Esta pergunta foi feita por muitas pessoas na última semana, diante da notícia[1] da propositura de uma ação judicial na 1ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de São Paulo (processo número 1024679-29.2016.8.26.0053) em que a autora postulava do Estado de São Paulo o fornecimento de ciclosporina (ou micofenolato de sódio) para tratamento de anemia hemolítica de sua cadela da raça “Golden Retrivier”, de nome Jully.
Vários aspectos poderiam ser debatidos neste processo, por exemplo: (1) é um mandado de segurança – e, como regra, não cabe este tipo de ação para postular medicamentos no SUS, pois não permite a instrução probatória no curso do processo (perícia, audiência, etc); (2) há pedido de justiça gratuita; (3) os fundamentos do pedido se baseiam apenas em princípios aplicáveis às pessoas (vida digna, etc).
A juíza indeferiu a liminar. Mas este processo demonstra claramente o atual cenário da “judicialização da saúde” no Brasil. Pede-se tudo, sem nenhum controle e sem nenhum limite.
Duas são as principais causas das excentricidades encontradas no Poder Judiciário brasileiro.
A primeira decorre da ausência de limites jurídicos para a exata compreensão dos princípios da integralidade e da universalidade que norteiam o direito à saúde. Vale dizer, é forte o entendimento de que o Estado deve custear tudo a todos. Neste ponto, é indispensável que o Supremo Tribunal Federal – STF fixe as balizas e, principalmente, delimite a extensão dos limites e da capacidade do Estado no tema do direito à saúde.
A segunda causa decorre da ideia muito presente em grande parte da população brasileira de que o Estado tem o dever de fornecer qualquer medicamento ou produto médico mesmo que não exista comprovação da sua evidência científica.
Para além da questão de saber se os animais também são beneficiários do SUS, a verdade é que muitas posturas precisam ser repensadas.
É inegável que os animais são protegidos pela Constituição, a partir da melhor interpretação conferida ao artigo 225. Tanto é verdade que o STF considerou inconstitucional a farra do boi[2] e a briga de galo[3].
Mas isso não significa que é possível postular tudo, sem qualquer limite.
O Estado brasileiro ainda tem muito a progredir em prol do direito à saúde da população. E o processo judicial mencionado neste texto demonstra que ainda temos muito a avançar.
Notas e Referências:
[1] Folha de São Paulo, 07/07/2016: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1810929-familia-pede-na-justica-que-sus-de-remedio-caro-para-cadela-doente.shtml.
[2] COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi". (STF, RE 153531/SC, Relator p/ Acórdão Min. MARCO AURÉLIO, j. 03/06/1997, Segunda Turma, DJ 13-03-1998)
[3] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº 2.895/98) - LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA PRÁTICA CRIMINOSA - DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE BRIGA - CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, ART. 32) - MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, ART. 225, § 1º, VII) - DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL - RECONHECIMENTO DA INCONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA - AÇÃO DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES - NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A FAUNA - INCONSTITUCIONALIDADE. - A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. - Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”). Magistério da doutrina. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL. - Não se revela inepta a petição inicial, que, ao impugnar a validade constitucional de lei estadual, (a) indica, de forma adequada, a norma de parâmetro, cuja autoridade teria sido desrespeitada, (b) estabelece, de maneira clara, a relação de antagonismo entre essa legislação de menor positividade jurídica e o texto da Constituição da República, (c) fundamenta, de modo inteligível, as razões consubstanciadoras da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo autor e (d) postula, com objetividade, o reconhecimento da procedência do pedido, com a conseqüente declaração de ilegitimidade constitucional da lei questionada em sede de controle normativo abstrato, delimitando, assim, o âmbito material do julgamento a ser proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. (STF, ADI 1856/RJ, Relator Min. CELSO DE MELLO, j. 26/05/2011, Tribunal Pleno, DJe 13-10-2011)
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