O Tempo, o Direito e o consequencialismo jurídico

14/05/2018

Somos o que queremos ser, sem ignorar o que fomos e, talvez, o que seremos a partir do que somos.

O que devemos ser? O que fomos? Somente o que somos.

Seremos sempre esse produto, do qual a ordem dos fatores não faz a diferença.

Ser é o grande desafio, pois existir independe de você.

Viu só (!), agora você é, sem importar o passado.

Porque, ao voltar lá no que passou, você encontrou o que está no seu futuro, não mais no presente já lido.

Há uma natural tendência nas relações humanas, sobretudo nas jurídicas, de perceber o tempo visto na intuitiva perspectiva linear (passado, presente e futuro), na permanente expansão do universo e de seus componentes, ao consolidar situações marcadas na própria linha do tempo linear, que caminha para uma única direção (o futuro).

Tal marcação e o tempo de sua consolidação tem uma relação direta com a força impressa e os efeitos exógenos que esse registro no tempo linear causa no fluxo expansionista universal.

Trocando em miúdos, se numa relação jurídica, um determinado fato é marcado na linha do tempo evolutivo, tal fato tende a não ser alterado em razão de desse determinado assentamento na linha temporal.

Nesse raciocínio, quanto maior o fluxo de tempo passado sobre tal marcação, maior é a sua consolidação no espaço.

Logo, trata-se de um retrato do tempo estancado em um determinado espaço que caminha ao longo da linha temporal linear sempre naquela mesma marcação e, assim, ao passar do fluxo temporal nesse registro espacial, é possível que determinados direitos, antes inexistentes, passem a existir por conta da determinação do tempo e do espaço ocorrida e, principalmente, dos efeitos que tal marcação espacial e temporal causam ao ambiente onde estão inseridos.

Assim determinado, alterar tal situação fática demanda um esforço de superação dos efeitos práticos dessa nova realidade diversa daquela estabelecida frente à marcação já consolidada.

Ou seja, faz-se necessário pensar nas consequências de tais ações, a considerar o contínuo fluxo temporal de forma linear conhecido e o recorte especial onde tal fato foi fincado e que, com o passar desse fluxo temporal, sua profundidade tende a aumentar.

Porém, se o tempo não for linear?

E como fica o direito, caso não mais considerar a popular lógica do ´começo, meio e fim´?

Se não for verdade que o ontem já aconteceu, o presente está acontecendo e o futuro acontecerá?

Se precisássemos reprogramar toda a nossa compreensão de tempo para poder, finalmente, entender o direito?

Atentem-se a um exemplo: uma pessoa doente em estado terminal, mas lúcida, pensa no presente sempre a se renovar ou pensará na morte resistindo à vida que ainda lhe resta?

Se essa pessoa pensar no futuro, pensará na morte ou na vida?

E se ela pensasse sobre o passado, pensaria na morte ou na vida?

A sua iminente morte será um fato jurídico que está prestes a acontecer, porém, será que já não aconteceu?

Depende da perspectiva estabelecida e essa multifacetária composição do direito é extremamente relevante para a manutenção do atual sistema jurídico, assim compreendido sob a dimensão da lógica temporal linear indicada.

Ao estabelecer uma determinada perspectiva e por ela ser guiada, por exemplo, é possível imaginar que essa pessoa já não passa mais seu cartão para registrar seu ponto no local onde trabalha.

Provavelmente, ainda nessa perspectiva, não pensará mais ou terá alguma preocupação com o relatório inacabado em seu computador do trabalho.

Sua morte já ocorreu nessa dimensão de sua atividade laboral?

É possível que sim, para si.

Sua morte já gerou efeitos como uma funcionaria falecida?

Certamente, não.

O subjetivo é estruturado na lógica do multitempo e o intersubjetivo por uma lógica de tempo linear?

Aparentemente, sim.

O que importa, então, nesse contexto, é determinar quais serão os efeitos trabalhistas da sua morte para a pessoa que será objeto principal desses efeitos jurídicos?

Ora, importa, juridicamente falando, ao morrer, as faltas funcionais que essa pessoa cometeu?

Os prêmios que ela ganhou, trará efeitos trabalhistas diversos da sua morte?

Não, pois a morte para ela logo chegará. Entretanto, para quem ainda não chegou?

Ora, qual a relevância jurídica para ela, nesse momento de quase morte, o que passou, o que está acontecendo e o inevitável fim?

Se juridicamente sente-se morta e biologicamente ainda não, porque a lógica linear não a traz para um novo ciclo e ali se encerra?

Provavelmente, porque tal lógica não é capaz de responder situações complexas que possuem reflexos jurídicos relevantes.

Contudo, morte não é um fato decorrente da vida?

Bom, se é de vida que estamos a falar, a lógica comum é: ´nascimento, desenvolvimento e morte´.

Será?

Quando a morte ocorre antes do nascimento (como um feto já vivo, por ex.)?

O próprio nascimento ´não ocorrido´ importa?

O futuro desenvolvimento já não aconteceu no passado (o tempo em que se desenvolveu no ventre da mãe, antes do nascimento)?

Qual é a perspectiva de tempo linear que temos, então?

O ´depende´, talvez, seja a resposta mais adequada para a presente reflexão.

Na verdade, é preciso superar as simplificações sobre o que vivemos e experimentamos, pelo simples fato de que o que é vivido e experimentado é algo absolutamente exclusivo de cada ser biótico.

A complexidade e a sofisticação necessária para a compreensão desses fenômenos individuais que são vistos de maneira coletiva é, talvez, o grande desafio da ciência contemporânea.

Por exemplo, como a humanidade vai saber sobre quem tem realmente razão acerca das verdadeiras cores do mundo externo: o daltônico ou não daltônico?

A tendência da ciência é estabelecer que a mutação biótica que deixa alguém daltônico é a errada daquela que deixa alguém não daltônico.

Por que?

Ora, pelo simples fato da maioria absoluta dos seres humanos não apresentarem daltonismo.

Logo, o critério hoje aceito é: se a maioria absoluta é assim, a outra forma está errada.

É uma simples lógica binária, como conceitos de ´bom ou mau´, ´feio ou bonito´, ´alto ou baixo´, etc.

Tais situações, quando refletem relações jurídicas, também são aptas a se encaixarem em uma simples lógica binária?

Creio que não mais deveria assim ocorrer.

As relações jurídicas, na verdade, são relações sociais intersubjetivas aceitas de forma a delimitar oposições ou pretensões resistidas em razão da necessidade de chancela de alguma relação social ou, quando frustrada, da superação da dúvida advinda dessa oposição ou pretensão resistida.

Desse modo, torna-se mais fácil regular as vontades e ´desvontades´ sociais quando tais relações se desenvolvem em um determinado tempo e espaço – e assim, faz-se possível mensurar as suas respectivas consequências.

Esse recorte no fluxo temporal e no território espacial constituído facilita a determinação de como os regulados devem se comportar para a plena viabilização do desenvolvimento esperado, decorrente do continuo e inescapável vínculo com o tempo.

Porém, tal raciocínio simples, aparentemente, não é mais suficiente para responder as questões jurídicas existentes e desenvolvidas pelos homens.

A tradicional relação ´causa e efeitos´, aparentemente, não é mais o fator determinante para se estabelecer o que é legal e o que é ilegal.

A complexidade das possíveis perspectivas humanas que devem ser absorvidas pelo Direito não mais se encaixa na rígida moldura de outrora.

É preciso pensar o Direito como um tecido flexível, talvez.

Em que valores, princípios e regras só rompam tal tecido quando o que foi feito, o que se faz e o que será realizado não sejam desproporcionais o bastante para a ruptura de tal tecido ao ponto de inviabilizar a sua costura e ´recostura´.

O Direito, então, talvez, seja o trilho das relações sociais mais complexo do que as próprias locomotivas que correm sobre ele.

Isso porque, o direito é o que querem que ele seja, conforme ocasião e lugar onde está estabelecido.

É direito aquilo que é convencido e aceito (ou vice e versa), de forma consensual, ou não.

Direito não se resume ao que é legal e ilegal. Ao certo e errado. Ao realizado ou inacabado.

E é por isso, possivelmente, que o direito tampouco Direito é.

Sim, certamente já foi e não é mais necessário, ou ainda não ocorreu e temos a certeza de sua existência.

Por que?

Ora, se direito fosse, não seria direito agora, tampouco a preocupação da proteção provável do direito em uma projeção temporal.

Ou seja, é Direito, porque é onipresente no que passou, no que acontece e no que ocorrerá.

Logo, de Direito tem pouco, de tempo tem muito e de lugar não tem nada (lembrem-se disso ao pensar em prescrição e decadência).

Ao saber que nesse fluxo não linear o propenso Direito foi fincado em um determinado lugar, o que resta é aguardar e testemunhar seus efeitos no passado, no presente ou no futuro.

Ou, provavelmente, verificar seus efeitos no futuro, no passado ou no presente.

Assim, para que se compreenda, então, o que estamos aqui a tratar, tente se lembrar do primeiro parágrafo deste texto (sem lá voltar e espiar).

Certamente, você imagina que está no seu passado.

Mas, se estava lá, desde quando leu, como agora pensa que é no seu futuro o seu lugar...e você nem percebeu?

O que lá estava voltou para de volta se apresentar e para frente do tempo ser lembrado: ´o que somos?´

 

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