O USO CONSCIENTE DE TELAS E DISPOSITIVOS DIGITAIS POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES BRASILEIROS

30/01/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho acadêmico objetiva contribuir com as atuais discussões sobre a temática do uso consciente de telas e dispositivos digitais para crianças e adolescentes. Ancorados na abordagem dedutiva, por meio de um procedimento comparativo, adotamos a técnica a pesquisa documental indireta, via pesquisa bibliográfica.

Apesar dos benefícios e malefícios – alguns de compreensão comum e outros não –, o entendimento constitucional é importante para apontar o caráter jurídico da questão, seguido, ainda, pelas legislações específicas: Estatuto da Criança e do Adolescente e Convenção sobre os Direitos da Criança.

Os posicionamentos doutrinários deste tema serão abordados a fim de enfatizar a aplicação da doutrina da proteção integral, base do Estatuto da Criança e do Adolescente, e a necessidade de garantir o superior interesse da criança, especialmente no que tange ao uso responsável de dispositivos digitais e tecnológicos em geral, que podem afetar o seu desenvolvimento saudável.

 

2 USO DE TELAS E DISPOSITIVOS DIGITIAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS E COTIDIANOS

A partir da década de 1960, a internet deu os primeiros passos e o uso das tecnologias em geral cresceu de forma desmedida em todos os países. A frequência do acesso de alguns países desenvolvidos a este recurso virtual teve o apontamento de 80% de alcance da população. Em relação ao Brasil, é possível dizer que “apesar de os números serem menores, ainda indicam um alto percentual de números de usuários” (Pessoa; Sena; Muniz, 2022, p.23).

Neste sentido, podemos apontar que, conforme os “estudos realizados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), setenta e um por cento dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet no ano de 2019” (Pessoa; Sena; Muniz, 2022, p.23). Além disso, devido à pandemia de Covid-19, o número aumentou, pois todas as instituições de ensino suspenderam as atividades presenciais conforme orientações expedidas pelo governo federal.

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) estão presentes na rotina da maioria da população, através de mídias digitais, ferramentas de interação e entretenimento. Com o passar dos anos, há o aumento de inserção das TICs no cotidiano de crianças e adolescentes, visto existirem estudos constatando que o público infantojuvenil aprende a usar tais recursos de forma autodidata, por meio do uso de celulares e tablets, antes mesmo de completarem dez anos de idade (Pessoa; Sena; Muniz, 2022).

Geralmente o uso citado acima decorre do interesse em assistir a desenhos, por exemplo, diferentemente do uso de softwares e meios eletrônicos para fins educacionais, muitas vezes oferecidos pelas escolas – tanto públicas quanto privadas.

No primeiro caso, muitas crianças e adolescentes não detêm monitoramento, seja eletrônico – via aplicativos previamente instalados pelos pais e responsáveis –, seja presencial. No segundo caso, temos a obrigação das referidas instituições de controlar o acesso, bem como oferecer os devidos equipamentos eletrônicos.

A falta de monitoramento, vinculada à rápida evolução tecnológica e à crescente exposição de crianças e adolescentes a dispositivos digitais, demanda, assim, uma ação imediata para assegurar a proteção de seus direitos fundamentais.

 

2.1 Doutrina da Proteção Integral

A Doutrina da Proteção Integral é expressa no caput do artigo 227 da CRFB/1988, atribuindo como dever para família, sociedade e Estado, a asseguração de absoluta prioridade para crianças e adolescentes quanto aos seus direitos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988, p. 133).  

Neste sentido, crianças e adolescentes encontram-se na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, sendo necessário serem auxiliados e salvaguardados, pois, além de serem cidadãos de sujeitos de direitos, vivenciam uma etapa de formação especial para permitir o desenvolvimento de forma plena e saudável (Feiber, 2020).

O artigo 227 da CRFB/1988 é o ponto inicial para o desenvolvimento da Lei nº 8.069/90, visto tratar-se de um inovador e verdadeiro projeto social, bem como marco histórico-legal brasileiro que reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direitos (Feiber, 2020).

Adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a Doutrina de Proteção Integral é “uma verdadeira teoria geral, envolvendo esclarecimentos prévios e jurídicos” (Ishida, 2023, p.23), visto que a legislação especial é “baseada no reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas as crianças e adolescentes” (Ishida, 2023, p.24).

O caput do artigo 4º da Lei nº 8.069/90 é uma consonância com o explanado pela CRFB/1988, considerando a Doutrina da Proteção Integral como uma doutrina jurídica de dois fatores: crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e estão em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (Feiber, 2020):

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil, 1990).

As mudanças resultantes desta doutrina podem ser destacadas como uma ampliação de garantias, promovendo maior qualidade de vida, participação direta e ampla nas relações jurídicas, mas, principalmente, da importância nas fases do desenvolvimento físico e mental.

 

2.2 Superior Interesse da Criança

Conhecido, também, como “princípio do superior interesse”, ou ainda como “melhor interesse da criança”, atribuiu “à criança e ao adolescente o grau, a condição de sujeito” (Veronese, 2021, p.109). Independentemente de qualquer situação, quando houver criança e/ou adolescente envolvido(s), a decisão deve indicar o cuidado, o interesse e a especial proteção.

Trata-se de um princípio vinculado aos direitos das crianças e dos adolescentes, sendo que o poder público, representado pelas autoridades e pelos legisladores, deve sempre ter os sujeitos de direitos como maior interesse.

A ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989, pelo Brasil, resultou na incorporação do princípio “melhor interesse”, na construção de um indicativo em todas as normativas internas alteradas, sendo destacado pelo artigo 5º, §2º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Veronese, 2021).

A CRFB/1988 e a Lei nº 8.069/90 ressaltam, ainda, que tal princípio deve pautar as condutas dos respectivos agentes citados, bem como da família, do Estado e, inclusive, da sociedade em geral (Feiber, 2020).

Desta forma, podemos resumir que o princípio em questão é orientador, sendo os sujeitos de direitos, crianças e adolescentes, dotados de duas grandes proteções: integral e prioridade absoluta de direitos.

 

2.3 Direitos estabelecidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança

Em 20 de novembro de 1989, a Assembleia das Nações Unidas aprovou, por unanimidade, a Convenção sobre os Direitos da Criança, após dez anos de trabalho de elaboração desse documento jurídico internacional (Veronese, 2019).

O Brasil é signatário e reafirma que crianças são seres vulneráveis, necessitando de cuidados e proteções especiais, seja de forma legal, dentro de seu seio familiar, ou perante a sociedade.

O documento internacional influenciou e aprofundou o conteúdo disposto na Constituição Federativa do Brasil de 1988 e, também, no Estatuto da Criança da Criança e do Adolescente, porém, no tema proposto, cabe ressaltar os Protocolos Facultativos, referenciais maiores sobre a visibilidade aos direitos das crianças (Veronese, 2019).

O Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativos à venda de criança, à prostituição infantil e à pornografia infantil – Decreto nº 5.007, de 8 de março de 2004 –, foi promulgado pois a “internet e todo o conjunto de modernas tecnologias têm sido utilizadas para fins escusos, como a pornografia infantil, tema destaque na Conferência Internacional sobre o Combate à pornografia infantil na Internet (Viena, 1999)” (Veronese, 2019, p. 144).

O protocolo em questão é constituído de 17 artigos, porém seu principal objetivo é criminalizar, em todo o globo terrestre, o mundo da produção, distribuição, exportação, transmissão, importação, posse internacional e propaganda de pornografia infantil, bem como enfatizar a cooperação e a parceria, de forma mais estreita, entre todos os governos e a internet (Veronese, 2019).

No mundo globalizado em que vivemos, proteger nossas crianças de quaisquer tipos de prejuízos e/ou violências é dever de todos: familiares, governantes, profissionais de todas as áreas e da sociedade como um todo.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Governo Federal Brasileiro lançou a consulta pública sobre o uso consciente de telas e dispositivos digitais por crianças e adolescentes para reunir especialistas em diversas áreas para preparação de um Guia Oficial com orientações sobre o tema.

Diversos pesquisadores das áreas da saúde, como psicologia e oftalmologia, declaram que o modelo de rede digital afeta o desenvolvimento infantil quando seu uso é excessivo ou inadequado, resultando no aumento de índices de doenças mentais, como ansiedade e depressão, bem como em problemas de visão, como miopia. Outros profissionais vinculam o excessivo uso de telas e dispositivos digitais a mecanismos que afetam a saúde do sono e acarretam distúrbios de atenção e, também, do sono, além da obesidade.

No campo jurídico, podemos citar riscos como ameaças ao uso de dados pessoais, bem como à privacidade, seguidos pelas violências sexuais cibernéticas, seja pelo abuso, seja pela vitimização sexual. Infelizmente situações envolvendo o cyberbullying resultam em vítimas infantojuvenis com maior ideação suicida e automutilação.

Assim, temos um grande desafio nacional para prevenir tais danos às crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos, através de política pública, mediante criação de programas de prevenção e canais de denúncias. Entretanto, o monitoramento através dos pais é, também, um importante fator de proteção.

 

Notas e referências                                                                      

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 31 dez. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgada em 13 de julho de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#:~:text=Art.%206%C2%BA%20Na%20interpreta%C3%A7%C3%A3o%20desta,adolescente%20como%20pessoas%20em%20desenvolvimento. Acesso em: 31 dez. 2023.

FEIBER, Vitória Sell. A doutrina da proteção integral: concepção e princípios. In: VERONESE, Josiane Rose Petry, (autora e organizadora). Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 509-534.

ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência. 23. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023.

PESSOA, Alex Sandro Gomes; SENA, Bárbara Cristina Soares; MUNIZ, Haryadny K. Macedo. Violência em tela: crimes virtuais e digitais contra crianças e adolescentes. 1. ed. Curitiba: Appris, 2022.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os direitos da criança: 30 anos. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

 

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