Operação “Lava - jato”. Novas críticas sobre o aspecto técnico. (Para que meus netos saibam, no futuro, que o avô estava do lado certo, do lado da justiça. Quem sabe, vocês poderão contar a eles...) - Por Afrânio Silva Jardim

04/10/2016

Peço licença aos leitores para fugir da tradição e pautar algo diferente do que se tem feito até aqui.

Quando se chega a certa idade, constatamos que o nosso futuro ficou curto. Constatamos que se está “fechando um ciclo”. Então passamos a nos preocupar, olhando para o passado, com o que deixamos de legado para os que vêm depois e ainda estão começando a viver.

De qualquer forma, sou movido também por uma das frases da linda música do compositor e cantor argentino Leon Gieco: “só peço a Deus que não morra solitário e sem ter feito o que devia”.

Por tudo isso, levando em linha de conta que este espaço passou a ser um arquivo de minha trajetória e pensamento, acho justificáveis estas minhas manifestações públicas sobre o momento jurídico e político atual.

Fica, assim, registrado para o futuro, que este velho professor nunca se omitiu diante do que achava ser justo, ético e honesto.

Que saibam disto aqueles poucos que se interessarão pela minha trajetória de vida e que as minhas “lutas” sirvam de exemplo para os queridos netos Manu, Tiago e Sofia (perdão pelo aspecto pessoal deste final).

Como deixou dito o compositor Ivan Lins, em uma das suas belas músicas, ainda espero que algum dia “a justiça sobreviva”, principalmente a justiça social.

Enfim, como consta da música do grande Raul Seixas, “eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar” ou ficar na praça dando milho aos pombos, enquanto as injustiças abundam em nossa sociedade, consoante um dos meus prediletos compositores e cantores brasileiros, que a mídia também esconde, o poeta Zé Geraldo (procurem Zé Geraldo no Youtube).

A luta continua. A luta, para nós, só cessará com o nosso óbito. Sem bravatas juvenis, posso dizer que só tenho medo de algum dia vir a ter medo...

Dito isto, trago à baila alguns de nossos pronunciamentos públicos sobre determinados atos processuais e decisões da chamada “Operação Lava-Jato”, sempre informados por uma crítica técnica e jurídica. Antes porém, um necessário esclarecimento sobre a minha formação intelectual e sobre o meu atuar, na qualidade de professor de Direito Processual Penal, por longos 36 anos.

1 - ALGUNS ESCLARECIMENTOS IMPORTANTES PARA OS LEITORES DESTA PÁGINA

Tendo em vista algumas críticas, que venho recebendo pelo conteúdo de uns poucos textos, às quais sempre fui sensível, desde que apresentadas de forma adequada e com educação, resolvi fazer alguns esclarecimentos:

1. Nunca escondi a minha formação intelectual, em especial, a minha opção ideológica. Embora seja difícil fazer este tipo de enquadramento, mormente neste pequeno espaço, esclareço que sempre estive inserido no que chamo de “pensamento de esquerda”, vale dizer, aceito grande parte das categorias teóricas de Marx e Engels, mormente as que decorrem do seu materialismo histórico e dialético.

Lógico que o meu pensamento vem sofrendo influências de autores mais modernos, seja de países estrangeiros, seja do Brasil, como Caio Prado Júnior, Álvaro Vieira Pinto, Leandro Konder e Nelson Coutinho, dentre tantos outros.

Ademais, como não mais confio no ser humano, julgo necessário que haja pluralismo na estrutura de poder, de modo que não fiquemos ao sabor da “sabedoria” de um líder de ocasião. Dentro desta triste conjuntura global e nacional, acho que um socialismo democrático já seria um grande avanço.

Digo isto para que fique claro qual é o “meu local de fala”, quando faço abordagens de cunho político ou social. Quando trato de questões teóricas do Direito, de questões jurídicas dogmáticas, esta influência é muito pequena.

Aliás, todos os meus livros são técnicos e abordam temas e categorias preferencialmente relacionadas às teorias jurídicas específicas.

2. Nunca disse que este ou aquele investigado ou réu seriam culpados ou inocentes. Seria uma leviandade da minha parte. Tenho uma biografia a preservar e não vou maculá-la nesta minha idade mais avançada.

Tenho analisado as questões jurídicas apenas no aspecto técnico, quase sempre no aspecto processual, professor que sou da matéria por décadas. Discuto se tal peça acusatória seria ou não inepta, nos termos do sistema processual vigente. Se há acusação ou não de condutas determinadas, se elas são típicas, ao menos em tese, etc. Debato se esta ou aquela decisão judicial está devidamente fundamentada, se o órgão jurisdicional seria ou não competente, se há afirmação de existência de prova para justificar o exercício da ação penal, etc. etc.

Por vezes, examino a questão da tipicidade da conduta narrada na denúncia ou na decisão judicial, examino as formas de participação previstas pelo nosso Direito Penal, falo do crime omissivo, etc. Tudo partindo do que está mencionado, em tese, nas peças processuais.

2 - FALTA DE MOTIVAÇÃO ADEQUADA PARA A PRISÃO TEMPORÁRIA DO EX-MINISTRO PALOCCI E DOS DEMAIS INDICIADOS.

PODE ATÉ PARECER IMPLICÂNCIA DA MINHA PARTE, MAS VEJAM SE ESTA É UMA MOTIVAÇÃO ADEQUADA PARA DECRETAR A PRISÃO TEMPORÁRIA DO EX-MINISTRO PALOCCI E DOIS OUTROS INVESTIGADOS.

TRANSCREVO ABAIXO A PARTE DA DECISÃO QUE DEMONSTRARIA O "PERICULUM LIBERTATIS".

TAMBÉM ABAIXO FORNEÇO O LINK PARA CONSULTA DA DECISÃO INTEGRAL DO JUIZ SÉRGIO MORO.

NOTE-SE QUE NÃO ESTOU QUESTIONANDO SE EXISTE OU NÃO PROVA MÍNIMA DA EXISTÊNCIA DE CRIMES E DE SUA AUTORIA OU PARTICIPAÇÃO.

ESTOU APENAS INDAGANDO SOBRE A NECESSIDADE DA CUSTÓDIA CAUTELAR.

Na verdade, a prisão foi decretada para facilitar (sic) a recuperação de certos valores em dinheiro, para evitar o "risco de fuga" (sem menção de qualquer conduta dos indiciados que denotasse tal vontade) e pela gravidade concreta dos delitos.

Como professor da matéria, por 36 anos, posso me conformar com tal motivação? Posso dizer aos meus alunos que está legitimada a prisão destes indiciados?

Não cabe prisão preventiva para forçar o indiciado a “devolver” quantia em dinheiro, que se supõe tenha sido auferida ilicitamente. Mesmo por que, se não foi ainda condenado, não se pode dizer que ele obteve vantagem ilícita de um crime ... Por outro lado, tal medida seria uma forma indireta de forçar o indiciado a confessar o delito.

Note-se que a gravidade do crime não é motivo suficiente para prender o seu suposto autor. Acresce que, para a custódia cautelar, não basta a possibilidade de fuga – possível, quase tudo é. Precisamos de um juízo razoável de probabilidade, decorrente de uma conduta do indiciado específica, provada e individualizada, que autorize esta presunção.

Entretanto, a prisão decretada não foi a preventiva e sim a prisão temporária, cujos requisitos são outros, consoante se vê abaixo:

VEJAM O QUE DISPÕE A LEI ESPECÍFICA QUE REGE A MATÉRIA:

LEI Nº 7.960, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1989.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1° Caberá prisão temporária:

I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: (segue então uma grande enumeração de crimes, que não cabe aqui examinar)

ATENÇÃO: É UNÂNIME NA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA QUE NÃO SÃO EXIGIDAS AS HIPÓTESES PREVISTAS NOS TRÊS INCISOS ACIMA.

SÃO NECESSÁRIAS A HIPÓTESE DO INCISO III (prova de autoria ou participação em um dos crimes graves elencados) e MAIS A DO INCISO I OU DO INCISO II).

MOTIVAÇÃO DO JUIZ SÉRGIO MORO:

"Embora tenha sido identificada, em cognição sumária, o repasse de cerca de cento e vinte e oito milhões de reais em propinas, não foi possível rastrear ainda documentalmente os valores, salvo em relação a parte dos pagamentos efetuados ao publicitário João Cerqueira de Santana Filho por serviços prestados ao Partido dos Trabalhadores e do pagamento consubstanciado na aquisição subreptícia pelo Grupo Odebrecht do prédio destinado à Implantação do Instituto Lula. Considerando o modus operandi verificado nas ações penais 5019727­95.2016.4.04.7000 e 5036528­23.2015.4.04.7000, é possível que os pagamentos tenham, em parte, ocorrido em contas secretas no exterior ainda não identificadas ou bloqueadas. Enquanto não houver tal identificação, há um risco de dissipação do produto do crime, o que inviabilizará a sua recuperação. Enquanto não afastado o risco de dissipação do produto do crime, presente igualmente um risco maior de fuga ao exterior, uma vez que os investigados poderiam se valer de recursos ilícitos ali mantidos para facilitar fuga e refúgio no exterior. Risco à ordem pública. O contexto não é de envolvimento episódico em crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, mas do recebimento sistemático de propinas, remontando a relação entre o Grupo Odebrecht e Antônio Palocci Filho a pelo menos 2006 e estendendo-­se por anos. Observa­-se que, pela aludida planilha, ainda há saldo a ser pago de propinas e o fato dele não mais exercer cargo ou mandato público não impediu que continuasse como recebedor ou intermediador de pagamentos, em 2012 e 2013 pelo menos, para o seu grupo político. Por outro lado, não se pode olvidar a gravidade em concreto dos crimes em apuração, com fundada suspeita de que pelo menos cento e vinte e oito milhões de reais tenham sido repassados, por meios fraudulentos sofisticados, como propina a Antônio Palocci Filho e ao seu grupo político. Viável, portanto, em principio, a decretação da prisão preventiva requerida. Entretanto, reputo nesse momento mais apropriada em relação a eles a prisão temporária, como medida menos drástica, o que viabilizará o melhor exame dos pressupostos e fundamentos da preventiva após a colheita do material probatório na busca e apreensão."

DECISÃO COMPLETA:

http://s.conjur.com.br/dl/prisao-temporaria-palocci.pdf

3 - AGORA PERCEBI UMA ESTRATÉGIA ILEGAL DA "OPERAÇÃO LAVA-JATO" PARA TENTAR LEGITIMAR ALGUMAS PRISÕES.

A estratégia seria esta: a polícia federal representa pela prisão preventiva do indiciado e o juiz, mostrando não ser tão severo, decreta a prisão temporária, que é menos gravosa.

Como não estão presentes os requisitos da prisão temporária (cito abaixo), o juiz Sérgio Moro invoca a regra do art.312 do Cod. Proc. Penal e trabalha com os requisitos da prisão preventiva. Forçando a mão, ele se utiliza dos conceitos indeterminados previstos na lei: "garantia da ordem pública", "conveniência da instrução criminal" e "assegurar a aplicação da lei penal".

Mesmo assim, ele não aponta as condutas ou fatos concretos que justifiquem a custódia cautelar, mas, de qualquer forma, consegue disfarçar a legalidade da medida coercitiva, pois fundamenta a sua decisão com base em requisitos genéricos. Para a prisão temporária, o legislador foi preciso e objetivo. Confira abaixo.

Desta forma, como os indiciados têm identidade certa e residência fixa, ele teria de afirmar que as prisões seriam "imprescindíveis" para as investigações do inquérito policial, o que não teria qualquer pertinência nestes casos. Para a prisão temporária, o requisito é claro e objetivo e o magistrado não teria como contorná-lo ...

Como dizer que a prisão do ex-ministro Palocci seria imprescindível, se os fatos são muito antigos e as investigações estão ocorrendo, ao longo de anos, com ele em liberdade?

Mesmo que se admita uma "fungibilidade" entre as duas espécies de medidas cautelares, torna-se imperioso que estejam presentes os requisitos legais da prisão que venha a ser, ao final, efetivamente decretada. É até mesmo intuitivo.

Note-se, por derradeiro, que a DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA SÃO UNÂNIMES EM DIZER QUE NÃO SE EXIGEM TODAS AS TRÊS HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS ABAIXO. SÂO NECESSÁRIAS A HIPÓTESE DO INCISO III (prova de autoria ou participação em um dos crimes graves elencados) e MAIS A HIPÓTESE DO INCISO I OU DO INCISO II).

Vale a pena repetir e esclarecer novamente: ALÉM de prova de autoria ou participação em um dos crimes graves elencados pelo legislador, a lei especial exige também, para a caber a prisão temporária, que o indiciado não tenha residência fixa ou não forneça elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade ou ainda seja a prisão imprescindível para as investigações do inquérito policial.

Vejam como estão previstos, na própria lei, os requisitos da prisão temporária, que, habilmente, acabam não sendo considerados ... Artimanha ilegal, dotada de certa dose de cinismo.

Novamente, transcrevo o texto legal, para facilitar o confronto com o que acabei de expor:

LEI Nº 7.960, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1989. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1° Caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: (segue então uma grande enumeração de crimes, que não cabe aqui examinar). (segue então uma grande enumeração de crimes, que não cabe aqui examinar).

4 - NOVA PRISÃO DO EX-MINISTRO PALOCCI E OUTRO INDICIADO. EU JÁ TINHA ADVERTIDO NOS TEXTOS ANTERIORES.

Como não estavam presentes os requisitos da prisão temporária, que são objetivos e não dão margem a interpretações insólitas, ("quando imprescindível para as investigações do inquérito policial"), o juiz Sérgio Moro apenas examinou os requisitos da prisão preventiva (mais genéricos, de conteúdos não determinados). Entretanto, procurando mostrar ser menos severo, acabou por decretar a prisão temporária do ex-ministro Palocci e outros indiciados.

Agora, como não tem o requisito da lei LEI Nº 7.960, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1989, para a prorrogação da incabível prisão temporária, pois a prorrogação da prisão temporária somente pode ocorrer em caso de "extrema e comprovada necessidade", (art. 2), o magistrado decreta a prisão preventiva, (refutada anteriormente, por ele mesmo).

Em resumo: decreta-se uma prisão temporária com fundamento nos requisitos da prisão preventiva. Agora, como não se tem o requisito para prorrogar a prisão temporária decretada, decreta-se a prisão preventiva, anteriormente refutada.

Nada obstante esta estratégia, vamos examinar, ainda que superficialmente, a fundamentação do juiz Sérgio Moro para esta prova prisão dos indiciados.

Alega que o dinheiro indevidamente apropriado pelo indiciado ainda não foi "rastreado" e pode ser ocultado, bem como que foi constatado que provas poderiam ter sido destruídas (cabines de computadores foram retiradas, etc).

Sobre a prisão cautelar para evitar que numerários sejam desviados das supostas contas no exterior, já me manifestei aqui anteriormente. Não será a prisão do titular de uma conta bancária que impediria que o dinheiro fosse transferido ou sacado por qualquer procurador, com poderes especiais, inclusive doleiros que atuam fora do país.

Por outro lado, o nosso direito processual não prevê prisão para constranger alguém a entregar dinheiro ao poder judiciário, ainda que de origem ilícita, até porque isto importaria em uma confissão indireta.

Por derradeiro, se a prova já foi destruída (uma mera hipótese) a prisão dos indiciados passa a ser uma forma de punição antecipada, pois não fará aparecer o que não mais existe. Assim, pode parecer que esta prisão é uma forma de constranger o indiciado a produzir prova contra si, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico.

Não questiono aqui a prova da existência dos crimes investigados e nem a sua autoria e participação. Minha preocupação é apenas com a demonstração do "periculum libertatis", vale dizer, a necessidade da prisão decretada e sua adequada fundamentação na decisão judicial.

Cabe ressaltar que, segundo nosso entendimento, não caberia decretar a prisão preventiva neste período eleitoral. Não vale a alegação de que os indiciados já estavam presos. A prisão temporária tem prazo determinado e o juiz criou novo título prisional. Em outras palavras, foi decretada nova prisão, o que é proibido em período eleitoral (só é permitida a prisão em flagrante).

Finalmente, mais uma vez esclareço que não conheço os indiciados, seus advogados, não exerço a advocacia e não tenho qualquer interesse pessoal nestes casos. Confesso até que não tenho simpatia e apreço pelo ex-ministro. Não sou petista ou filiado a qualquer partido político.

Minha manifestação se dá apenas como professor de Direito Processual Penal por longos 36 anos e também pela minha eterna preocupação com o estado de direito democrático.

Vejam a íntegra da decisão acima comentada do juiz Sérgio Moro, através do link abaixo: http://s.conjur.com.br/…/evitar-ocultacao-propina-moro-dete….


Imagem Ilustrativa do Post: Fence in Hostel Celica, Ljubljana, Slovenia // Foto de: Mike // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ceasedesist/4813537526

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