O tempo não passa, o tempo de cada qual

20/11/2019

Sobre o tempo sempre se voltaram a física e a filosofia. Mais recentemente a genética pensa o tempo, estuda o desgaste do organismo, intenta prolongar nossa vida. Gosto de acompanhar o tanto que se produz de teoria sobre o assunto.  A mim, para o meu cotidiano, defini o tempo como o correr da vida. É que o tempo não corre; quem corremos somos nós. Vamos passando, passando, acaba.

Há outras definições, há equações, há filosofias, há até negações da existência do tempo. Não há discussão do existir da vida. Todo mundo sabe: ela começa, ela conclui. É o tempo. Esse tempo me fascina e me assusta. Fascina-me a ponto de me voltar a preenchê-lo, tanto quanto posso, que dele tanto gosto, com tão somente o que me apraz. Já, também, o tempo assusta-me de modo a eu investir tempo em encalçar mais tempo do que posso dispor.

“Mais do que um conceito único, o tempo se apresenta como uma força de inúmeras faces, e as discussões sobre essa força se estendem aos mais diversos campos de conhecimento, entre eles a biologia e a física. A vivência do tempo é uma condição de se estar no mundo, e é inerente a todos os seres vivos estar sob a ação dessa força da natureza” (Helena Mollo, http://migre.me/fssPQ).

O tempo, pois, não brinca, não é gentil; é implacável, acontece, impõe-se. Em um dado tempo incumbe-nos praticar a vida, sofrer a vida, gozar a vida. Cada um tem um tempo, é o tempo de viver. O tempo se nos apresenta de muitas maneiras. Duas nos interpelam a biologia e a consciência: o tempo como um fenômeno da natureza (o tempo da física), o tempo como uma construção cultural (o tempo da filosofia).

Vendo-se o tempo como natureza, ele apenas é: trata-se de um dado do mundo, nem mais nem menos; enquanto fenômeno da natureza, não seria explicável, mas apenas constatável. Nós é que passamos por esse tempo que não acontece. De fato, não é o tempo que se vai, quem se vai somos nós.

Já, como cultura, “existem três formas básicas para se perceber a existência do tempo: a repetição das coisas (gotas caindo de uma pia, o ciclo das estações do ano); a entropia nos objetos e em nós (nosso envelhecimento biológico, a maçã apodrecendo); e notando a passagem relativa de uma coisa em relação à outra (uma maçã ‘envelhece’ mais rápido que um homem). Todas essas formas de sentir o tempo mostram-nos que a sua regularidade não é uma parte intrínseca da natureza, e sim que é uma noção fabricada pelo homem” (E.R. Leach, http://migre.me/fssJ4).

O tempo, pois, o tempo que é, o tempo natureza, não será ele que me vai envelhecer, que me vai matar. Mas, contraditoriamente, eu biologia, que, afinal, sou natureza, não tenho escapatória: um pouco adiante do agora eu vou acabar. No tempo da cultura, porém, eu tenho margem de manobra. Nesse tempo, interessa-me o relativo de mim mesmo com as coisas que me dão prazer. Seja: quero fazer as contas e dispor o que gosto para, na relação do tempo com o usufruto existencial do tempo, viver com prazer.

Essas coisas todas me ocorreram porque ouvi a mulher pedindo certezas afetivas ao sujeito. Não, não bisbilhotei a conversa alheia; ela me veio às orelhas, não tive como evitá-la. Dado o conteúdo, sim, escutei-a com gosto e compenetração. Parecia-me que a mulher carecia das palavras que o amor romântico impõe – nesse tipo de amor, importa o ato declaratório. O homem, que imaginei constrangido, contrapunha que amor é gesto, não declaração. Desconfiei que a coisa acabaria em dissonância afetiva.

Ele calou. Logo passou a indagar; ela respondia um tanto a contragosto: – Quanto vinho tomarei? – Hoje? Não entendi, não sei. – E músicas? – Falas da vida? Pelo resto da vida? – Quantos invernos viverei? – Não sei. O que você quer dizer? – Quero dizer que tenho um tempo para viver, um tempo para o qual eu dou extremo valor. – Mas... Onde queres chegar? – Bem, eu tenho um tempo e eu tenho escolhas... Tanto quanto pude, escolhi o melhor para trazer à minha vida, ao meu tempo. E escolhi viver o meu tempo com você.

Houve silêncio no tempo de cada um, não no tempo dos dois, que tempos não se misturam jamais. Não me permiti voltar-me para tomar a cena; seria demasiado impertinente. Mas fui minudente na imaginação: ela emudeceu, entendeu-se na vida dele, tomou-se de carinho; pôs-se meiga e triste, mas o sorriso era contente. Pensou no tempo de cada qual na vida que convivem. Seus olhos trouxeram lágrimas e se puseram a brilhar. Ela intuiu que era amada. Ele demorou-se enternecido com o jeito como ela o percebeu.

 

Imagem Ilustrativa do Post: time // Foto de: Luis Torrefranca // Sem alterações

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