O Zika vírus, a saúde pública e a proibição do aborto como violência de gênero

18/02/2016

Coluna Espaço do Estudante

A pluralização de casos do Zika nos últimos meses, doença transmitida por intermédio do mosquito Aedes aegypti (também vetor principal do vírus causador da dengue) tem, indiretamente, reaberto o debate sobre direito ao aborto no Brasil. Isso se explica porque a epidemia – de causa detectada há menos de um ano, mas rapidamente espalhada por inúmeros países do continente americano – é apontada como possível responsável pelo crescimento anormal de ocorrências de microcefalia no contexto pátrio (mais de 400 casos comprovados e quase 4.000 casos suspeitos em investigação). Tal cenário, por sua gravidade e atipicidade, motivou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar estado de emergência sanitária mundial, especialmente devido às consequências neurológicas que a enfermidade pode acarretar em fetos de gestantes contaminadas que, além da grave malformação mencionada, também inclui outras complicações, como oculares e auditivas.

Essa nova brecha quanto ao tema vai ao encontro da já comum (e bastante certeira) argumentação de que a discussão sobre o aborto é uma questão de saúde pública, na medida em que ocorre de forma sistemática e, da maneira como é efetuada no país, afeta diretamente a saúde das mulheres. Nesse sentido, a OMS estima que uma brasileira morre a cada dois dias por conta de tentativas precárias de abortamento, o que coloca sua prática como uma das mais importantes causas de morte materna nacional. Em consonância com esses dados, a pesquisa “Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos”, realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Universidade Estadual do Rio (UERJ) em 2009, aponta que, em média, um milhão de mulheres fazem abortos de risco por ano no Brasil (estando, aí, ausente a contabilização daqueles feitos em clínicas clandestinas), havendo como consequência mais de duzentas e cinquenta mil internações hospitalares decorrentes de procedimentos malsucedidos.

O estudo supramencionado também explicita que, a despeito de recorrentes concepções coletivas (normalmente preconceituosas) sobre as brasileiras que recorrem ao aborto, o perfil destas recai em mulheres que vivem em união estável, são católicas, possuem trabalho fixo e já têm um filho. Entretanto, como demonstra outra investigação, coordenada pelo Grupo Curumim e publicada em 2011, as consequências para a saúde e os riscos para a vida daquelas que efetuam o aborto inseguro (como complicações, hemorragias, esterilidade e lesões no útero) são, em geral, maiores para mulheres em situação socialmente vulnerável, dado que estas possuem menor acesso a métodos relativamente seguros, como os oferecidos por algumas clínicas clandestinas mediante alto custo.

De início, a amálgama desses aspectos nos demonstra que, quanto tratamos da proibição do aborto, estamos lidando com violências que – a despeito de incidirem, pela mera proibição, sobre todas as mulheres – se expressam de formas consideravelmente agravadas, em seus efeitos danosos, a partir de questões que escapam ao gênero, ainda que com ele se comuniquem. Essa cognição nos alude à importância de atentarmos à interseccionalidade das violações, na medida em que os indivíduos não podem ser compartimentados através de marcadores sociais incomunicáveis (como a classe, a raça, o gênero e a sexualidade) ou pela mera subsunção destes, mas percebidos através de sua interação. Nesse caso, mulheres pobres, muitas delas negras, são as maiores prejudicadas pela irresponsável criminalização daquilo que deveria, a priori, ser uma prerrogativa assegurada.

Mesmo que acarrete riscos e danos perversos à integridade das mulheres, o veto estatal ao aborto seguro não se resume a essa dimensão, constituindo-se como verdadeira violência de gênero. Na conjuntura atual, em que a prerrogativa brasileira é restrita a três casos (gestação decorrente de estupro, risco de vida para a gestante e feto anencéfalo), o que se vê é o contrassenso a um processo histórico de emancipação feminina, constituído no sentido de afastar a mulher como sujeito hipossuficiente, ao mesmo tempo em que de repudiar as tantas assimetrias que decorrem de corpos sexuados. Se o texto original do Código Civil de 1916 (revogado apenas em 2002), em seu artigo 6º, inciso II, definia a mulher casada como relativamente incapaz – o que reafirmava, de forma positivada, a superioridade masculina e o patriarcalismo como regras – a criação de condicionamentos para o direito ao aborto aparece como resquício dessa concepção, através da transferência da autonomia feminina à tutela de outrem.

Nesse sentido, percebe-se a negação da mulher como agente moral imbuído de capacidade para tomar decisões sobre sua própria trajetória e individualidade, transformando-a em alguém que, novamente, deve ter certos aspectos de sua vida transferidos ao Estado, à legislação e aos poderes instituídos – que precisam “tomar conta” de um eventual zigoto, embrião ou feto porque, caso conferissem tal responsabilidade à gestante, estes estariam correndo perigo potencial através da possível interrupção da gestação. Entretanto, mediante esse exercício de anulação feminina – calcado, paralelamente, em pressupostos de origem religiosa – ignora-se o que parece óbvio: que “alguém que obrigue uma mulher a levar uma gravidez até o fim e a alimentar um feto que não deseja é também um assunto de natureza moral ou ética” (PETCHESKY, 1990, p. 31).

O silenciamento que perpassa o debate sobre o aborto é, por sua vez, acompanhado de uma produção uníssona sobre como devem ser as vozes das mulheres: não podemos falar sobre o aborto que fizemos ou sobre aquele que queremos fazer, na medida em que, além de ser prática que constitui um delito, o ato é permeado por uma norma social estigmatizante – típica de contextos biopolíticos, nos quais a lei funciona, cada vez mais, como norma (FOUCAULT, 1998). Por outro lado, a fala estatal, que afirma a proibição, se calca em uma transferência do corpo feminino da seara privada para a pública, com este adquirindo caráter de disputa pelos mais inúmeros agentes – dotados de seus próprios enunciados – sob a ótica de um útero transformado em incubador social, de âmbito da comunidade como um todo.

Partindo-se desta perspectiva, a consequência automática é o deslocamento decisório da mulher para um debate público, com seu corpo, o processo físico e psicológico da gravidez – de duração não apenas momentânea, mas com repercussões para todo o restante da vida da possível mãe – e, mais especificamente, seu útero, sendo transformado em algo que foge da esfera particular e individual. Destarte, o lugar da mulher, na reprodução, encontra-se profundamente esvaziado, já que esta é desumanizada, o que decorre de sua coisificação e de sua conversão em mero ‘meio ambiente’ (ALDANA, 2008). Portanto, ao se decidir sobre o aborto por quem efetivamente pode querer fazê-lo, silenciando a mulher nesse processo, há a sua confirmação não como sujeito ativo, possuidor de capacidades decisórias quanto a si mesmo e de uma complexidade intrínseca a qualquer sujeito: em dissonância, ela á confirmada, exclusivamente, em sua faceta mulher-mãe, forçada a uma espécie de falta de liberdade original (KLEIN, 2005).

Em paralelo, esse acúmulo de negações alicerça-se em uma perspectiva da vida (materializada, por exemplo, pelas campanhas “pró-vida”) exclusivamente focada no feto – tornando alheia a percepção subjetiva da gestante, e impondo-a aquilo que, coletivamente e sem sua participação, foi decidido para ela: a necessidade de que desenvolva a função à qual sempre esteve destinada, de que cumpra, enfim, aquilo que historicamente foi naturalizado como sua obrigação social: gerar um filho. Em suma, irrelevante a mulher considerar-se ou desejar-se como mãe: a sociedade, externamente, a toma desta forma – e isso é suficiente para repercutir-lhe uma obrigação – a despeito de ter conhecimento de que nenhum método contraceptivo é absolutamente seguro.

O papel social materno constituído como não apenas dom, mas essência feminina e parte indispensável do “ser mulher”, aprofundado por um longo processo de divisão sexual do trabalho e pela definição de pertencimento, “por excelência”, do masculino ao espaço público (e, por extensão, político) e do feminino ao espaço privado (e, por extensão, doméstico), pode ser ilustrado por uma situação ocorrida em 2007 no Mato Grosso do Sul. Após, naquele ano, a polícia do estado ter invadido uma clínica de planejamento familiar e confiscado os registros médicos de quase dez mil mulheres (que, ainda sob investigação, tiveram seus nomes, endereços e natureza das acusações expostas no website do Tribunal de Justiça local), dezenas destas aceitaram a suspensão do processo que se seguiu, sob não só condições previstas legalmente, mas também outra imposta pela autoridade judicial com fins de “corretivo pedagógico”: desempenhar trabalhos comunitários com crianças pequenas em creches e em escolas. Em suma, essas mulheres – que fizeram parte do que ficou posteriormente conhecido como “o caso das dez mil” e documentado em relatório da organização IPAS Brasil – foram condenadas a algo que deveria, de uma vez por todas, “educá-las” para a maternidade.

Em face de tudo isso, se percebe que a proibição do aborto está imersa em âmbitos multidimensionais, todos eles imbuídos de violência: ela expõe ao risco a vida e a saúde das mulheres, especialmente as pobres, agravando a situação daquelas que já se encontram em situações vulneráveis; retoma a noção de hipossuficiência feminina, ignorando a mulher como sujeito apto a decidir por si mesma, e transferindo essa atribuição para quem nada tem a ver com seus corpos e trajetórias; silencia as autonomias das diferentes mulheres e, em lugar disso, impõe um discurso uníssono que lhes imputa responsabilidades, mas as exclui de sua formulação; enfim, reafirma a noção machista que reduz a mulher à maternidade, reforçando as iniquidades de gênero pela corroboração de papéis socialmente construídos.

O debate sobre direito ao aborto, reascendido com os tristes casos de Zika vírus e pelas consequências que o mesmo pode trazer aos fetos de gestantes infectadas pela doença, surge no país acompanhado da ignorância de conservadores, que buscam tecer comparações falaciosas entre a escolha dessas mulheres no seguimento da gravidez e práticas de teor eugênico – como se a opção sobre a seara do próprio corpo, aberta, em grande parte, pela negligência pública quanto ao controle do mosquito vetor, se equivalesse a políticas de extermínio defendidas por Estados totalitários. Também aparece junto a intentos legislativos – como o Projeto de Lei 5069/2013, que dificulta o acesso ao aborto em caso de estupro – orientados a dificultar ainda mais a emancipação feminina, com vistas de enterrá-la por completo.

É momento, portanto, de transcendermos a possibilidade de mais uma exceção acerca de nossas vontades e corpos – consubstanciada pela tentativa de permissão do aborto em casos de microcefalia – defendendo o reconhecimento da soberania das mulheres, sobre elas mesmas, como norma definitiva. Nesse exercício, e principalmente, também é necessário reafirmarmos que já basta o fato de inúmeros atores sociais – do Estado à Igreja – terem falado em nosso lugar durante tanto tempo. Precisamos, com urgência, falar sobre aborto: sobre o aborto que fizemos, sobre o que queremos ter o direito de poder fazer. O que não precisamos, definitivamente, é que dele continuem a falar por nós.


Notas e Referências:

ALDANA, Myriam. Vozes católicas no Congresso Nacional: aborto, defesa da vida. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 2, p. 639-646, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000200018&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03 fev. 2016.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos.  Brasília: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em:  <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livro_aborto.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2016.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. 17ª edição.

FREITAS, Angela [et. al.]. Aborto: guia para profissionais de comunicação. Recife: Grupo Curumim, 2011.Disponível em: <http://www.grupocurumim.org.br/site/imprensa/Kit_jornalistas6.pdf> . Acesso em: 03 fev. 2016.

IPAS (Brasil). 2008. Processos judiciais evolvendo abortamento: Negação dos Direitos

Reprodutivos das Mulheres em Mato Grosso do Sul. Disponível em: <http://bit.ly/

MHup0p>. Acesso em: 03 fev. 2013.

KLEIN, Laura. Fornicar y matar. El problema del aborto. Buenos Aires: Planeta, 2005.

PETCHESKY, Rosalind. Abortion and Women's Choice: The Atate, Sexuality, and Reproductive Freedom. New England: University Press, 1990.


Marcelli CiprianiMarcelli Cipriani é Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS), e do Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Feminismos (GP-GSFem - PUCRS); bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PRISMAS - PUCRS).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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