Por Andityas Soares de Moura Costa Matos - 09/11/2016
A desobediência civil não é uma ficção, nem se traduz em baderna ou caos, como muitos pretendem apresentá-la quando ela deixa as páginas dos livros de Filosofia Política e Direito Constitucional e vem se encarnar na realidade, incomodando com sua simples presença. É o que ocorre com as ocupações estudantis que o Brasil assiste hoje. A quem criminaliza, zomba e caricaturiza a ação política de milhares de estudantes que arriscam seus corpos para que suas opiniões sejam ao menos ouvidas, é preciso recordar que esses estudantes são desobedientes civis e não criminosos; aliás, são cidadãos antes de serem estudantes; e não nos esqueçamos: são estudantes antes de serem meros consumidores dos “serviços educacionais” que alguns querem lhes empurrar garganta abaixo. É preciso recordar também que sem desobediência civil nenhuma sociedade pode ser chamada de “democrática”.
A ideia de que todos nós temos uma consciência e que não devemos anestesiá-la sempre, em especial diante do poder do Estado, é antiga. Não pretendo aqui recontar a pré-história da desobediência civil, que passa pela Grécia e pela Idade Média, tendo até mesmo uma versão cristã (será que Jesus foi um desobediente civil?). Interessa-me a história da desobediência civil, que começou quando um simpático sujeito chamado Henry David Thoreau se negou a pagar tributos devidos ao seu país – os Estados Unidos da América – porque estes serviam para financiar uma guerra expansionista e imperialista com o México. Acabou preso por uma noite e, inspirado pela experiência, escreveu um famoso ensaio no qual desenvolve a percepção de que a consciência individual às vezes (às vezes?) pode entrar em conflito com a autoridade estatal, e que isso é não apenas normal, mas saudável. Do contrário, por que teríamos uma consciência?, perguntava-se um curioso Thoreau. Contudo, faltava algo em Thoreau que só seria descoberto por ativistas como Mahatma Gandhi e Martin Luther King: a natureza coletiva da desobediência civil. Esses dois sujeitos – que deveriam ser presos e julgados como terroristas, caso adotássemos os critérios dos que agora demonizam nossos estudantes – perceberam que a desobediência civil só faz sentido quando expressa não apenas o desconforto de uma alma atribulada – como a de Thoreau –, mas especialmente quando se conecta a valores, ideais e projetos políticos de uma coletividade. A partir da prática e dos escritos de Gandhi e Luther King a desobediência civil passou a ser compreendida enquanto um ato – ou um conjunto de atos – público, coletivo, pacífico e ilegal que questiona certa política ou norma jurídica de modo a demonstrar sua injustiça e assim obter sua revogação ou não-aplicação. A lei, pelo simples fato de ser lei, não expressa nenhuma justiça. O respeito cego por ela e pelos governantes tornou possível experiências nefastas como o nazismo. Para questioná-la, contudo, não é suficiente que a minha consciência individual esteja em desacordo com seu conteúdo, sendo necessário compartilhar essa percepção com outras pessoas. A partir daí é possível questionar a lei deixando de cumpri-la, fazendo visíveis as injustiças que dela derivam e abrindo um debate público que de outro modo seria impensável. A desobediência civil é um instrumento para isso. Sem ela, possivelmente os negros e as mulheres continuariam a ser tratados nos EUA como cidadãos de segunda categoria durante muitos anos. Talvez até hoje. Da mesma maneira, sem desobediência é provável que a Índia permanecesse ainda por décadas como colônia do Reino Unido. A desobediência civil é então um movimento espontâneo da sociedade contra o Estado (sim, você leu certo: sociedade e Estado não são a mesma coisa). Não para destruí-lo, mas para que seja possível qualificá-lo com um adjetivo perigoso para muita gente: democrático.
E é a democracia que me leva a dar outro passo na história da desobediência civil. Refiro-me à sua compreensão contemporânea, exemplificada pela obra de José Antonio Estévez Araujo, que se baseou em Ronald Dworkin e Konrad Hesse, autores clássicos e muito respeitados em suas áreas de atuação. Para ele a desobediência civil é uma prática de interpretação popular da Constituição. A ideia é que em Estados Democráticos o povo pode, de maneira coletiva e não-violenta, interpretar sua própria Constituição por meio de atos de recusa, crítica e resistência, independentemente do que dizem os poderes oficiais. Trata-se de uma visão democrática segundo a qual não somos apenas objetos do poder político, mas também seus sujeitos. Não é só o Juiz em seu gabinete ou o Deputado na sessão de votação que dizem o que é e como deve ser entendida uma lei ou o direito. Nós também podemos fazer isso coletivamente, dizendo às autoridades o que é o direito e o que é a lei, dizendo, sobretudo, que a lei não é uma entidade sagrada intocável, mas apenas uma forma precária de tentar ordenar nossas vidas minimamente. Mas cuidado: o objetivo do direito não pode ser simplesmente ordenar, sem qualquer critério. Ordenar por ordenar é fácil. O mais forte pode ordenar o mundo do dia para noite ao escravizar o mais fraco. Um direito popular e democrático, ao contrário, quer ordenar a sociedade com justiça e isso significa, no mínimo, que mudanças estruturais que afetam milhões de pessoas, tais como aquelas previstas na PEC 55 (antiga PEC 241) e nas reformas educacionais recentemente anunciadas devem ser discutidas com seriedade e serenidade, e não impostas como verdades religiosas, únicas capazes de milagrosamente salvar o país da noite para o dia.
E aqui volto às ocupações, legítimos atos de desobediência civil que se traduzem em processos coletivos de resistência pacífica e dialógica a um projeto político sombrio, profundamente antidemocrático e descomprometido com a emancipação humana. O ato de ocupar escolas e demais espaços públicos não é simplesmente uma tomada de posição geopolítica importantíssima, já que todo poder deriva de um ato físico de tomada da terra. É também um ato de leitura, de interpretação da Constituição de nosso país, que em seu art. 1º promete ser democrática. Promete porque a democracia nunca é uma certeza, nunca é um fato dado e herdado, uma garantia que nos tranquiliza como os dogmas religiosos. Democracia significa constante aposta, é processo sempre, é abertura ao diferente, não para comandá-lo ou enquadrá-lo, mas para construir conjuntamente com ele, apesar e em razão das diferenças. Ninguém é democrático; o máximo que podemos alcançar é estarmos democráticos. E as ocupações estudantis nos mostram como isso é possível, como isso é incômodo – só na ditadura há ordem perfeita e inquestionada –, como isso é necessário: sem as ocupações alguém estaria discutindo hoje as graves questões políticas e jurídicas que se desenrolam no Brasil? Atos de desobediência civil tornam públicas injustiças invisíveis e possibilitam pensar soluções alternativas a problemas que os poderes públicos nos dizem que só podem ser resolvidos de uma maneira. A desobediência civil também costuma acorda o resto de dignidade que dorme em todo cidadão, hoje reduzido à sua forma mais básica de consumidor-trabalhador, insensível a tudo aquilo que não se traduza em números oficiais. Só isso – e há muito mais – já seria suficiente para entender a função extremamente benéfica e necessária das ocupações estudantis. Elas não são motins contra a ordem, mas contra certa ordem que, diria um autor alemão chamado Walter Benjamin, expressa a mais profunda desordem: essa desordem em que preferimos algemar estudantes e usar técnicas de guerra contra eles ao invés de simplesmente ouvirmos o que eles têm a dizer sobre o mundo podre que construímos para eles e que eles, justa e corajosamente, querem mudar ao menos um pouquinho.
. . Andityas Soares de Moura Costa Matos é Doutor (UFMG) e Pós-Doutor (UB) em Direito. Professor de Filosofia do Direito da UFMG. vergiliopublius@hotmail.com . .
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