“A história tem provado a capacidade demolidora da poesia e nela me amparo sem mais nem menos”.
Pablo Neruda
“A poesia é um ajuste de contas com a realidade”.
Luis García Montero
Em uma constante transição entre o mundo interior do “Eu” e a realidade cósmica, pautada pelas questões existenciais do pensar, sentir e agir, o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa[1], trata das angústias do cotidiano e da utopia da autoconciliação. Pessimista, o poeta mergulha nas angústias da tristeza e insignificância da vida, frente às perpétuas metamorfoses do mundo, capazes de fazer cessar inclusive os maiores gozos do homem e de suas épocas.
O mistério do cotidiano, nessa linha de pensamento, é a causa as inquietações do eu poético. Em uma rua qualquer, de cidade nenhuma, de estradas que conduzem ao nada, o poeta encontra-se em uma janela, a olhar a uma tabacaria. O mistério corporifica-se na existência da própria rua e de tudo o que é captado pelos sentidos do Eu, constituindo uma cena inicial de profundo niilismo, onde o eu poético afirma não ser e nunca poder ser mais que nada.
Nesse movimento de niilismo[2] contra o ego, o personagem admite sua intensa precariedade como ser humano. “Não sou nada, nunca serei nada”. Essa diluição, vista, ainda, pelas janelas de seu quarto, as quais existem tanta iguais no mundo, sem que as pessoas saibam que está ali dentro, apenas sinaliza o desconhecimento alheiro dos sonhos e expectativas daqueles que estão do lado de dentro. A carroça parece ser conduzida pela estrada do nada. O contorno da identidade, inflexível nos seus detalhes, dilui-se aos poucos pela identificação daquilo que está na rua, como é o caso da Tabacaria. “Falhei em tudo”: eis o nó górdio da autoconsciência e da autocrítica humana, a qual sinaliza, ao Direito e à Sustentabilidade, uma provocação interessante, qual seja, a permanente avaliação do “Eu” dessas duas expressões como formas de representação utópica do mundo da vida, das galerias subterrâneas de nosso cotidiano.
O real e tudo o que existe é apresentado como um grande mistério, diante do qual o “eu poético” passa a refletir e ponderar o significado de sua vivência. Há uma clara relação entre o sentir do “eu poético” (interno) e o mundo (externo) como sendo estranho a tudo, remetendo à uma lógica kantiana do belo[3] e da consciência do mundo real. Nessas questões, o poeta demonstra um ressentimento niilístico[4] do mundo externo, enquanto lugar de perda de significado, revelando a finitude do mundo e tornando-se contrário ao sentimento interno do próprio poeta, autoconsiderado um sonhador.
Tanto o Direito quanto a Sustentabilidade não estão livres dessas formas de sentir e viver o mundo. No primeiro caso, qualquer tábua de valores que se fundamente em atitudes moralistas torna o Direito um lugar de desorganização social e de violência simbólica contra as pessoas. Na dimensão da Sustentabilidade, as ideologias[5] travestidas de adjetivos como “verde”, “ecológico”, entre outros, disseminam linguagens fora das realidades que reivindicam profundas mudanças nas regras da coexistência. Essa separação entre o “eu poético” e o mundo da vida desvia o caminho da autocrítica para um niilismo reativo[6].
Por esse motivo, o niilismo, característica de abertura do poema, aos poucos cede lugar a uma análise de desconstrução das metafísicas do mundo. Todo o pensar do universo já não é mais importante e o poeta contenta-se em ser apenas observar a menina na rua, a comer chocolates[7]. Característica constante, de modo geral, de toda a obra de Pessoa, não há a preocupação de descobrir as causas primeiras das coisas e, apesar de possuir sua “filosofia”, o poeta não se detém em questões filosóficas.
Na Tabacaria, evidencia-se um mundo real, apresentado simplesmente como ele de fato é, sem especulações e conjecturas a respeito de sua forma de ser. Nesse momento, o poema apresenta-se frio, alheio às sensações e aos sentimentos, de modo que o eu poético sente-se apático com as formas de vida ao seu entorno. Será que essas não são também algumas das características apresentadas pelo Direito Positivo? Vejamos...
A antiga dicotomia entre Direito Natural e Direito Positivo, já agora enfraquecida – para não dizer inexistente –, evidencia essa relação que aqui se propõem, pois até o surgimento do Direito Positivo, o Direito Natural era encarado como um todo místico, algo que pairava no ar, não se sabendo de onde vinha, por que vinha, para quem e como vinha, e não se fazia-se ideia de que plano do universo vinha e para qual caminho tinha a intenção de trilhar. No poema, ouve-se com clareza a advertência contra o império metafísico: “[...] a metafísica é uma consequência de estar mal disposto”.
Entretanto, com o advento do Positivismo Jurídico – aqui, faz-se referência especialmente à obra de Kelsen –, estabeleceram-se as premissas de produção do direito, o qual deixa de ser um dado metafísico, corporificando-se na figura do Estado, enquanto produtor da norma jurídica. O plano metafísico deixa de exercer influencia na produção, interpretação e aplicação do Direito e, agora, o plano da racionalidade senta-se ao trono das deidades. No seu delírio megalomaníaco pela pureza, pela harmonia matemática o Direito se organiza, ganha corpo semelhante ao humanos, mas se distancia daquilo que é para se tornar tão somente – e novamente – um ideal: aquilo que deve ser.
No plano da Sustentabilidade, esse argumento não se torna diferente. A sua pouca eficácia como paradigma de vida no mundo pode ser entendida por meio do exagero abstrato que o imaginário social conota à Sustentabilidade. Nesse caso, esvai-se todas as formas de compreensão e responsabilidade que se exige da Sustentabilidade como vetor de transformação imediata das sociedades sem que haja qualquer espécie de esforço para que haja, aos poucos, a transição de uma “sociedade da decepção” para uma “sociedade sustentável”.
O poema, na sua fase final, já apresenta um revés dos planos niilítico e metafisico. Agora, o “eu poético” encontra-se num simples ato de fumar um cigarro, despreocupado, apenas sentindo as sensações e deixando-se levar pela êxtase por esse prazer. Afirma que a consciência da metafísica é apenas um “estar mal disposto”, reafirmando o estar apenas fumando, sem preocupações com a vida.
O ato de sentir algo, no momento presente, junto a alguém ou não, é uma forma de astúcia humana para retardar o tempo que não para. A concepção abstrata do tempo, especialmente na Modernidade, como fenômeno progressivo, linear evidencia o destino inevitável de todos: a morte. Contra essa atitude, o ser humano cria momentos de regressão[8] a fim do tempo retardar as suas passadas ou, ainda, parar, mesmo que por um breve instante, como ocorre nos “rituais”[9] de todos os dias. Esse é o que Maffesoli denomina como “instante eterno”.
O instante eterno do Direito e da Sustentabilidade - entendidos como fundamentos de uma regressão fundadora necessária ao desenvolvimento humanos na sua dimensão relacional e ilustrados pelo poema de Fernando Pessoa – eternizam aquilo que ambas expressões favorecem esse encontro do “Eu” consigo, com o Outro e com o Mundo. A totalidade dessas experiencias indicam: a) que o “Eu” não se atomiza na perspectiva niilista de diluição, mas de autocrítica; b) que o Direito não é apenas o delírio metafisico do dever-ser; c) que a Sustentabilidade não se exaure como a “salvadora da Terra”. Em cada um desses momentos, o “instante eterno” cumpre uma função social irretocável, qual seja, de se permitir a saída de uma “eternidade pura” para uma “eternidade sensível”.
O poema conclui com um simples, mas significativo, encontro entre o “eu poético” e o dono da tabacaria, que se apresenta como apenas um conhecido – nas palavras do poeta, “o Esteves, sem metafísica”. Essa relação, do eu poético que encontra um conhecido, sem a abstração das metafísicas que antes perturbavam o sujeito, demonstra um momento de eternização do momento presente (instante eterno[10]), uma vez que o “eu poético” procura a apenas viver o momento de gozo provocado pelo cigarro, aliado ao prazer de rever o Esteves. Nesse momento, pergunta-se: Mas, afinal, onde o Direito e a Sustentabilidade se encontram em meio a esse emaranhado de situações? No instante eterno que se faz na Tabacaria.
Notas e Referências
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976.
KANT, Immanuel. Critique of judgement. Translated by James Creed Meredith. New York: Oxford University Press, 2007.
MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Tradução de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
MARRACH, Sonia. O instante eterno. Educação em Revista, Marília, 2006, v.7, n.1/2, p. 133-136. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/613-Texto%20do%20artigo-2145-1-10-20110505.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.
NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. Revista Crioula, Universidade de São Paulo, [s.l.], n. 8, 1 nov. 2010. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/55307>. Acesso em: 05 ago. 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2009.
[1] Tabacaria é um dos poemas mais expressivos do heterônimo Álvaro de Campos.
[2] O niilismo que se observa nesse momento do poema é aquele proposto por Deleuze em seus estudos sobre Nitzsche: niilismo passivo. “[...] '’niilismo passivo’ fim extremo do ‘niilismo reativo’: melhor extinguir-se passivamente do que ser conduzido de fora”. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 125.
[3] “If we wish to discern whether anything is beautiful or not, we do not refer the representation of it to the object by means of the understanding with a view to cognition, but by means of the imagination (acting perhaps in conjunction with the understanding) we refer the representation to the subject and its feeling of pleasure or displeasure. The judgement of taste, therefore, is not a cognitive judgement, and so not logical, but is aesthetic—which means that it is one whose determining ground cannot be other than subjective”. KANT, Immanuel. Critique of judgement. Translated by James Creed Meredith. New York: Oxford University Press, 2007, § I, 203.
[4] DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. p. 125.
[5] “[...] ideologias são ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos”. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 218.
[6] “Há nesses homens rancorosos, nesses degenerados, uma sede de vingança subterrânea insaciável, inesgotável contra os bons, engenhosa em máscaras e pretextos. Quando alcançarão o triunfo sublime e definitivo desta vingança? Indubitavelmente, quando conseguirem infundir na consciência dos felizes a sua própria miséria; quando conseguirem que se envergonhem da sua felicidade e digam uns aos outros: ‘Que vergonha sermos felizes em presença de tantas miséria...’”. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2009, p. 120.
[7] “Note-se o verso 75: “Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!”. Esta afirmação é do eu pensante como se estivesse falando com a menina, como se na atitude banal de comer chocolates estivesse a verdade da vida e das coisas, como se a metafísica das religiões e de outras grandes conquistas da humanidade tivessem sido reduzidas a uma barra de chocolates (“Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. / Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria”, vs. 72-73). E isto poderia servir de consolo e inspiração ao eu poético.” NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. Revista Crioula, Universidade de São Paulo, [s.l.], n. 8, 1 nov. 2010. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/55307>. Acesso em: 05 ago. 2018.
[8] “Regressão: o termo é forte, mas indica bem o que está em jogo na integração, no seio do individuo e da sociedade em seu conjunto, da parte da sombra, da dimensão imaginativa, do aspecto passional ou emocional que são, também, parâmetros humanos, cuja importância e cujos efeitos nas relações inter-individuais e na construção simbólica da realidade são necessários medir”. MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Tradução de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003, p. 62/63.
[9] “[...] o ritual como tempo em suspenso, o ritual como anamnesis da morte. A vida religiosa, certamente, oferece múltiplos exemplos disso, mas já não podemos relega-lo a esse domínio. A vida politica está aí para prová-lo, mas é o cotidiano o seu conservatório mais importante. No fluxo ininterrupto da existência, detendo o tempo, o ritual permite trabalhar astutamente a morte, imitando-a, integrando alguns de seus elementos”. MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. p. 63.
[10] A expressão “instante eterno” foi cunhada pelo sociólogo Michel Maffesoli. A expressão evidencia, que “[...] vivemos numa “surrealidade societal”, com novos territórios, novos valores, onde se procura viver intensamente, aproveitando ao máximo cada momento, eternizando o instante, sob valores dionisíacos, lúdicos, pois não dá mais para adiar o gozo em nome de um projeto político ou profissional.” MARRACH, Sonia. O instante eterno. Educação em Revista, Marília, 2006, v.7, n.1/2, p. 133-136. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/613-Texto%20do%20artigo-2145-1-10-20110505.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.
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