela expedição do arqueólogo francês Jacques de Morgan. O princípio orientador era conhecido como a “lei do talião”, que fundamentava a pena pela reciprocidade da ofensa e que, indiretamente, impedia a desproporcionalidade da punição aplicada. É a forma mais antiga de resolução de disputas na história do direito. Três leis do código demonstram o uso da ordália:

2. Se alguém fizer uma acusação a outrem, e o acusado for ao rio e pular neste rio, se ele afundar, seu acusador deverá tomar posse da casa do culpado, e se ele escapar sem ferimentos, o acusado não será culpado, e então aquele que fez a acusação deverá ser condenado à morte, enquanto que aquele que pulou no rio deve tomar posse da casa que pertencia a seu acusador.

108. Se uma dona de taverna não aceitar grãos de acordo com o peso em pagamento por bebida, mas aceitar dinheiro, e o preço da bebida for menor do que o dos grãos, ela deverá ser condenada e atirada na água.

132. Se o "dedo for apontado" para a esposa de um homem por causa de outro homem, e ela não for pega dormindo com o outro homem, ela deve pular no rio por seu marido.

Na Bíblia, o livro Números, do Antigo Testamento, menciona o ritual Sotah como ordália a ser realizada em caso de suspeita de adultério. Se acredita que foi escrito por volta de 1470 a.C, depois, portanto, dos códigos mesopotâmicos. Procedimentos detalhados sobre o ritual, também conhecido como “águas da amargura”, foram posteriormente relatados no Talmude, compilação antiga de estudos teológicos judaicos.

Esta ordália ocorria quando uma mulher suspeita de adultério deveria consumir uma água de sabor amargo e baseado nos efeitos da ingestão se constataria a culpa ou inocência da acusada. O Sotah é relatado nos seguintes versículos (Números, 5:11-31):

Então o Senhor disse a Moisés:  "Diga o seguinte aos israelitas: Se a mulher de alguém se desviar e lhe for infiel, e outro homem deitar-se com ela, e isso estiver oculto de seu marido, e a impureza dela não for descoberta, por não haver testemunha contra ela nem ter ela sido pega no ato; se o marido dela tiver ciúmes e suspeitar de sua mulher, esteja ela pura ou impura, ele a levará ao sacerdote, com uma oferta de um jarro de farinha de cevada em favor dela. Não derramará azeite nem porá incenso sobre a farinha, porque é uma oferta de cereal pelo ciúme, para que se revele a verdade sobre o pecado.

O sacerdote trará a mulher e a colocará perante o Senhor. Então apanhará um pouco de água sagrada num jarro de barro e colocará na água um pouco do pó do chão do tabernáculo. Depois de colocar a mulher perante o Senhor, o sacerdote soltará o cabelo dela e porá nas mãos dela a oferta memorial, a oferta pelo ciúme, enquanto ele mesmo terá em sua mão a água amarga que traz maldição. Então o sacerdote fará a mulher jurar e lhe dirá: Se nenhum outro homem se deitou com você e se você não foi infiel nem se tornou impura enquanto casada, que esta água amarga que traz maldição não faça mal a você. Mas, se você foi infiel enquanto casada e se contaminou por ter se deitado com um homem que não é seu marido - então o sacerdote fará a mulher pronunciar este juramento com maldição - que o Senhor faça de você objeto de maldição e de desprezo no meio do povo fazendo que a sua barriga inche e que você jamais tenha filhos. Que esta água que traz maldição entre em seu corpo, inche a sua barriga e a impeça de ter filhos. "Então a mulher dirá: Amém. Assim seja. 

O sacerdote escreverá essas maldições num documento e depois as lavará na água amarga. Ele a fará beber a água amarga que traz maldição, e essa água entrará nela, causando-lhe amargo sofrimento. O sacerdote apanhará das mãos dela a oferta de cereal pelo ciúme, a moverá ritualmente perante o Senhor e a trará ao altar. Então apanhará um punhado da oferta de cereal como oferta memorial e a queimará sobre o altar; depois disso fará a mulher beber a água. Se ela houver se contaminado, sendo infiel ao seu marido, quando o sacerdote fizer que ela beba a água que traz maldição, essa água entrará nela e causará um amargo sofrimento; sua barriga inchará e ela, incapaz de ter filhos, se tornará objeto de maldição no meio do seu povo. Se, porém, a mulher não houver se contaminado, mas estiver pura, não sofrerá punição e será capaz de ter filhos. 

Esse é, pois, o ritual quanto ao ciúme, quando uma mulher for infiel e se contaminar enquanto casada, ou quando o ciúme se apoderar de um homem porque suspeita de sua mulher. O sacerdote a colocará perante o Senhor e a fará passar por todo esse ritual. Se a suspeita se confirmar ou não, o marido estará inocente; mas a mulher sofrerá as consequências da sua iniquidade.

Existem relatos de que os gregos, na Antiguidade, tinham conhecimento e esporádico uso das ordálias, mas não há indícios de que incorporaram oficialmente a seu sistema jurídico. Em Antígona, peça clássica de Sófocles escrita em 442 a.C, Creonte, rei de Tebas, ordena que o cadáver do seu inimigo político Polinice ficasse sem cerimônias fúnebres e exposto à ação de aves de rapina e cães como forma de humilhação final. Um dos guardas encontra posteriormente o corpo enterrado, contrariando o decreto, e informa ao soberano do fato. Quem havia enterrado era Antígona, irmã de Polinice, mas o rei suspeita que tenha sido o guarda, corrompido por suborno, que indignado pela acusação se dispõe a passar por uma ordália para provar sua inocência. Sófocles (2005, p.18-22) narra a cena:

O GUARDA

Nesse caso, eu falo. Um desconhecido acaba de sepultar o corpo de Polinice, e desapareceu, depois de ter depositado terra seca sobre a sepultura, realizando os ritos necessários.

CREONTE

Que dizes tu? Quem teve tamanha au­dácia?

O GUARDA

Não sei! Em parte alguma se ouviu a pancada da enxada, ou de cavadeiras; a terra é dura e seca, sem fendas, sem sinal das rodas; o culpado não deixou vestígios. Quando o primeiro guarda do dia ia entrar em serviço, descobriu o que estava feito, e todos nós ficámos estarrecidos pela surpresa! Nós, os guardas, proferimos recíprocas injúrias, cada qual acusando os demais, agredindo-nos mutuamente, sem que surgisse alguém para nos acalmar. [...] Já nos dispúnhamos a tomar nas mãos o ferro em brasa, e a saltar sobre o fogo, a fim de jurar pelos deuses como nenhuma culpa nos cabia... que não sabíamos quem ordenou, nem quem executou aquilo. [...] Eis por que venho à tua presença, bem contra a minha e a tua vontade, visto que ninguém gosta de um portador de ruins notícias.

O CORIFEU

Ó príncipe... Não teriam os deuses resolvido que isso acontecesse? É o que estou pensando desde algum tempo...

CREONTE

[...] Por acaso já viste honrarem os deuses a criminosos? Seria absurdo! Mas, das ordens que hei dado tem havido, desde alguns tempos, cidadãos que as ouvem de má vontade, e, logo que delas têm conhecimento, murmu­ram contra mim, sacodem a cabeça, às ocultas, em sinal de desacordo, e não querem sujeitar-se, como convém, à minha autoridade. Foram esses, eu sei muito bem! — os que corromperam os guardas, e os induziram a fazer o que fizeram! Não há, para os homens, invenção mais funesta do que o dinheiro! Ele é que corrompe as cidades, afasta os homens de seus lares, seduz e conturba os espíritos mais virtuosos, e os arrasta à prática das mais vergonhosas ações! Em todos os tempos tem ensinado torpezas e impie­dades! Quem quer que haja premeditado esse crime, mais cedo, ou mais tarde, será punido! [...] Os ganhos ilícitos têm causado muito maior número de prejuízos, do que de vantagens!

Não consta no Império Romano, antes das invasões das tribos germânicas, registros de ordálias em seu ordenamento jurídico. O direito romano era extremamente avançado para a época, com sistemas bem definidos e racionais para aferir o valor das provas e averiguar a culpabilidade dos acusados.

Na Pérsia, durante a Antiguidade e Idade Média, há várias provas da ocorrência das ordálias, principalmente realizadas pelo fogo – que nessa cultura o tinha como elemento sagrado, considerado expressão visível das divindades. A historiadora Mary Boyce (2001) afirma que eram aplicadas em casos de perjúrio e quebra de contrato. Existiam aproximadamente trinta modalidades diferentes de realização do teste, como caminhar pelo fogo ou ter metal derretido despejado no corpo. A morte seria prova de culpa e caso o acusado sobrevivesse se considerava uma intervenção do deus Mithra para atestar a inocência.

No Sudeste Asiático foram encontrados registros de ordálias realizadas onde o acusado e o acusador submergiam na água prendendo a respiração. Aquele que perdesse o fôlego primeiro e subisse à tona era considerado culpado e mentiroso nas suas alegações.

Existe farta documentação histórica que o uso de ordálias na Índia foi bastante difundido e duradouro. O livro Ramayana, poesia épica da mitologia hindu, escrito em sânscrito por volta de 500 a.C, narra uma famosa ordália.

Sita é a esposa de Rama, manifestação corporal do deus Vishnu. Os três são importantes divindades da mitologia e da religião hindu. Ela é sequestrada pelo demônio Ravana. Quando é resgatada pelo marido, ele duvida da sua castidade durante o longo período de cativeiro. Sita, ultrajada, pede para se submeter a ordália pelo fogo. Declara que se foi fiel ao marido não se queimaria. Enquanto caminha pelo fogo, sem nenhum ferimento, as chamas se transformam em flores. Sita prova sua inocência e o marido a aceita de volta.

O comentarista bíblico Adam Clarke (1832) argumenta que esta modalidade de ordália é ainda usada na Índia. Registros antigos se encontram no código de Gentoo, ordenamento consuetudinário que se manteve em vigor por centenas de anos, traduzido somente no século XVIII. O nome hindu para ordália é Purrah Reh, que significa literalmente “juramento”. O acusado juraria sua inocência e a veracidade da sua afirmação seria testada pelo kohi atesh, ou pilha de fogo.


Próximo Artigo: Parte 3 - Ordálias na Idade Média Ocidental


Notas e Referências:

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001.

BOYCE, Mary. Atas. In: Yarshater, Ehsan. Encyclopædia Iranica. Londres: Routledge & Kegan Pau, 1989,v.3. p. 1-5.

Código de Hamurabi. Disponível em: <http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/ hamur.html>. Acessado em: 08 jun. 2014.

Código de Ur-Nammu. Disponível em: <http://realhistoryww.com/world_history/ancient/ Misc/Sumer/ur_nammu_law.htm>. Acessado em: 08 jun. 2014.

CLARKE, Adam. The Holy BibleContaining the Old and New Testaments, the Text Carefully Printed from the Most Correct Copies of the Present Authorized Translation, Including the Marginal Readings and Parallel Texts. With a Commentary and Critical Notes Designed as a Help to a Better Understanding of the Sacred Writings. New York: T.Mason and GLane1837, v.1. p.633.

ROTH, Martha. Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2 ed. Atlanta: Society of Biblical Literature, 1997 

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de J.B. de Mello e Souza. Versão para Ebook, 2005. Disponível em: <www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf>. Acesso em 28 fev. 2015


Tiago Didier. . Tiago Didier é Advogado em Recife/PE e grande entusiasta da história do Direito, arqueologia e antropologia. Email: tiago_didier@hotmail.com . .


Imagem Ilustrativa do Post: 067 Rama and Sita, Brahma Temple // Foto de: Photo Dharma // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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