O TEMPO, O ESPAÇO E O DIREITO DIGITAL: O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO ENQUANTO INSTRUMENTO DE DESENCAIXE SOCIOCULTURAL[IZANTE]

14/11/2018

Coluna Espaço do Estudante

CONTEXTUALIZANDO O DEBATE

A presente discussão científica tem como objetivo analisar o fenômeno da globalização enquanto mecanismo de desencaixe social e cultural no âmbito das novas perspectivas traçadas pelo direito digital. Esta tese é fulcrada na ideia de tempo, espaço, desencaixes e globalização propostos por Anthony Giddens em sua obra “As Consequências da Modernidade”. A ideia aqui desenvolvida, ademais, faz um paralelo entre a questão do direito digital e o fenômeno da globalização, este, sob a perspectiva de Giddens.

Os materiais utilizados como base da pesquisa foram doutrina nacionais e estrangeiras. A tese utiliza-se do método dedutivo de investigação. Salienta-se, outrossim, que a pesquisa não tem o escopo de findar a discussão sobre as interfaces do direito digital com a questão da globalização. Pelo contrário, o objetivo é iniciar e ampliar a discussão crítica sobre o tema.

 

 

O DIREITO DIGITAL GLOBALIZADO: A TESE

A questão do direito digital extrapola os limites da territorialidade de um Estado e da própria compreensão do espaço e do tempo, pois como é bem verdade, a busca pelo conhecimento e desenvolvimento sócio-humanitário não conhece as fronteiras políticas estabelecidas pela sociedade. É o processo de globalização que impõe aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e principalmente desencaixes socioculturais, dos quais, o direito digital não pode ser excluído.[1]

A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Esse é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção inversa às relações muito distanciadas que os modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço.[2]

 

É necessário enfrentar a vertente questão do direito digital (ou virtual) com ênfase em uma reflexão sobre os impactos da globalização na compreensão do tempo e do espaço na sociedade, afastando-se, nesse aspecto, a ideia segundo a qual a globalização é, como o próprio substantivo tende a sugerir, global, mundial. Em tempos de globalização, o sentimento de domínio do tempo em determinado espaço tornou-se muito pequeno para todas as complexidades da vida, ao mesmo passo que se tornou muito grande para os pequenos problemas da vida[3].

Considerando que o direito digital, dada a sua natureza, se estabelece em um ambiente em que as questões jurídicas e sociais possuem diferentes perspectivas, sua ideia se apresenta sob o crivo da multidisciplinaridade, estando presente em praticamente todas as áreas da ciência jurídica, notadamente no meio virtual. A respeito, Alexandre Atheniense, leciona:

 

O material e o Processual Civil (assinatura digital, responsabilidade civil, invasão da privacidade e destruição de propriedade virtual ou informatizada; provas ilícitas; direitos autorais sobre software e hardware; atividades irregulares no processo; composição judicial por meios eletrônicos), Penal (diferenciação dos crimes de informática puros e impuros; valoração e pena; discussão acerca da tipicidade ou inaplicabilidade de dispositivos velhos em atividades realizadas através de aparelhagem eletrônica), Tributário (tributação de atividades econômicas realizadas no mundo virtual, distinção das atividades, aplicação ou não de certas normas tributárias; incidência tributária territorial; regulamentação e legitimação da informática como uma forma de pagamento, declaração de imposto) e até Trabalhista (nos casos de trabalho realizado à distância através de instrumentos informatizados).[4]

 

Sem embargo, é possível afirmar que as exigências do direito digital de hoje são, em verdade, consequências da modernidade, uma vez que as normas que regulam a sociedade caminham de forma mais lenta que a tecnologia como um todo. Anthony Giddens há tempo já alertava para um entrelaçamento entre o local e o global (a sociedade convergente do direito digital). Para Giddens:

 

O primado do lugar nos cenários pré-modernos tem sido destruído em grande parte pelo desencaixe e pelo distanciamento tempo-espaço. O lugar se tornou fantasmagórico porque as estruturas através das quais ele se constitui não são mais organizadas localmente. O local e o global, em outras palavras, tornaram-se inextrincavelmente entrelaçados. Sentimentos de ligação íntima ou identificação com lugares ainda persistem. Mas eles mesmos estão desencaixados: não expressam apenas práticas e envolvimentos localmente baseados, mas se encontram também salpicados de influências muito mais distantes. Até a menor das lojas da vizinhança, por exemplo, pode muito bem obter suas mercadorias de todas as partes do mundo.[5]

 

Imperioso reconhecer que, se de um lado a tecnologia caminha de forma mais acelerada do que as próprias normas que a regula, por outro, em atenção à coerência e ao desenvolvimento social, o direito como um todo deve buscar-se acompanhar dos avanços tecnológicos. Porém, pautado sempre nos princípios basilares da justiça, objetivo de toda e qualquer norma, e isso considerando que o direito é o meio pelo qual se busca a justiça, e também que das mazelas jurídicas, políticas e sociais, a utopia da justiça talvez seja (é) a esperança do mundo melhor e quiçá o combustível daqueles que administram os Estados.

A ideia de que a globalização promove, o redimensionamento de espaços e tempos na sociedade, também é abordada por Octavio Ianni. Segundo o autor:

 

A fábrica global instala-se além de toda e qualquer fronteira, articulando capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social e outras forças produtivas. Acompanhada pela publicidade, a mídia impressa e eletrônica, a indústria cultural, misturadas em jornais, revistas, livros, programas de rádio, emissões de televisão, videoclipes, fax, redes de computadores e outros meios de comunicação, informação e fabulação, dissolve fronteiras, agiliza os mercados, generaliza o consumismo. Provoca a desterritorialização e reterritorialização das coisas, gentes e ideias. Promove o redimensionamento de espaços e tempos.[6]

 

Mas por que o fenômeno da globalização deve ser compreendido enquanto instrumento de desencaixe sociocultural? Porque o avanço da tecnologia de comunicação (o direito virtual) traz, além de benefícios, problemas sociais, dentre os quais comportamentos irracionais diante do fato de estar conectado e de não estar conectado. Isso porque, hoje já se fala na existência de vício em internet (os ciberviciados). Trata-se de uma situação em que a condição de “estar conectado” extrapola a razoabilidade e chega ao diagnóstico de internet-dependência, ou seja, quando os sujeitos têm sua vida pessoal, profissional e sentimental afetada direta e permanentemente pela permanência exagerada na internet, havendo a existência de casos extremos de compulsão que levam ao desenvolvimento de doenças e à morte[7].

Sob outra perspectiva, o sentimento de “não estar conectado” acarreta em um sentimento de exclusão do mundo, o que leva ao sujeito à situações de depressão e inclusive de marginalização virtual, pois à medida em que o sujeito se afasta ou deixa de estar conectado com a sociedade convergente, menos atualizado e conectado com o aqui e o agora estará: um reflexo do desencaixe social proveniente da cultura de virtualização das relações interpessoais, ou melhor, intervirtuais.

Uma agravante do avanço da tecnologia na comunicação diz respeito ao fator tempo. Claro, pois se antes uma crise em um continente ou país demorava meses para ter seus efeitos no resto do mundo, agora são imediatos. Além do que, surge uma maior interatividade entre os seres humanos (aspecto central da sociedade convergente).[8]

Com o advento do direito digital internacionalizado, surgiram as sociedades convergentes (ou virtuais), ou seja, as comunidades que são interligadas no meio virtual. Não obstante, o aumento da distância entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos é uma das consequências da sociedade convergente (sociedade virtual), em razão do analfabetismo digital. Claro, uma vez que pessoas não preparadas para lidar com a tecnologia ainda são uma realidade na sociedade atual (sem contar os lugares em que a tecnologia ou o acesso à tecnologia de informação é zero ou praticamente inexistente ou precário), além de fenômenos como o da marginalização social também apresentar-se como uma consequência da sociedade virtual, posto que não basta saber ler e escrever, é necessário saber interagir virtualmente, como enviar um simples e-mail, por exemplo.[9] A respeito, cita-se:

 

As relações humanas e a expressão de manifestação de vontade tomam nova forma, ou seja, ocorrem por diferentes meios eletrônicos e em tempo real e por sua vez exigem novos conhecimentos na busca de provas. Deve-se considerar que, na Sociedade Digital, integra-se ao quadro de testemunhas, não apenas o ser humano, mas também as máquinas.  Imagine que em uma troca básica de emails entre duas pessoas, temos quatro testemunhas máquinas: a máquina do emissor e seu servidor (duas testemunhas) e a máquina do destinatário, bem como o servidor por ele utilizado caso seja diferente do emissor. Portanto, o meio digital permite que busquemos vestígios de uma ação por todo lugar onde passamos, ou melhor por onde passam as informações.[10]

 

É nesse aspecto que os efeitos da globalização em cada nação mundial passa a ser um novo fator de análise do [sub]desenvolvimento, pois a sociedade real passa a perder espaço para a sociedade convergente, sendo que a ideia de tempo e espaço transmudam para uma realidade virtual em que uma parcela do mundo apenas compartilha e compreende. Na sociedade virtual cria-se, metaforicamente, um jogo mundial no qual aquele que não sabe conectar-se é bloqueado.[11]

A globalização e a transmudação do espeço da sociedade e o tempo que esta despende para suas questões, traz consigo uma rediscussão do próprio conceito de soberania nacional, pois através da sociedade virtual as soberanias se entrelaçam, formando uma só soberania: a do conhecimento convergente; sem contar que já existe inclusive disputas travadas pela economia digital, pois informação é tempo, e tempo é poder.[12]

A convergência das sociedades virtuais (a globalização do conhecimento e informação), elimina a barreira geográfica e cria um ambiente de relacionamento virtual paralelo no qual todos estão sujeitos aos mesmos efeitos, ações e reações, ou seja, o espaço e o tempo formam um componente único e central, compartilhado no mesmo instante[13], pois nesse contexto, “novas formulações hão de ser criadas, outros equilíbrios devem ser encontrados, no plano dos contratos, da família, da sociedade e do próprio Estado, para que o Direito não seja uma espécie de “camisa-de-força” que impeça a boa utilização das novas técnicas, e que prevaleça um clima de cooperação dominado pela ética”[14].

Tradicionalmente, no concernente à questão do espaço, a demarcação do território de um Estado sempre foi definida por dois aspectos: (a) os recursos físicos do território e (b) o raio de abrangência de determinada cultura. Não obstante, na sociedade convergente do direito digital há uma quebra dessas duas barreiras. O mundo virtual cria um novo território, com dificuldades de demarcação, posto que a própria riqueza assume um caráter diferente, baseado no conhecimento e na informação, que são inesgotáveis e podem ser duplicadas infinitamente. No direito digital perde-se a noção do espaço e o tempo é relativizado e otimizado, uma vez que na internet, na maioria das vezes, não é possível reconhecer de onde o interlocutor está interagindo.[15]

Outrossim, para corroborar a perspectiva aqui abordada, mostra-se relevante destacar a interface das fichas simbólicas e dos sistemas-perito, proposta por Giddens, com o direito digital na globalização. Isso porque, a existência de fichas simbólicas, a exemplo do dinheiro, propicia o maior desenvolvimento dos sistemas perito, de modo que, aquele que não detém a ficha simbólica não deterá, por via de consequência, um sistema perito, o qual, por consectário lógico, será oferecido por quem tem. Aí, nasce um sistema de dominação social (o que reflete um desencaixe), pois aquele que não possui um sistema perito ou o possui sem aprimoramento, por uma questão de necessidade, se submeterá àqueles que o possuem, que, em última análise, lhe transmitirá maior grau de confiança, pois é detentor de um sistema perito, imprescindível na sociedade, enquanto o contratante não.

 

 

CONCLUINDO A REFLEXÃO

Destarte, a pensar assim em escala mundial, as economias em que o direito digital é vertente e rotineiramente aprimorado, serão mais desenvolvidas e se afastarão em grau acelerado das demais nações que não conseguem acompanhar, o que traz à tona a ideia de que a globalização, enquanto fenômeno, acarreta em um verdadeiro desencaixe sociocultural, pois a ideia de uma sociedade convergente, que a teoria do direito digital prega, na prática, ao menos por ora, apenas polariza o desenvolvimento das nações, posto que aqueles com maior potencial econômico terão maior desempenho e desenvolvimento enquanto aquelas subdesenvolvidas terão uma tendência maior à analfabetização e marginalização virtuais na sociedade convergente.

 

 

 

 

Notas e Referências

ATHENIENSE, Alexandre. Informatização e prática da advocacia no mundo contemporâneo, O Direito e as Novas Tecnologias, 01 dez. 2006. Disponível em: <http://www.dnt.adv.br/noticias/cibercultura/informatizacao-e-pratica-da-advocacia-no-mundo-contemporaneo-3/>. Acesso em: 01 set. 2018.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Unesp Fundação, 1991, p. 13-65.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Editora Civilização, 2002.

PERCíLIA, Eliene. Ciberviciado: vício por internet, Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/informatica/ciberviciado.htm>. Acesso em: 20 set. 2018.

PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016.

PINHEIRO, Patrícia Peck; SLEIMAN, Cristina Moraes. Direito digital e a questão da privacidade nas empresas, Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, a. 11, n. 55, jul. 2008. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2901>. Acesso em: 22 set. 2018.

SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Planeta terra: uma abordagem de direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

WALD, Arnoldo. Os contratos eletrônicos e o código civil. In: Direito e internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. Coordenação de Marco Aurélio Greco e Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 

[1] SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Planeta terra: uma abordagem de direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 30.

[2] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 76.

[3] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 77.

[4] ATHENIENSE, Alexandre. Informatização e prática da advocacia no mundo contemporâneo, O Direito e as Novas Tecnologias, 01 dez. 2006. Disponível em: <http://www.dnt.adv.br/noticias/cibercultura/informatizacao-e-pratica-da-advocacia-no-mundo-contemporaneo-3/>. Acesso em: 01 set. 2018.

[5] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 121.

[6] IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Editora Civilização, 2002, p. 19.

[7] PERCíLIA, Eliene. Ciberviciado: vício por internet, Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/informatica/ciberviciado.htm>. Acesso em: 20 set. 2018.

[8] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 67-71.

[9] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 67-71.

[10] PINHEIRO, Patrícia Peck; SLEIMAN, Cristina Moraes. Direito digital e a questão da privacidade nas empresas, Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, a. 11, n. 55, jul. 2008. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2901>. Acesso em: 22 set. 2018.

[11] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 67-71.

[12] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 67-71.

[13] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 84-88.

[14] WALD, Arnoldo. Os contratos eletrônicos e o código civil. In: Direito e internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. Coordenação de Marco Aurélio Greco e Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 15.

[15] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 84-88.

 

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