Por Rômulo Andrade Moreira - 06/03/2015
Como se sabe, um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está estabelecido nos seus arts. 69, VII, 84, 85, 86 e 87.
Evidentemente que estas disposições contidas no código processual têm que ser cotejadas com as normas constitucionais (seja pela Constituição Federal, seja pelas Constituições dos Estados) e pela jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal.
Inicialmente, note-se que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa, mas em virtude do cargo ou da função[2] que ela exerce, razão pela qual não fere qualquer princípio constitucional, como o da igualdade (art. 5º., caput) ou o que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (art. 5º., XXXVII). Aqui, ninguém é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função que exerce na sociedade.
Como diz Tourinho Filho, enquanto “o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição social do agente.”[3] Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece expressamente que “la persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad.” (art. 56-3)
Já Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicavam que “cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que desempene, pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental precaución para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas pasiones.”[4]
No julgamento do Habeas Corpus nº. 91437 o Supremo Tribunal Federal lembrou a lição do Ministro Victor Nunes Leal de que “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é realmente instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do acusado seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois uma garantia bilateral – garantia contra e a favor do acusado”.
Também no julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito nº. 2.010-SP, o Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa a beneficiar o cidadão, mas proteger o cargo ocupado.”
O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade também de afirmar que “o foro especial por prerrogativa funcional não é privilégio pessoal do seu detentor, mas garantia necessária ao pleno exercício de funções públicas, típicas do Estado Democrático de Direito: é técnica de proteção da pessoa que o detém, em face de dispositivo da Carta Magna, significando que o titular se submete a investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente designado, não se confundindo, de forma alguma, com a idéia de impunidade do agente.” (Habeas Corpus nº 99.773/RJ – 5ª. Turma - Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho).
Na edição do dia 26 de fevereiro de 2012, em matéria especial publicada no jornal Folha de São Paulo, em longa entrevista, o Ministro Celso de Mello afirmou, dentre outras coisas, que era a favor da “supressão pura e simples de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em matéria criminal. Mas, para efeito de debate, poderia até concordar com a subsistência de foro em favor do presidente da República, nos casos em que ele pode ser responsabilizado penalmente, e dos presidentes do Senado, da Câmara e do Supremo. E a ninguém mais. Eu sinto que todas as autoridades públicas hão de ser submetidas a julgamento, nas causas penais, perante os magistrados de primeiro grau. Ao contrário do STF, que é um tribunal com 11 juízes, você tem um número muito elevado de varas criminais [na primeira instância], e pelo Estado inteiro. Com essa pluralização, a agilidade de inquéritos policiais, dos procedimentos penais é muito maior. Acho importante nós considerarmos a nossa experiência histórica. Entre 25 de março de 1824, data da primeira carta política do Brasil, e 30 de outubro de 1969, quando foi imposta uma nova carta pelo triunvirato militar, pela ditadura, portanto um período de 145 anos, os deputados e os senadores não tiveram prerrogativa de foro. Mas nem por isso foram menos independentes ou perderam a sua liberdade para legislar até mesmo contra o sistema em vigor. A Constituição de 1988, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática, porque ampliou de modo excessivo as hipóteses de competência penal originária.”
O Ministro explicou, a respeito do Direito Comparado, que “algumas cortes constitucionais europeias detêm competência penal originária. A Corte Constitucional italiana, por exemplo, mas para hipóteses muito limitadas, quatro ou cinco, e nada mais. Na França, o Conselho Constitucional detém competência penal originária em relação a pouquíssimas autoridades, cinco, se tanto. Ou seja, são constituições republicanas, mas que refletem a mesma parcimônia que se registrara na carta monárquica brasileira de 1824. No modelo norte-americano, já ao contrário, não há prerrogativa de foro. Temos algumas constituições que se aproximam do modelo brasileiro, mas este é quase insuperável, quase invencível. Vale a pena pegar algumas constituições estaduais do Brasil para ver as autoridades com foro junto ao Tribunal de Justiça. Começa com o vice-governador e vai embora. Entra Deus e todo mundo.”
Para ele, “a prerrogativa de foro seria cabível apenas para os delitos cometidos em razão do ofício. Isso significa que atuais titulares de cargos executivos, judiciários ou de mandatos eletivos só teriam prerrogativa de foro se o delito pelo qual eles estão sendo investigados ou processados tivessem sido praticados em razão do ofício ou no desempenho daquele cargo.”
Perguntado sobre o impacto, na rotina dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos casos relativos ao foro, o Ministro foi enfático: “A situação é dramática. É verdade que os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante tiveram um impacto altamente positivo sobre a prática processual no STF. Mas, por outro lado, no que se refere aos processos originários, vale dizer, às causas que se iniciam desde logo, diretamente no Supremo, houve um aumento exponencial desse volume, e isso se verifica no cotidiano da corte.”
Sobre a utilização de Juízes auxiliares, o Ministro disse ser contra a medida, “em primeiro lugar, porque acho que o estudo tem que ser meu. Por isso é que acabo trabalhando essas 14 horas por dia. É um ato pessoal. Mas respeito a posição dos outros juízes, cada um tem seu estilo de trabalho. Em segundo lugar, entendo que o magistrado, ou ele exerce suas funções jurisdicionais, podendo acumulá-las com um cargo docente, como permite a Constituição, ou não se lhe oferece qualquer outra alternativa. Acho que não tem sentido convocar um juiz para atuar como um assessor de Ministro. A mim, não parece que a Constituição autorizaria isso.”
A propósito, “a decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir um novo julgamento para parte dos condenados no processo do mensalão - a partir do acolhimento dos embargos infringentes -, pode beneficiar réus de 306 ações penais que se arrastam na Corte, sem previsão de conclusão. Enquanto advogados de defesa se empolgam com a possibilidade de lançar mão de mais um recurso, ministros e ex-integrantes do STF revelam apreensão com o "efeito dominó" da decisão. "Em outros casos, o efeito que se terá é esse mesmo, o efeito dominó", afirma o ministro Marco Aurélio Mello, que votou contra os infringentes para o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e outros 11 condenados. "Persistindo a atual composição (do STF), a maioria de seis (ministros) vai confirmar o entendimento segundo o qual cabem os infringentes toda vez que o acusado tiver quatro votos a favor. E depois reclamam que a Justiça é morosa, não é?" (...) Além das 306 ações penais, atualmente no Supremo há 533 inquéritos criminais cujos réus são deputados, senadores ou ministros, que desfrutam do foro privilegiado. São investigações que podem se transformar em ações penais originárias (que tramitam no STF por causa do foro especial de pelo menos um dos réus) caso as denúncias sejam aceitas pela Corte. Inviável. Um outro ministro que rejeitou empurrar para 2014 o desfecho do mensalão é categórico. "Se entrar (embargos infringentes) para todas as ações nessa situação (com 4 votos), será a inviabilidade do tribunal. Já imaginou? Toda vez que tiver quatro votos vai ficar rejulgando? O tribunal não consegue nem julgar as ações originárias!", diz o ministro, que pediu anonimato. Como consequência da decisão do STF centenas de outros réus poderão garantir mais um recurso para protelar a já demorada decisão final da Justiça. Mesmo não passando por instâncias inferiores, os réus com foro privilegiado costumam ser beneficiados pela burocracia. Algumas dessas demandas foram instauradas em 2003 e ainda seguem em fase de instrução - depoimentos , perícias e reunião de provas. (...) Um dos processos, após 11 anos, tem 49 volumes e 24 apensos e corre em segredo de Justiça. Defensor de 13 alvos de ações penais originárias, o advogado José Roberto Leal disse que a possibilidade de uso dos embargos infringentes significa "a garantia do direito de defesa". Para José Eduardo Rangel de Alckmin, que defende outro acusado em ações penais datadas de 2004 e 2005, a decisão "mostrou que a Justiça não pode buscar a condenação de qualquer jeito". O criminalista Marcelo Leonardo diz que sempre contou com a possibilidade de recorrer aos embargos infringentes. "Ninguém duvidou disso até maio deste ano, quando o ministro Joaquim Barbosa deu aquela inédita decisão de negar (os embargos)." (As informações são do jornal O Estado de São Paulo).
Em debate realizado no jornal O Estado de S. Paulo, o jurista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirmou que “algumas situações específicas justificam o foro, isso não afronta a igualdade. É preciso deixar claro que quem detém o foro não vai ser julgado por um órgão de fora do Judiciário. Não se trata de um tribunal especial para julgar presidente, governador, procurador-geral. São órgãos da estrutura do Poder Judiciário, compostos de juízes que têm as mesmas garantias e obrigações de todos os juízes. O acusado será julgado por alguém investido das funções de julgador. Algumas autoridades podem e devem ser julgadas de forma diferenciada porque exercem funções especiais, com características especiais. Não posso entender que um presidente de tribunal possa ser julgado por um juiz de primeira instância, recém-ingresso na magistratura, inexperiente.” (...) O foro por prerrogativa é do Direito brasileiro. Acho que essa discussão envereda por alguns segmentos interessados na desmoralização do Judiciário, na diminuição da sua credibilidade. O Judiciário tem suas mazelas, que precisam ser corrigidas. Mas é preciso reconhecer o lado bom do Judiciário, porque do contrário vamos caminhar para uma situação muito perigosa. O foro não é pró-corrupção. Essa imagem é errada, porque estão enlameando os membros dos tribunais competentes. Os desembargadores e os ministros são homens de bem. Não fazem parte de um tribunal de exceção. Os ministros são piores que juízes de primeiro grau? Estão colocando uma pecha de que eles são adeptos da impunidade, e isso não é verdade. Há mais morosidade sim, mas dizer que há impunidade não é correto. É ruim porque desmoraliza o Judiciário.” (...) Sou a favor. Com relação aos prefeitos, a prerrogativa cria blindagem para impedir influências políticas. Um problema muito sério é o da politização da Justiça, especialmente nas comarcas do interior do Brasil, onde tanto o juiz como o promotor ficam sujeitos a influências e pressões. Isso é real. Na apuração dos crimes de maior repercussão, muitas vezes juiz e promotor ficam subjetivamente comprometidos emocionalmente com o fato. São seres humanos. Podem não se imiscuir, mas sentirão toda aquela repercussão que está batendo à sua porta.” (Revista Consultor Jurídico, acessada dia 04 de setembro de 2007).
É importante ressaltar que a prerrogativa de foro, por si só, não transfere para o respectivo órgão superior as atribuições investigatórias, mas “a tramitação dos procedimentos investigatórios” deve ser acompanhada pelo órgão jurisdicional competente para o julgamento do feito. (Inquérito nº. 2.411/MT, Relator Ministro Gilmar Mendes).
Neste sentido:
“SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - Habeas Corpus nº. 82.507/SE – Relator: Ministro Sepúlveda Pertence - A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si só para o Tribunal respectivo as funções de polícia judiciária. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao Tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste autoridade investigadora, mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações. (...) É bem verdade que o Pretório Excelso, em 10.10.2007, no julgamento do Inquérito nº. 2.411/MT, Rel. Ministro Gilmar Mendes (Informativo 483 do Supremo Tribunal Federal), ainda que por maioria, firmou o entendimento de que no exercício da competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, b da Constituição Federal combinado com o art. 2º.. da Lei 8.038/90), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações, ou seja, desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo Ministério Público, sob pena de esvaziamento da própria ideia dessa prerrogativa.”
O Plenário do Supremo Tribunal Federal rejeitou denúncia do Ministério Público Federal contra um Deputado Federal, no julgamento do Inquérito nº. 2842. O Ministro Ricardo Lewandowski, relator, entendeu que a denúncia do Ministério Público Federal contra o parlamentar se baseou unicamente em dados de investigação realizada sem autorização da Suprema Corte. A maioria dos Ministros rejeitou o argumento do Ministério Público Federal de que o Deputado não era objeto de investigação e que seu nome somente teria surgido no curso delas. Prevaleceu o entendimento de que os próprios autos do processo mostram que a Polícia Federal sabia, desde o início, que o Deputado Federal estava entre os investigados, e que o processo deveria ter sido remetido ao Supremo Tribunal Federal tão logo o juízo de primeiro grau teve ciência do aparecimento do nome dele nas investigações. Em seu voto, o relator e diversos Ministros ressaltaram que nada obsta que a Procuradoria-Geral da República reinicie investigações sobre o caso, porém sob o comando do Supremo Tribunal Federal.
Também no Superior Tribunal de Justiça decidiu-se que "a competência originária por prerrogativa de jurisdição, isoladamente, não desloca para o Tribunal de Justiça as atribuições de Polícia Judiciária, mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao Magistrado de primeiro grau, na fase das investigações.” (Habeas Corpus nº. 99.773/RJ – (2008.0023461-6) – 5ª. Turma - Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho).
Outrossim, atentemos que a prerrogativa de foro decorre do ato de diplomação.
Neste sentido, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal indeferiu pedido do Habeas Corpus nº. 91593, onde se alegava que a denúncia havia sido recebida pela primeira instância no dia em que um dos acusados foi diplomado Deputado Federal. Quando da decisão liminar, os Ministros chegaram à conclusão que, ao contrário do alegado, a denúncia foi devidamente recebida um dia antes da diplomação do Deputado. O relator, Ministro Marco Aurélio, reafirmou esse entendimento. “Quando do recebimento da denúncia não se tinha ainda o envolvimento do detentor da prerrogativa de foro”, disse.
Em outro caso o Ministro Celso de Mello, relator do Inquérito nº. 2754, em curso contra um Deputado Federal, determinou que o processo fosse reautuado como ação penal nº. 511 – tendo em vista que foi recebida a denúncia contra ele –, bem como delegou à Justiça Federal em Brasília a oitiva das testemunhas arroladas pelo Ministério Público na peça de acusação. Como o inquérito teve início antes da diplomação, Celso de Mello aplicou jurisprudência do Supremo, validando todos os atos praticados no processo pelo juiz da 5ª. Vara Criminal da circunscrição Judiciária de Brasília.
Neste sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello determinou a reautuação como Ação Penal (nº. 501) do Inquérito nº 2546, que investigava suposto crime cometido por um Deputado Federal. O Ministro revelou, em sua decisão, que a denúncia foi recebida em março de 2000 pelo juiz de Direito da Vara Criminal de Pato Branco (PR), quando o réu ainda não havia sido eleito para a Câmara dos Deputados. Por essa razão, o órgão judiciário que recebeu a denúncia, à época, era o juiz natural da causa, “revestindo-se de inquestionável validade jurídica o recebimento da peça acusatória”, frisou o Ministro. A diplomação do parlamentar só tem o efeito processual de causar o deslocamento do processo para o Supremo Tribunal Federal, instância competente para julgar e processar os membros do Congresso Nacional, explicou Celso de Mello. “Cabe enfatizar que a diplomação do réu, como membro do Congresso Nacional, revela-se apta a gerar, tão somente, uma específica consequência de ordem processual, consistente no deslocamento, para o STF, da competência penal originária para a persecutio criminis”, observou o Ministro. “Isso significa, portanto, que a superveniência daquele fato jurídico-eleitoral – considerada a nova diretriz jurisprudencial firmada na matéria – não mais tem o condão de afetar a integridade jurídica dos atos processuais, cuja validade há de ser aferida com base no ordenamento positivo vigente à época de sua efetivação”, acrescentou Celso de Mello, baseando-se no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº. 78026, relatado pelo ministro Octavio Gallotti. O Ministro Celso de Mello fundamentou-se, também, no julgamento de questão de ordem suscitada no Inquérito nº. 571/DF, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Naquele julgamento, a Suprema Corte reformulou antiga orientação de jurisprudência firmada nos Inquéritos nºs.141/SP e 342/PR, relatados, respectivamente, pelos Ministros Soares Muñoz e Octavio Gallotti. Pela antiga jurisprudência, a posse de membro do Congresso Nacional implicava a anulação de atos processuais anteriormente praticados em processo contra ele.
Seguindo a mesma orientação, por unanimidade a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu o Habeas Corpus nº. 94705 e manteve em curso a ação penal que tramitava na Justiça do Rio de Janeiro. A defesa alegava que as provas que o levaram à prisão não foram obtidas pelo foro adequado, uma vez que ele foi eleito Deputado Estadual. Sustentou que a ação penal deveria ser anulada desde o início, porque não foi analisada pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, foro responsável por julgar parlamentares estaduais. Segundo o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, o Ministério Público informou que os atos considerados ilegais pela defesa foram repetidos, antes mesmo do oferecimento da denúncia. A Primeira Turma considerou ainda que os atos são anteriores à diplomação do paciente como Deputado Estadual, o que não inviabiliza tais provas.
O Ministro Celso de Mello, em decisão proferida no Inquérito nº. 3927, ordenou a devolução dos autos ao Magistrado de 1ª. instância que, prematuramente, havia encaminhado processo penal contra candidato eleito Senador da República, porém ainda não diplomado pela Justiça Eleitoral.O fundamento dessa decisão apoia-se no artigo 53, parágrafo 1º, da Constituição da República, que só confere prerrogativa de foro a Deputados Federais e Senadores da República após a expedição do diploma: "A competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, como se sabe, tratando-se de membro do Congresso Nacional, somente se instaura a partir da expedição do diploma, conforme prescreve, de modo expresso, o art. 53, § 1º, da Constituição da República. Enquanto não sobrevier a diplomação, o candidato, embora eleito para qualquer das Casas do Congresso Nacional, não dispõe de prerrogativa de foro ratione muneris, prevista no texto constitucional (CF, art. 102, I, “b” e “c”), da mesma forma como não sofre as incompatibilidades a que se refere o inciso I do art. 55 da Lei Fundamental. Desse modo, a outorga de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, não se concretiza com a mera eleição para qualquer das Casas que compõem o Poder Legislativo da União. O fato indiscutível, no caso, é que ainda não assiste competência a esta Suprema Corte para, em sede originária, adotar, decidir ou ordenar qualquer medida ou diligência, inclusive de natureza cautelar, no âmbito deste procedimento penal. Observo que a denúncia contra o candidato eleito (mas sequer diplomado) não foi recebida, falecendo competência a esta Suprema Corte, no presente momento, para formular, quanto a tal peça acusatória, o pertinente juízo (positivo ou negativo) de admissibilidade."
Ressalte-se que na hipótese do acusado passar a ter prerrogativa de função no decorrer de uma ação penal, o recurso já interposto deverá ser julgado pelo órgão ad quem competente; neste sentido, confira-se esta decisão do Supremo Tribunal Federal:
“Inquérito nº. 2.605-SP - Relator Ministro Menezes Direito: eleito o denunciado como Deputado Federal durante o processamento do feito criminal, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar o recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público estadual contra a sentença de 1º grau que, antes da posse do novo parlamentar, não recebeu a denúncia.”
Neste sentido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manteve decisão que deferiu a realização de diligências requeridas pelo Ministério Público Federal, destinadas a elucidar o possível envolvimento de um Deputado Federal. Em razão da investidura do denunciado no cargo de Deputado Federal, o julgamento do recurso interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais contra a decisão que rejeitou a denúncia foi apreciado pelo Supremo. (Inquérito nº. 2727).
Por outro lado, “uma vez iniciado o julgamento de Parlamentar na Suprema Corte, a superveniência do término do mandato eletivo não desloca a competência para outra instância.” (Supremo Tribunal Federal – Pleno – Inquérito nº. 2.295 – Relator Ministro Sepúlveda Pertence – Relator para o acórdão Ministro Menezes Direito).
Feitas estas considerações iniciais, observa-se que o art. 29, X da Constituição Federal determina o julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça. Se o Prefeito, porém, vier a cometer um delito da alçada da Justiça Comum Federal (por exemplo, desvio de recursos federais sujeitos à fiscalização da União) a competência será do respectivo Tribunal Regional Federal, segundo entendimento firmado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RT 745/479 e JSTF 177/340).
A propósito, há duas súmulas do Superior Tribunal de Justiça e uma do Supremo Tribunal Federal, a saber: “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.” (Súmula 208). “Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.” (Súmula 209). A competência do Tribunal de Justiça para julgar Prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau.” (Súmula 702, esta do Supremo Tribunal Federal).
Já o art. 96, III estabelece a competência dos Tribunais de Justiça para processar e julgar os Juízes de Direito e os membros do Ministério Público estadual, ressalvando-se a competência da Justiça Eleitoral (leia-se: dos Tribunais Regionais Eleitorais).
Neste caso, ainda segundo entendimento jurisprudencial respaldado principalmente no art. 108, I, “a” da Constituição Federal, mesmo que o delito seja, em tese, da competência da Justiça Comum Federal, o julgamento será perante o Tribunal de Justiça do Estado onde atue o autor do fato (JSTJ 46/532), ainda que a infração penal tenha sido praticada em outro Estado da Federação, pois, a competência pela prerrogativa de função sobrepõe-se, in casu, à territorial.
Atentar, porém, que os Juízes de primeira instância convocados para Tribunais de Justiça para exercer a função de Desembargador não têm a prerrogativa de foro prevista no art. 105 da Constituição Federal. A prerrogativa é vinculada ao cargo e não ao eventual exercício da função em substituição.
O entendimento é da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. A decisão da Corte Especial ocorreu no julgamento de um Agravo Regimental em representação contra uma Juíza da Bahia. Em decisão monocrática, o Ministro Arnaldo Esteves Lima já havia negado conhecimento à representação por entender que a juíza não tem foro privilegiado no Superior Tribunal de Justiça. Por unanimidade, a Corte Especial manteve o entendimento do Ministro Arnaldo Esteves Lima e negou o agravo. O entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça é o de que o foro por prerrogativa de função visa proteger o cargo e não seu ocupante eventual.[5]
Por sua vez, a competência para julgar os Juízes Federais, do Trabalho e Militares (da Justiça Militar Federal) e os membros do Ministério Público da União (salvo os que oficiem perante Tribunais, que serão julgados pelo Superior Tribunal de Justiça) é do Tribunal Regional Federal da área da respectiva jurisdição ou atribuições, ressalvando-se, também, a competência da Justiça Eleitoral (art. 108, I, “a” da Constituição Federal).
Nos arts. 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”, vem estabelecida a competência criminal, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Pois bem.
O art. 125, parágrafo primeiro da Constituição Federal estabelece que os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos na Constituição, ressalvando que a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
Corroborando o dispositivo constitucional, o Ministro Gilmar Mendes concedeu liminar no Habeas Corpus nº. 110496, quando teve a oportunidade de afirmar que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que dispositivo de constituição estadual que estabelece prerrogativa de foro a vereador é constitucional e observa o princípio da simetria”. (grifamos).
Por exemplo, no Estado da Bahia, a Constituição estabelece a competência “ratione personae” no art. 123, I, “a”, determinando ser do Tribunal de Justiça a competência para julgar o Vice-Governador, Secretários de Estado, Deputados Estaduais, o Procurador-Geral do Estado, os Defensores Públicos, dentre outras autoridades públicas. Neste aspecto, a diferença entre os diversos Estados da Federação, pode-se afirmar, é mínima.
E os vereadores? Pode uma Constituição Estadual dar-lhes prerrogativa de foro? Para nós, não, pois fere o princípio federativo da simetria, que "exige uma relação simétrica entre os institutos jurídicos da Constituição Federal e as Constituições dos Estados-Membros", como explica Francisco Mafra.[6]
Gabriel Marques anota que "a explicação do princípio da simetria pode ser compreendida no âmbito das limitações ao Poder Constituinte Derivado Decorrente, ou seja, dentro daquilo que condiciona o exercício das atividades de elaboração e modificação das Constituições Estaduais no Brasil (cf. artigo 25 da CF/88, c/c o artigo 11 do ADCT). Sendo assim, pode-se dizer que, em regra, cada Constituição Estadual deve ter por inspiração a Constituição Federal, sendo que a organização de diversos institutos atende a esta lógica. (...) É possível dizer, então, que o princípio da simetria significa adotar a essência dos institutos regrados pela Constituição Federal e aplicá-la, mutatis mutandis, às demais esferas federativas, realizando-se, portanto, as adaptações necessárias. Desta forma, assegura-se a preservação da essência do regramento descrito pela Constituição Federal, atendendo, também, às especificidades regionais." (grifo no original).[7]
Com este mesmo entendimento, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal acabou de decidir que a existência de foro por prerrogativa para vereadores serem julgados no Tribunal de Justiça não gera a anulação das provas produzidas por outra instância. Segundo a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, os crimes comuns praticados por vereadores devem ser julgados pelo Tribunal de Justiça. No julgamento de agravo regimental no Recurso Extraordinário nº. 632343, a Turma entendeu que a existência da previsão na Constituição Estadual não é suficiente para levar à anulação das provas.
Segundo voto-vista do Ministro Luiz Fux, há jurisprudência do Supremo firmada nesse sentido. “A competência eventual do Tribunal de Justiça para julgar vereadores, de duvidosa constitucionalidade, não é apta a gerar a nulificação de todas as provas produzidas”, afirmou (grifamos). O Ministro Marco Aurélio seguiu o mesmo entendimento, observando ainda que, à época da decisão do Juiz Federal pela produção das provas (escutas telefônicas), havia decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro declarando a inconstitucionalidade da previsão relativa ao foro dos vereadores. Para o Ministro Marco Aurélio, não é possível à Constituição estadual ampliar a competência especial prevista na Constituição Federal, segundo a qual tem foro nos tribunais de Justiça apenas os prefeitos. Com voto da presidente da Turma, Ministra Rosa Weber, no mesmo sentido, o colegiado por unanimidade negou provimento ao recurso.
Aliás, “o Estado-membro não tem competência para estabelecer regras de imunidade formal e material aplicáveis a Vereadores. A Constituição Federal reserva à União legislar sobre Direito Penal e Processual Penal. As garantias que integram o universo dos membros do Congresso Nacional (CF, artigo 53, §§ 1º, 2º, 5º e 7º), não se comunicam aos componentes do Poder Legislativo dos Municípios. Precedentes. Ação direta de inconstitucionalidade procedente para declarar inconstitucional a expressão contida na segunda parte do inciso XVII do artigo 13 da Constituição do Estado de Sergipe.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 371/SE, Relator Ministro Maurício Corrêa).
Evidentemente que não se discute a inviolabilidade dos vereadores, isto é, a sua imunidade parlamentar material, expressamente prevista no texto constitucional, no art. 29, VIII, garantindo a inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município.
“Nos limites da circunscrição do município e havendo pertinência com o exercício do mandato, garante-se a imunidade do vereador”, conforme decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao dar provimento ao Recurso Extraordinário nº. 600063, com repercussão geral reconhecida. Os Ministros entenderam que, ainda que ofensivas, as palavras proferidas por vereador no exercício do mandato, dentro da circunscrição do município, estão garantidas pela imunidade parlamentar conferida pela Constituição Federal, que assegura ao próprio Poder Legislativo a aplicação de sanções por eventuais abusos. Segundo o acórdão, as críticas não se circunscreveram à atividade parlamentar, ultrapassando “os limites do bom senso” e apresentando “deplorável abusividade”. A maioria seguiu o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, que abriu a divergência em relação ao voto do relator, Ministro Marco Aurélio. O Ministro Barroso explicou que, embora considere lamentável o debate público em que um dos interlocutores busca desqualificar moralmente o adversário, ao examinar o caso em análise, verificou que as ofensas ocorreram durante sessão da Câmara Municipal e foram proferidas após o recorrente ter tomado conhecimento de uma representação junto ao Ministério Público contra o então prefeito municipal e solicitado que a representação fosse lida na Câmara.
O Ministro destacou que, ainda que a reação do vereador tenha sido imprópria tanto no tom quanto no vocabulário, ela ocorreu no exercício do mandato como reação jurídico-política a uma questão municipal – a representação apresentada contra o prefeito, o que a enquadraria na garantia prevista no artigo 29 da Constituição. “Sem endossar o conteúdo, e lamentando que o debate público muitas vezes descambe para essa desqualificação pessoal, estou convencido que aqui se aplica a imunidade material que a Constituição garante aos vereadores”, argumentou o Ministro Barroso. Ao acompanhar a divergência, o Ministro Celso de Mello lembrou que o abuso pode ser objeto de outro tipo de sanção no âmbito da própria casa legislativa, que pode submeter seus membros a diversos graus de punições, culminando com a cassação por falta de decoro. A ministra Rosa Weber observou que a imposição de uma valoração específica a cada manifestação de membro do Legislativo Municipal retiraria a força da garantia constitucional da imunidade. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 600063.
Também gozam os vereadores da imunidade processual de ficarem custodiados em cela especial nos termos do art. 295. II do Código de Processo Penal.
Para concluir, observamos que as pessoas cuja prerrogativa de função vem estabelecida exclusivamente na Constituição Estadual, serão julgadas pelo Tribunal do Júri (e não pelo Tribunal de Justiça), quando cometerem um crime doloso contra a vida (Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal). Da mesma forma, se cometerem crime eleitoral serão julgados pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral e se praticarem delito da competência da Justiça Comum Federal (art. 109, CF/88), serão processados e julgados perante o Tribunal Regional Federal, prevalecendo, então, as disposições da Carta Magna (mutatis mutandis, e como muito mais razão, veja-se a Súmula 702 do Supremo Tribunal Federal, acima transcrita).
Notas e Referências:
[2] Sobre a distinção entre função, cargo e emprego público conferir Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 14a. ed., 2001, pp. 437 a 440.
[3] Processo Penal, Vol. II, Saraiva: São Paulo, 24a. ed., 2002, p. 126.
[4] Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda., 1945, pp. 222/223.
[5] Fonte: Revista Consultor Jurídico (14/03/2008).
[6] http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=858, acessado dia 04 de março de 2015.
[7] http://portalconstitucional.blogspot.com.br/2011/06/simetria-ctrl-c-ctrl-v-mutatis-mutandis.html, acessado dia 04 de março de 2015.
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
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