O uso do Direito Penal na tutela da honra do Estado

18/08/2016

Por Leonardo Marques Vilela e Joyce Meireles - 18/08/2016

Nesta semana a justiça do Rio de Janeiro determinou a apreensão dos passaportes de atletas norte-americanos a pedido da delegacia de polícia de atendimento ao turista.

Segundo as matérias jornalísticas narraram, a decisão visava esclarecer divergências entre as versões dos nadadores (supostas vítimas).

Como os fundamentos para a decisão não foram informados, somente podemos conjecturar sobre a fundamentação.

É completamente descabido uma medida cautelar para restrição da liberdade de uma vítima de um crime. Mas embora tenha sido explorado a condição de supostas vítimas, o que se investigava efetivamente era a veracidade da narrativa dos atletas. Ou seja, eram eles suspeitos de um delito, não vítimas.

Mas qual delito?

É pouco crível a ocorrência do tipo penal disposto no art. 339 do Código Penal. Explicamos:

O tipo penal exige que o agente dê causa a instauração de investigação policial, de processo judicial ou investigação administrativa.

Ao que consta da matéria jornalística[1] os atletas não deram causa a instauração da investigação. Segundo a notícia citada, os próprios policiais afirmaram que “o caso sequer seria registrado e só foi tornado público porque a mãe de um deles, Ryan Lochte, relatou o suposto assalto à mídia internacional. A partir daí, a polícia abriu o inquérito e os convidou a prestar depoimento.” [2]

Cezar Roberto Bitencourt afirma em seu Tratado de Direito Penal[3] que a denunciação é caráter essencial do tipo penal. Sendo assim, se não houve denunciação, não se pode falar em na ocorrência do delito tipificado no art. 339 do Código Penal.

O tipo ainda descreve que o agente, no ato de denunciar alguém, deve imputar a esta pessoa crime de que sabe ser ela inocente. No caso dos atletas, eles não imputaram crime a pessoa determinada.

Sendo assim, conforme os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt podemos concluir pela inocorrência do delito tipificado no art. 339 do Código Penal:

“são três portanto os requisitos necessários para caracterização do delito: a) sujeito passivo determinado; b) imputação de crime e c) conhecimento da inocência do acusado”[4]

Também não caberia a imputação ao art. 340 do código penal, isso porque o tipo exige ainda que o agente provoque a ação de autoridade, o que não aconteceu. Já que, conforme a notícia citada, a instauração se deu de ofício.[5]

Ou seja, não houve o elemento subjetivo geral do crime (dolo), que seria a vontade dos atletas em notificar à polícia judiciária de crime que tinham a consciência que não ocorreu.

Mas ainda que houvesse a ocorrência de um destes delitos, é questionável a imposição da apreensão de passaporte, possivelmente como cautelar diversa da prisão (art. 319 CPP).

Caso a decisão tenha se fundamentado no art. 319, ou seja, como cautelar diversa da prisão, seria necessário a demonstração dos requisitos para tanto. O prof. Aury Lopes Jr[6] ensina que é necessário o fumus commissi delicti (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria) e o periculum libertatis (perigo que decorre do estado de liberdade do imputado).

Aqui também é de difícil compreensão uma eventual cautelar. Isso porque, não está claro o periculum libertatis. E não podemos concluir pelo perigo simplesmente porque os atletas residem em outro país, como já decidiu em alguns precedente o Superior Tribunal de Justiça[7].

É indubitável que a imagem do Rio de Janeiro e do Brasil sofreu um dano pela exposição do suposto roubo e suas circunstâncias contra atletas campeões e reconhecidos no mundo todo. Mas o caminho para reparar este dano não se mostra viável no uso do Direito Penal e Processual Penal como método de vingança contra os atletas.

Devemos ter respeito aos princípios limitadores do poder punitivo do Estado, especialmente no uso do Direito Penal como ultima ratio.


Notas e Referências:

[1] http://glo.bo/2b0ZOND

[2] http://glo.bo/2b0ZOND

[3] “a denunciação caluniosa, feita de forma direta ou indireta tem como caráter essencial a espontaneidade, isto é, deve ser da exclusiva iniciativa do denunciante” Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva p. 322.

[4] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. p. 321.

[5] “pune-se a conduta de quem provoca (motiva, dá causa) a ação de autoridade (policial ou judiciária), comunicando a ocorrência de infração penal (crime ou contravenção) que sabe não ter acontecido)” Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva p. 334.

[6] Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal. 11ed São Paulo: Saraiva. p. 806.

[7] STJ – HC 106839/AM – 5ª T. – Rel.ª Min.ª Laurita Vaz – DJe de 24.11.08


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Leonardo Marques Vilela é Mestrando em Direito Público, Advogado, Professor da PUCMG.

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Joyce Meireles é Especialista em ciências penais (contributos da psicanálise), Advogada.

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Imagem Ilustrativa do Post: Michael Phelps, Davis Tarwater // Foto de: Aringo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/aringo/7479766630/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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