Ódio à Democracia: no rastro da exceção brasileira

18/04/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 13/04/2015

Vivemos atualmente dias de inquietude e incerteza. (...) Tenho a convicção de que o nosso Exército saberá, como sempre, contornar tão graves inquietações e continuará, a despeito de qualquer decisão, protegendo a nação do estrangeiro e de si mesma (Gal. Luiz Cesário da Silveira Filho – 11/03/2009, g. n.).

 

Orwell, em seu inesquecível 1984, prostrou: “quem controla o passado, controla o futuro”. Esta pequena reflexão tem como pano de fundo o que se poderia chamar de a exceção brasileira, ou se quisermos, noutros termos, a maneira insidiosa, quando não cínica, que a ditadura militar brasileira encontra de permanecer em nossa estrutura jurídica e nas capilaridades das práticas políticas. Por certo, o espaço é curto, mas suficiente para levantar algumas questões.

A análise da violência cotidiana, que é reflexo também dos nossos profundos traumas sociais, bem passa por aí. As peculiaridades do caso nacional vai além, e muito, da contagem dos mortos que perpetrou. A marca dos crimes de Estado cometidos no passado mede-se, ainda mais radicalmente, naquilo que deixa para o presente, por suas reminiscências, como o aumento das práticas de torturas nas prisões brasileiras (SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. “The Impact of Human Rights in Latin America” in Journal of Peace Research, vol. 44, nº 4, 2007, p. 437). A ditadura mais violenta do ciclo nefasto latino-americano bem pode se encontrar aqui, propriamente pela gestão de um caldo cultural totalitário inédito, uma espécie de inconsciente coletivo perverso que ainda move as ações criminosas de nossas polícias, dos aparatos judiciais e de setores do Estado (SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (orgs.). O que Resta da Ditadura: a exceção brasileira São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10). Não será à toa: ocultam-se cadáveres até hoje, é o único país onde torturadores nunca foram julgados, não há ainda uma justiça de transição, o Exército está longe de exercer uma autocrítica e mea culpa, pelo contrário, seus oficiais não raro fazem elogios rasgados à ditadura. O sintoma continua a pairar e contaminar o presente.

A própria Constituição de 1988 carrega consigo um legado autoritário para o qual se deve atentar. Naturalmente, tais entorses estão sempre disponíveis a ser manipuladas pelas pulsões que qualquer psicologia das massas do fascismo é capaz de explicar (REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. 2ª Ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1988). A dita Constituição Cidadã traz consigo o paradoxo da convivência de normas de conteúdo pouco liberais, mesmo que de acordo com procedimentos regulares, que dificultam, por exemplo, a consolidação das relações civil-militares de maneira democrática (ZAVERUCHA, Jorge. “Relações Civil-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988” in O que Resta da Ditadura, pp. 41-76). No que se refere às cláusulas relativas às Forças Armadas, Polícias Militares Estaduais, sistema judiciário militar e segurança pública em geral, pasme-se, foram mantidas praticamente idênticas as da Constituição autoritária de 1967 e sua emenda de 1969.

Se já alertava Agamben, desde a crítica de Benjamin a Schmidt, que soberano é aquele que tem o poder legal de suspender a lei, colocar-se legalmente fora dela (“soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”, AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 19), fácil averiguar o artigo 142 do atual texto constitucional. Diz ele que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Bom lembrar, antes, a “coincidência” com o comunicado de 13 de março de 1964, após o comício de Jango na Central do Brasil, do Gal. Castello Branco aos seus subordinados: “os meios militares nacionais e permanentes não são para propriamente defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei” (LIRA NETO. Castello: a marcha para a ditadura. São Paulo: Contexto, 2004, p. 239). Desde lá, são estas forças que têm o poder constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, a lei e a ordem quando democraticamente deveria ser o reverso. Tal como na Constituição de Pinochet (1980), cabe às Forças Armadas o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei. Ao seu alvitre, deixam de se tornar meio para, quando necessário, tornarem-se fim do Estado. Doutro ponto, nada há de definição, no art. 142, acerca do que seja “ordem”. Será “ordem interna e internacional” (Preâmbulo); “ordem constitucional” (art. 5º XLIV); “ordem pública e social” (art. 34 III, arts. 136 e 144); “ordem econômica” (art. 170) ou “ordem social” (art. 193)? E se forem todas, já que não se precisa? Haja poder! Muito menos há qualquer especificação de quem, quando e como a lei e a ordem são violadas. A rigor, basta determinada ordem do Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem, para que os militares possam constitucionalmente não respeitá-la.

A se considerar estes termos, tal como a anterior Carta, a de 1988 tornou “constitucionalizado” o golpe de Estado, desde que liderado pelas Forças Armadas. De se notar que a espada de Dâmocles fardada continua ainda pairando sobre os poderes constitucionais. Se a nossa (semi)democracia conseguiu escapar em alguma medida da ditadura, caberá para que avance e não ceda ao retrocesso fascistóide não confundir a sua decisiva condição com uma mera aparência de democracia.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.    

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