Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 26/08/2017
Na Sessão do julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), no último dia 22 (terça-feira), em que foi julgado o ex-governador do Estado EDUARDO AZEREDO pelo chamado “mensalão tucano”, por dois votos a um a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça manteve a condenação de AZEREDO. Por maioria de votos fixou a pena em 20 anos e um mês de prisão por peculato e lavagem de dinheiro.
Apesar de tudo, merece destaque o voto do desembargador relator ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO que votou pela absolvição in totum do ex-governador EDUARDO AZEREDO. O desembargador revisor PEDRO VERGARA e o desembargador vogal ADILSON LAMONIER votaram pela manutenção da condenação.
Após as sustentações orais do procurador de Justiça ANTÔNIO DE PADOVA e do advogado de Defesa CASTELLAR GUIMARÃES FILHO, foi dada a palavra ao desembargador ALEXANDRE DE CARVALHO, que iniciou a leitura das mais de 200 páginas do seu brilhante voto, sob o olhar atento dos presentes que lotavam a sala onde se realizou a Sessão de Julgamento.
Desde que era membro do Ministério Público, o desembargador ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO já se destacava por suas posições garantistas e comprometidas com os direitos fundamentais. Quando ALEXANDRE DE CARVALHO passou a integrar o Judiciário mineiro não foi diferente, passou a julgar norteado pelos princípios constitucionais, pelo processo penal democrático e pelo direito penal mínimo. E desse modo, a postura de ALEXANDRE DE CARVALHO, como relator no julgamento de EDUARDO AZEREDO, não destoou, não foi uma curva fora da reta, ele continuou sendo o que sempre foi: um juiz garantista.
Decorre do modelo penal garantista a função de delimitar o poder punitivo do Estado mediante a exclusão das punições extra ou ultra legem. O referido modelo tem como pilar o princípio da legalidade estrita, proposto por FERRAJOLI[1] como “uma técnica legislativa específica dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter constitutivo e não regulamentar daquilo que é punível”. O princípio da legalidade estrita, diferente do “princípio da mera legalidade” – dirigido aos juízes -, dirige-se ao legislador, a quem prescreve a taxatividade, não se admitindo “normas constitutivas”, mas, tão somente “normas regulamentares” do desvio punível.
Ser um juiz garantista é assegurar o que está na Constituição, mas, não só isto, ser garantista é se tornar escravo dos princípios fundamentais da legalidade estrita, da culpabilidade, da lesividade, da presunção de inocência, do contraditório, do devido processo legal e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, corolário do Estado democrático de direito.
Em linhas gerais, o desembargador relator ALEXANDRE DE CARVALHO se ateve em seu voto ao sistema acusatório, considerando apenas e tão somente – como manda a lei - a prova judicial, ou seja, aquela que passou pelo crivo do contraditório e da ampla defesa.
Logo no início do seu voto, reproduzindo o art. 155 do Código de Processo Penal, o desembargador relator deixou assentado que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial (...)” grifamos.
O desembargador ALEXANDRE DE CARVALHO, também, não poupou críticas à adoção equivocada da teoria do domínio do fato que ganhou destaque no processo do “mensalão” julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Depois do “mensalão” a teoria do domínio do fato - desenvolvida pelo jurista alemão CLAUS ROXIN em obra elaborada para obtenção da Cátedra de Direito Penal da Universidade de Munique, intitulada “Autoria e Domínio do Fato no Direito Penal” publicada pela primeira vez na Alemanha em 1963 – ganhou alguns adeptos no Brasil, lamentavelmente, nem sempre fiéis à teoria. O próprio ROXIN já criticou a má utilização da referida teoria no Brasil, principalmente, para obtenção de condenações absurdas.
No que diz respeito ao crime de lavagem de dinheiro, o desembargador relator mais uma vez foi perfeito ao dizer que não se pode confundir o que seria em tese mero exaurimento do crime com o crime de lavagem de dinheiro. Fosse assim, qualquer vantagem ou proveito do crime patrimonial implicaria no cometimento do crime de branqueamento de capitais. Na esteira da professora DANIELA BONACCORSI[2] sustentou a atipicidade do crime de lavagem de dinheiro por se tratar de um post factum impunível.
No seu profícuo voto, ALEXANDRE DE CARVALHO acertadamente afasta a odiosa responsabilidade objetiva que não coaduna com o direito penal do fato e comprometido com o princípio da culpabilidade. O desembargador relator deixou claro que o ex-governador EDUARDO AZEREDO não poderia ser responsabilizado apenas e tão somente em razão do cargo que ele ocupava a época.
Punir uma pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum) é, segundo SALO DE CARVALHO[3], abandonar “as amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita) no que tange ao aumento da pena, substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente mau (mala in se).”
Como bem explica SCHUNEMANN, somente o princípio da culpabilidade pode evitar também que o Estado, em interesse de uma proteção preventiva de bens jurídicos, chegue a castigar inclusive aqueles fatos que o autor não podia evitar e que pelos quais não se pode dirigir nenhuma reprovação pessoal. Somente um princípio da culpabilidade dotado de significado jurídico-penal autônomo está em condições de erguer uma barreira garantista contra a aplicação de penas sem culpabilidade, que em tais casos seria funcional, porém carece de legitimação em um Estado de Direito.[4]
Merece destaque, também, o momento em que o desembargador relator ALEXANDRE DE CARVALHO dirigindo-se aos jornalistas presentes na Sessão de Julgamento fez duríssimas crítica ao papel da mídia em julgamentos de repercussão. Como já dito alhures, a mídia transforma o processo penal democrático em processo penal do espetáculo.
O professor GERALDO PRADO, em sua obra paradigmática, assevera que:
a exploração das causas penais como casos jornalísticos, em algumas situações com intensa cobertura por todos os meios, tem levado à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista (...) A presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal.[5]
Não é exagero dizer que no processo penal midiático o juiz se torna refém da mídia punitiva e opressora. Referindo-se a denominada “criminologia midiática” ZAFFARONI[6] afirma que na guerra contra eles (os selecionados como criminosos) são os juízes alvo, preferido da “criminologia midiática”, que segundo o jurista argentino, “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito, em especial se o delito for grave, o que provoca uma alegria particular e maligna nos comunicadores”. Neste viés, os juízes “brandos” são um obstáculo na luta contra a criminalidade e contra “eles”. Como assevera ZAFFARONI “as garantias penais e processuais são para nós, mas não para eles, pois eles não respeitam os direitos de ninguém. Eles – os estereotipados – não têm direitos, porque matam, não são pessoas, são a escória social, as fezes da sociedade”.
Muito vão dizer, corretamente, que o desembargador relator fez o óbvio, mas em “tempos sombrios” de autoritarismo, de inversão do princípio da presunção de inocência, de negação do princípio da culpabilidade, de atropelo do processo penal acusatório, de julgamentos midiáticos, em que a prova produzida em contraditório judicial é ignorada e de menosprezo a defesa, fazer o óbvio é necessário em nome da Constituição da República e do Estado democrático de direito.
Por fim, é imperioso que a sociedade entenda de uma vez por todas que independente do partido político, independente de ser “coxinha” ou “petralha”, seja FHC ou LULA, TEMER, AÉCIO ou DILMA, AZEREDO ou PIMENTEL, JOÃO ou MARIA, todas e todos, ricos ou pobres, católicos, judeus ou ateus, brancos ou negros, mulheres ou homens, definitivamente a todos deve ser assegurado às garantias do Estado democrático de direito que tem na dignidade da pessoa humana um dos seus postulados.
Notas e Referências:
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[2] BONACCORSI, Daniela Villani. A atipicidade do crime de lavagem de dinheiro: análise crítica da Lei 12.684/12 a partir do emergencialismo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.
[3] CARVALHO, Salo. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, p. 154. Referindo-se ao direito penal de autor, Zaffaroni e Nilo Batista, afirmam que “este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, a função de divindade pessoal e, os segundos, a de divindade impessoal e mecânica”. Mais adiante, os citados autores, concluem que “em ambas as propostas, o criminalizado é um ser inferior e, por isso, se vê apenado (inferioridade moral: estado de pecado; inferioridade mecânica: estado perigoso), porém não é sua pessoa a única que não se reconhece: o discurso do direito penal de autor propõe aos operadores jurídicos a negação de sua própria condição de pessoas...” (ZAFFARONI. E. Raúl, BATISTA. Nilo, ALAGIA. Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume - Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 131-133).
[4] SCHÜNEMANN, Bernad. La función del principio de culpabilidad em el derecho penal preventivo. In Sistema Moderno del Derecho Penal: Cuestiones Fundamentales, ob. cit. p. 163-165.
[5] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 180.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2012.
Curtiu o artigo???
Confira aqui a obra O Direito Penal em Tempos Sombrios do autor Leonardo Isaac Yarochewsky publicada pela Editora Empório do Direito!
. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. . .
Imagem Ilustrativa do Post: clap// Foto de: Steve Johnson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/artbystevejohnson/8049280894
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.