O surgimento do conceito filosófico de natureza na Grécia clássica – Por Mauricio Mota

03/05/2017

A determinação do conceito filosófico de natureza, a precisa individualização do significado de natureza e da sua importância para o homem, como bem expressa Paulo Bessa, é essencial para a construção da solução adequada para os problemas jurídico-ambientais:

“O Direito, como será visto ao longo de toda a exposição, tem enormes dificuldades para lidar com a natureza e o meio-ambiente. Elas são conhecidas por todos aqueles que se dedicam ao estudo do meio-ambiente e de sua ordem jurídica. O Direito ainda não logrou estabelecer conceitos suficientemente estáveis e capazes de dar solução adequada aos problemas jurídico-ambientais. Penso que um dos principais obstáculos, com os quais se deparam os juristas e demais estudiosos, reside nas contradições que os significados de natureza têm para o Ser Humano e, em conseqüência, na atitude do Direito para com eles. A minha perspectiva é que o Direito, assim como a própria Natureza, é um fenômeno cultural, e a tutela por ele propiciada ao meio ambiente e à natureza deve ser vista desde essa perspectiva. A tutela jurídica expressa uma valorização cultural e não pode ser analisada em desacordo com esse fato fundamental”[1].

O conceito filosófico de natureza surge na Grécia antiga, no quadro desconcertante da genial reflexão grega sobre o sentido do mundo.

O mundo, para os povos antigos, era pleno de deuses. Há uma crença no pensamento mítico e na transcendência do direito. O pensamento mítico consiste na forma pela qual um povo explica os aspectos essenciais da realidade: a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos processos naturais, as origens deste povo e seus valores básicos. Um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de explicar a realidade é o apelo ao mistério, ao sobrenatural, ao mistério e à magia. As causas dos fenômenos naturais, daquilo que acontece aos homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano e natural, superior, misteriosa e divina, à qual só os iniciados têm acesso.

O mito confunde-se com a própria visão de mundo dos indivíduos, a sua maneira mesmo de vivenciar a realidade. Nesse sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta à crítica ou à correção. Também o direito, por estar inserido nessa explicação mítica do mundo, não pode se singularizar, se individualizar, se justificar, porque submetido ao mesmo apelo ao mistério e ao sobrenatural. Nesse sentido, não há como distingui-lo da moral e da religião.

É com o pensamento grego no século VI a.C. que vamos encontrar uma explicação do mundo baseada no real. Podemos considerar que a reflexão grega nasce basicamente de uma insatisfação com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico.

A tentativa dos primeiros filósofos da Escola Jônica será a de buscar uma explicação do mundo natural (physis) baseada essencialmente em causas naturais. Como salientado por Paulo Bessa, a longa jornada intelectual desenvolvida pelos gregos até a consolidação do conceito de natureza foi realizada, essencialmente, por meio de intensa observação dos fenômenos físicos que, no momento em que puderam ser generalizados, propiciaram um instrumento extraordinário para permitir a previsão dos acontecimentos, a formulação de regras gerais. A atitude filosófica do homem diante da natureza inicia-se assim que se busca a universalidade, quando aprende a captar e renovar os problemas universais referentes ao cosmos e à vida, com vistas à satisfação de suas exigências espirituais, concretas e atuais. A ruptura com o pensamento mítico não se dá de forma completa e imediata. O mito sobrevive, ainda que vá progressivamente mudando de função, passando a ser antes parte da tradição cultural do povo grego do que forma básica de explicação da realidade.

São noções fundamentais do novo pensamento filosófico-científico: a) physis - a natureza é ordenada e a explicação causal dos processos e fenômenos naturais deve ser buscada a partir de causas puramente naturais. A chave da compreensão da realidade natural encontra-se nessa própria realidade e não fora dela; b) causalidade - o estabelecimento de uma conexão causal entre determinados fenômenos naturais constitui a forma básica da explicação científica. Explicar é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e o determina; c) arqué - a fim de se evitar a regressão ao infinito da explicação causal os filósofos vão postular a existência de um elemento primordial que serviria de ponto de partida para todo o processo; d) kosmos - o cosmo é o mundo natural enquanto realidade ordenada de acordo com princípios racionais. Ordenação racional, ordem hierárquica que se opõe ao caos. O cosmo é uma ordem racional, uma "razão", significando a existência de princípios e leis que regem, que organizam essa realidade; e) logos – é o discurso, fundamentalmente uma explicação em que razões são dadas. O logos é o discurso racional, argumentativo, em que explicações são justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão. Um dos pressupostos básicos da visão dos primeiros filósofos é a correspondência humana entre a razão humana e a racionalidade do real, o que tornaria possível um discurso racional sobre o real.

Com Pitágoras de Samos, na segunda metade do séc. VI a.C., no sul da Itália, para onde emigrara, a filosofia assume uma preocupação ética. Os pitagóricos elaboraram a primeira teoria helênica da justiça no marco da sua doutrina dos números a que lhes conduziu sua afeição pela matemática e a música. O número é a essência das coisas. Daí a ideia de harmonia e regularidade do universo, concebido como uma totalidade ordenada.

Esta harmonia se traduz na esfera humana em uma correlação de condutas. Os pitagóricos definiam a justiça como "aquilo que um sofre por algo". A justiça se caracteriza como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos, por exemplo, entre uma injúria e sua reparação, uma prestação e uma contraprestação. A igualdade é o elemento essencial da justiça. Por outro lado, a justiça se funda na ordem natural, objetiva das coisas, presidida pela lei do número e não na simples vontade humana. A harmonia em sociedade não faz senão refletir aquela que reina no universo.

Outro enlace da justiça com a ordem universal é dado por Heráclito de Éfeso (aprox. 535-470 a.C.). A ideia central da filosofia heráclitica é a da realidade como mudança, em perpétuo devir. Tudo flui. Não nos banhamos nunca duas vezes no mesmo rio. Porque as águas não serão as mesmas, nem nós seremos os mesmos. O devir nasce dos contrastes, pois toda coisa leva em si mesma o seu oposto. Da luta dos contrastes nasce uma nova síntese que, por sua vez, terá a sua antítese.

Esse processo existe porque o fluxo ininterrupto do devir está presidido por uma lei universal, o logos, que introduz nos opostos uma harmonia invisível mediante a síntese superior de fecundas polaridades. No conceito de logos surge a aportação essencial de Heráclito para a filosofia jurídica: dessa lei única, natural, se nutrem as leis humanas.

Dessas duas ideias iniciais sobre a universalidade da explicação da natureza surge uma elaboração mais sofisticada com a escola atomista. Partindo do pitagorismo primitivo que incorporou na sua teoria cosmológica uma concepção matemática em que o número aparece como uma sucessão de unidades (mínimos de extensão e de corpo) descontínuas, discretas (grandezas constituídas por unidades distintas) separadas pelo “intervalo”, a escola atomista vai postular que o universo, na sua totalidade, é constituído por dois princípios: os átomos e o vazio. Os átomos são partículas corpóreas, insecáveis, imutáveis, indestrutíveis, invisíveis (devido à sua pequenez), plenos (não há vazio interno), existem em número infinito, dotados de movimento, substancialmente idênticos (não há entre eles distinção qualitativa), diferentes apenas pelos atributos geométricos de forma, ordem e posição. Em virtude da agregação dessas partículas (mínimos de extensão e de corpo constituintes de todas as coisas) as coisas sensíveis começariam a aparecer. Isso significa que cada ser é um agregado de partículas, não surge do nada, mas de coisas, que são os átomos.

A escola atomista vai construir assim um conceito filosófico de natureza, sobre o que seja a verdade e a certeza do saber humano. Para Demócrito de Abdera, o fenômeno sensível é extrínseco aos átomos. Ele não é um fenômeno objetivo, mas sim uma aparência subjetiva. Os princípios verdadeiros são o átomo e o vazio, todo o resto é opinião, aparência. O frio só é frio e o quente só é quente segundo a opinião; pelo contrário os átomos e o vazio o são de verdade. Não se deve afirmar que uma coisa resulta da pluralidade de átomos, mas sim que, pela combinação dos átomos, toda coisa parece tornar-se una.

Demócrito, desse modo, reduz, portanto, a realidade efetiva sensível a uma aparência subjetiva, mas a antinomia entre o conceito de átomo e a intuição sensível, eliminada do mundo dos objetos, ressurge agora na consciência do sujeito.

O mundo da percepção sensível resta, com efeito, uma aparência subjetiva e, por isso mesmo, separada do princípio e abandonada em sua realidade independente, mas é, simultaneamente, um objeto com valor e significado. Deste modo, Demócrito, para explicar a realidade, é impelido à observação empírica. Para explicar a realidade que não tem em si um universal que a determine é necessária a observação de todas as coisas, o conhecimento positivo. O mundo tem sua explicação no conhecimento individualizado de todas as coisas.

Explicar o mundo, no entanto, requer que se passe da certeza do átomo estático à diversidade do mundo. O átomo, o ser pleno, desloca-se no vazio (que não lhe oferece resistência) por seu peso, em um movimento retilíneo vertical de cima para baixo. Como todos os átomos descrevem o mesmo movimento, todos se deslocariam em trajetórias paralelas e jamais se encontrariam. Mister se faz explicar o movimento para estabelecer a relação entre o pensamento e o ser.

Demócrito propugna a tese de que é um fator externo, a necessidade, que determina o mundo e que a substância dessa necessidade seria a antipatia, o movimento, a impulsão da matéria. Demócrito afirmava que, quando da formação do cosmo surge, em consequência da ação do vórtice (movimento rotatório) e da atração do semelhante pelo semelhante, o peso do átomo que, cumprindo satisfatoriamente esta função, dispensa a procura de outros fatores externos determinantes. A concepção de Demócrito da causalidade subordina os átomos a uma necessidade rigorosamente mecânica que, tendo em vista a complexidade e o número dos elementos que operam simultânea e conjuntamente nesse processo, faz com que muita coisa escape e extrapole os limites da compreensão humana. A interação mecânica (automática) entre os átomos, intrinsecamente desprovidos de qualidades, dá origem à multiplicidade dos seres sensíveis tão diversificados.

O movimento originário dos átomos permite que os mesmos se choquem entre si e, em determinado momento e circunstância, iniciem um movimento rotulatório, semelhante a um redemoinho em turbilhão, atirando para as camadas mais externas os átomos mais leves e retendo no centro os mais pesados.

Dessa maneira, Demócrito transforma a realização do conceito de átomo em um ato de cega necessidade, um movimento forçado decorrente de uma força externa. A natureza é, assim, em Demócrito, causada e presa pela necessidade.

Será preciso esperar por Epicuro e a chamada filosofia pós-aristotélica do final do século IV para se ter uma nova e radical concepção de natureza, agora, holística e determinante do real.

Partindo dos mesmos princípios atomistas do átomo e do vazio, Epicuro dá a estes princípios uma outra determinação, objetiva. Para Epicuro, o mundo sensível é uma realidade objetiva que pode ser determinada a partir de uma essência: o átomo.

Superando o lado material e as hipóteses empíricas de Demócrito, Epicuro vai objetivar a contradição entre essência e existência no próprio conceito de átomo, na realização do princípio.

O átomo, na concepção de Epicuro, é um ser pleno, porque negação. Se o vácuo é representado como um espaço vazio o átomo passa a ser a negação imediata do espaço abstrato, isto é, um ponto espacial. A solidez e a intensidade que se afirmam relativamente contra a falta de coesão do espaço em si só podem conceber-se diante de um princípio que negue o espaço em toda a sua extensão, então deve-se conceber também uma dimensão temporal do átomo.

Inicialmente, considerando-se que, no átomo, a matéria está, enquanto relação consigo própria, dispensada de toda mutabilidade, conclui-se que o tempo deve ser excluído do conceito de átomo, do mundo da essência. Com efeito, a matéria só é autônoma na medida em que se abstrai da temporalidade. Demócrito o exclui do seu sistema físico; abolido dos átomos – do mundo da essência –, o tempo passaria a existir apenas na esfera subjetiva.

Com Epicuro, entretanto, temos uma concepção muito mais sofisticada. Como já vimos, o átomo só pode afirmar-se como essência negando o espaço vazio em toda sua extensão e, assim, também em sua dimensão temporal. Para o epicurismo, o tempo está na dimensão fenomênica, a temporalidade constitui a marca fundamental dos fenômenos, do universo existente, desta finitude circunscrita nas possibilidades incontáveis do originário pluriverso dos átomos que se movem no vazio, eternamente. É o tempo que sustenta a variação da finitude: enquanto variação do finito e pelo fato de ser concebido como variação, constitui ainda a forma efetivamente real que separa o fenômeno da essência, caracterizando o fenômeno na medida em que o reconduz à essência.

Assim, o átomo só pode ser pleno em sua essência se negar o espaço vazio, se deslocar-se nesse espaço. Excluído do mundo da essência, o tempo se torna a forma absoluta do fenômeno. O tempo é definido como sendo o acidente do acidente. O acidente é a modificação da substância em geral; o acidente do acidente é a modificação que reflete sobre si mesma, é a mudança enquanto mudança. O átomo só é contemplado pela razão; mas por que contém necessariamente o tempo, entendido como reflexão do fenômeno sobre si mesmo, é lógico que a natureza fenomênica seja considerada objetiva e que a percepção sensível seja tomada para critério real da natureza concreta.

Daí se parte para outra questão que são as qualidades do átomo. Ter quaisquer propriedades contradiz-se com o conceito de átomo porque toda propriedade é modificável, enquanto que os átomos não se modificam. Todavia, é uma consequência necessária de tal conceito atribuir a ele tais propriedades, pois a pluralidade dos átomos em repulsão, que estão separados pelo espaço sensível, faz com que estes devam ser imediatamente diferentes entre si e distintos de sua essência pura, isto é, devem possuir qualidades.  Através das qualidades o átomo adquire uma existência que contradiz o seu conceito; é considerado como um ser-aí alienado, diferente e separado da sua essência. Vejamos as determinações das qualidades dos átomos, segundo Epicuro: em primeiro lugar, os átomos possuem grandeza. Não qualquer grandeza, mas a negação da grandeza, o infinitamente pequeno.

A segunda propriedade dos átomos seria a forma. Essa determinação também contradiz o conceito de átomo e deve, portanto, ser considerada o seu contrário. A singularidade abstrata é o abstratamente-idêntico-a-si, e, pois, carece de forma. As diferenças de forma entre os átomos são, pois, indetermináveis, mas não absolutamente infinitas. Uma terceira qualidade é o peso. Como os átomos são transportados ao plano da representação, devem necessariamente possuir peso. Todo ente corporal possui peso. Mas o peso contradiz igualmente a noção de átomo. É a singularidade da matéria enquanto ponto ideal exterior a essa matéria. Ora, é o próprio átomo que é essa singularidade; por assim dizer, ele constitui um ponto de gravidade representado por uma existência singular. Para Epicuro, o peso só existe então como relação entre os átomos e, assim, como diferença de peso.

Outra noção importante para o entendimento do conceito de natureza entre os gregos é o do movimento dos átomos. Em princípio, no sistema atomista, os átomos movem-se impelidos para baixo por seu próprio peso e por repulsão ao chocarem-se com outros átomos. Mas isso significa dizer que seu movimento é determinado e necessário e correndo de forma retilínea vertical, não ensejaria o encontro com outros átomos e a aparição das coisas por composição seria impossível. Daí Demócrito preconizar a causalidade externa da natureza.

Epicuro, entretanto, vai dar a esse problema uma outra resposta. Afirma este que o átomo, além do movimento retilíneo vertical, declina um pouco da linha reta. Acreditava ele que no vazio os átomos se desviavam um pouco da linha reta, em atitude aleatória, e, assim, se originava a liberdade. Isso deve ser compreendido filosoficamente e não em termos meramente físicos.

O átomo, como vimos, é a negação imediata do espaço abstrato, isto é, um ponto espacial. Para existir deve negar o espaço em toda a sua extensão, como acontece com o tempo na natureza real. Todo corpo, enquanto é considerado no movimento de queda, não é, pois, mais do que um ponto que se move, um ponto privado de sua autonomia, que num ser-aí determinado – a linha reta que descreve – perde a sua singularidade. Assim verificamos que o átomo enquanto seu movimento é uma linha reta, torna-se simplesmente determinado pelo espaço; é-lhe atribuído um ser-aí relativo e sua existência constitui uma pura existência material. Porém vimos que um aspecto do conceito de átomo é a sua forma pura, a negação de toda a relatividade, de toda relação com outro ser-aí. Para ser pura singularidade, para chegar ao seu conceito, o átomo deve negar todo o ser-aí determinado por outro.

Assim, a existência relativa que se opõe ao átomo, o ser-aí que ele deve negar é a linha reta. A negação imediata desse movimento é um outro movimento, isto é, e representando-o espacialmente, a declinação da linha reta.

Os átomos são corpos autônomos, ou melhor, constituem o corpo em sua autonomia absoluta, como os corpos celestes. Eles se movem, com efeito, como esses últimos, não em linha reta, mas oblíqua. O movimento da queda é o movimento da não autonomia.

Após todas essas considerações estamos em condições de definir as relações entre essência da natureza e o seu vir-a-ser, ao estabelecer suas características. E nada melhor do que o jovem Marx para sintetizá-las, filosoficamente:

“A contradição entre a existência e a essência, entre a matéria e a forma, que está contida no conceito de átomo, é considerada como existindo no próprio átomo singular, pelo simples fato de lhe serem atribuídas qualidades. Através da qualidade o átomo é alienado de seu conceito e ao mesmo tempo é terminada a sua construção.

É nessa passagem do mundo da essência ao mundo do fenômeno que a contradição incluída no conceito de átomo alcança manifestamente sua realização mais categórica. Na verdade o átomo é, de acordo com o seu conceito, a forma absoluta, essencial da natureza. Essa forma absoluta é agora baixada ao nível da matéria absoluta, ao substrato informe do mundo fenomênico.

Os átomos são substância da natureza, de onde tudo provém e onde tudo se dissolve. Porém a destruição perpétua do mundo fenomênico não conduz a qualquer resultado. Surgem novos fenômenos, mas o átomo se mantém eternamente como sedimento. Assim, quando se pensa o átomo de acordo com o seu conceito, conclui-se que sua existência será o espaço vazio, a natureza destruída; mas quando ele passa à realidade efetiva, é rebaixado ao estado de base material que, enquanto suporte de um mundo de relações múltiplas, só pode existir nas formas que lhe são indiferentes e exteriores. Essa é uma consequência necessária porque o átomo suposto como um ser abstrato, singular e acabado, não pode realizar-se como potência que idealizaria e dominaria essa multiplicidade.

A singularidade abstrata constitui a liberdade relativamente ao ser-aí e não a liberdade no ser-aí. Nunca pode ser iluminada pelo ser-aí, pois com a união deste elemento ela perde o seu caráter e se torna material. É por esse motivo que o átomo não se revela no fenômeno; ou melhor, quando surge é apenas no estado de base material. O átomo como tal só existe no vazio. Assim, é a morte da natureza que tornou sua alma imortal.

O átomo qualificado é o único completamente elaborado e o mundo fenomênico só pode gerar-se a partir do átomo elaborado e alienado no seu conceito, o que Epicuro exprime dizendo que só o átomo qualificado se torna stoikheíon (elemento), ou apenas o átomon stoikheíon é dotado de qualidades”[2].

Portanto, a natureza para os gregos expressa uma essência que, para realizar-se, precisa ser-no-mundo. A contradição entre essência e existência está imbricada no próprio conceito do elemento formador de toda a natureza, o átomo. Deste modo ser por essência é existir de uma determinada forma no mundo. Não há uma separação entre ser e dever-ser, ou seja, a própria forma pela qual a natureza se organiza, no seu processo de composição e diferenciação, impõe a todos a maneira pela qual a totalidade social deverá ser organizada. Nesse sentido, consoante Paulino Jacques, também o Estagirita:

“...concebeu o esse [o ser] como realidade bilateral – essência e existência. Daí o seu postulado famoso, ‘a essência de cada coisa é o que existe per se’, o que vale dizer, aquilo que, para existir, independe de nada, porque só de si. Todavia, ARISTÓTELES sustentava que a matéria tinha duas espécies de existência: a ‘potencial’, independente de ‘forma’, e a ‘atual’, plasmada na forma. Assim, a essência era a existencialidade potencial, virtual, que podia ‘ser’, mas não ‘era’. [...] A simbiose da essência com a existência gerava o esse, isto é, a plenitude vital”[3].

Os gregos atomistas elaboraram a sua conceituação filosófica de natureza partindo não de construções geométricas, mas sim observando o dado social natural, interrogando a natureza, tentando reencontrar a ordem que ela acolhe, uma ordem objetiva. Suas características são voltadas para o conhecimento das coisas, é uma descrição das coisas e da natureza das coisas.

A natureza pode ser compreendida assim como um organismo formado a partir de movimento necessário mas não predeterminado que, relacionando elementos com outros elementos (os átomos qualificados), numa crítica reflexidade temporal, passa a estruturar-se a partir de um princípio (arqué) ordenado por uma razão (logos).

Portanto, a partir da observação da natureza podem ser extraídas regras de conduta para a compreensão do mundo social. Os homens, porque partícipes do mesmo princípio fundamental (o átomo) e ordenados segundo o mesmo logos, devem se adequar a essa totalidade. A natureza é o modelo de harmonia e equilíbrio para os seres humanos. Como aduz Paulo Bessa:

“A natureza para os gregos era a análise das leis que universalmente poderiam ser extraídas da observação do mundo natural e sua aplicação no mundo político, a pólis. A natureza, portanto, era um conceito socialmente definido. A introdução do conceito de natureza permitiu que a vida jurídico-social passasse a ser explicada independentemente da vontade humana e, portanto, independente dos próprios poderes políticos então vigentes. Buscou-se, com a construção do conceito de natureza, criar um padrão de racionalidade e estabilidade capaz de responder às candentes questões de uma sociedade que passava por transformações profundas”[4].

Da reflexão grega se podem extrair algumas premissas importantes para a nossa discussão contemporânea. Preconizar a existência de uma ordenação subjacente ao conceito filosófico de natureza significa compreender que todos os seres e o homem estão profundamente relacionados numa dependência recíproca. Essa dependência expressa-se de maneira inicialmente indeterminada (a declinação da reta como o espaço da liberdade), mas depois se harmoniza numa razão informada pela dimensão temporal. Como dizia Marx, conhecer, através dos sentidos, as coisas que estão no tempo é apreender atomisticamente a própria condição temporal dos átomos que as constituem – pois o tempo está nos homens (e nos seus sentidos) do mesmo modo que está nos fenômenos (as coisas percebidas)[5].

Esta reflexão anterior nos leva a responder sobre a equidade intergeracional relacionada à natureza: a equidade intergeracional é propriamente um conceito jurídico porque pressupõe a relação entre as gerações (o homem em seu evolver) e o meio-ambiente, ambos inseridos num momento temporal determinado. Não se trata assim de uma linguagem moral ou exortações de bom comportamento ao legislador, vez que pode ser definido um conteúdo próprio relacionado à proteção de um meio-ambiente concreto não por si só, abstratamente considerado, mas em virtude de sua relação com as gerações humanas em um dado lapso temporal. Expressa também que não são todas as formas de vida que são protegidas, mas somente aquelas que realizam o princípio do equilíbrio[6] (por exemplo, o vírus da gripe aviária, ainda que componente da biodiversidade, não merece proteção jurídica). Aquilo que será preservado e até quando será preservado também se induz do conceito. Sendo o tempo o acidente do acidente, a modificação da substância que reflexiona por si mesma a dimensão temporal da reparação só pode ter um horizonte limitado temporalmente àquilo que pode ser inferido para o equilíbrio das próximas gerações. O petróleo, por exemplo, só tem sentido de ser preservado se interagir organicamente na biosfera. Sendo tão-somente um recurso natural utilizado para a comodidade humana, poderá ser substituído por outras fontes de energia renováveis, sem prejuízo para as gerações futuras.

De tudo o que foi dito previamente, depreende-se a nossa firme posição de que a natureza é um conceito ou fenômeno cultural e filosófico e não tem direitos em si, próprios e intrínsecos, mas sim é preservada em função do logos harmônico que a informa. Do conjunto normativo que tutela os recursos hídricos, a atmosfera, os solos etc., não cabe a conclusão de que a natureza tem direitos que se afirmam em relação ao homem e independentes das necessidades humanas.

Afirmações de jaez biocêntrico como “Age de tal maneira que permita que todas as coisas possam continuar a ser, a se reproduzir e a continuar a evoluir conosco[7], se levadas ao seu extremo, portariam consequências desastrosas para o gênero humano (e.g., no caso acima citado da gripe aviária ou mesmo da AIDS, causados por vírus que coexistem conosco e que nem por esse motivo devem ser preservados). Já as fontes romanas atestavam-no, pois “hominum causa omne ius constitutum est” (todo direito foi constituído por causa do homem). Como vimos, é o homem em sua inter-relação com o todo que preenche a integralidade do conceito de natureza e esta só haure o seu sentido dessa simbiose informada com o homem. Dito de outra forma:

“O foco do direito ou da doutrina jurídica, em última análise, não se volta para o mundo natural ou para as coisas, embora existam o direito do ambiente e o direito das coisas. O ambiente e as coisas são meramente elementos implicados nas relações entre as pessoas e os seus interesses, por vezes contraditórios, e nos objetivos da sociedade humana. Por si só, o direito não conhece do valor intrínseco do mundo natural nem do da vida e das suas teias.”[8].

Portanto, não há sentido em se falar de um paradigma biocêntrico entendido como o direito da natureza em si mesma, como apregoam algumas correntes ecologistas radicais.

 À natureza grega concebida como um modelo de ordenação do mundo correspondia também um direito delimitador dessa essencialidade objetiva das coisas. A resposta grega para o significado de direito (to dikaíon) pode nos ser muito útil para o tratamento das questões contemporâneas da delimitação do dano ambiental e reparação das externalidades ambientais negativas. Vejamos então o que os gregos antigos concebiam como o direito.

Para os gregos, o direito é um objeto exterior ao homem, uma coisa, a mesma coisa justa (ipsa iusta res) que constitui o término do atuar justo de uma pessoa, a finalidade da virtude da justiça. A conduta justa do homem justo (dikaios) é a justiça em mim, subjetiva, o direito (dikaion) é a justiça fora de mim, no real, objetiva. O direito está assim fora do homem, in re, nas coisas justas, de acordo com uma proporção, o justo meio objetivo.

O direito é, deste modo, uma relação entre substâncias, por exemplo, entre casas e somas em dinheiro que, numa cidade, se repartem entre seus proprietários. O direito é, com efeito, uma coisa exterior que se extrai de uma natureza relacional entre duas ou mais pessoas que disputam bens, encargos e honras.

Assim, em um litígio, o direito será a justa parte que corresponde a cada uma das pessoas envolvidas nele, o que significa reconhecer que não somente resulta impossível concebê-lo à margem das relações interpessoais (por exemplo, na solidão de Robinson Crusoé em sua ilha) senão que, também, este direito é necessariamente finito, limitado (é a parte justa de uma relação concreta)[9].

Aristóteles intenta, em Ética a Nicômaco, formular uma definição universal de justiça (dikaiosunê). A justiça (dikaiosunê) pode ser definida em dois sentidos principais denominados justiça geral e justiça particular. Por justiça geral, designa-se por justo toda conduta que parece conforme à lei moral; e, nesse sentido, a justiça inclui todas as virtudes, é uma virtude universal. Aristóteles não rejeitou totalmente essa acepção ampla, mostrou a sua razão de ser, por que podíamos ser levados a qualificar toda virtude, mesmo a temperança e a coragem, com a palavra justiça. O sentido geral de justiça corresponde, deste modo, à condição que os gregos chamavam dikaios, o homem justo. O qualificativo dikaios expressava a pessoa que possuía uma superioridade moral em relação à maioria das outras por ter adquirido o conjunto das virtudes morais.

Aristóteles observava que esse sentido geral de justiça não tinha uma relação direta com o direito, uma vez que não cabia aos juízes conduzir os cidadãos à perfeição moral, mas resolver os seus litígios relativos aos bens e cargas presentes na vida social. A justiça geral, nessa acepção larga, se aplica a toda conduta conforme à lei moral; nesse sentido a justiça geral é a própria moralidade, inclui todas as virtudes, é a virtude universal.

A justiça particular, pelo contrário, é uma parte da justiça geral e tomada nesse sentido não se refere ao dikaios (o homem justo), mas ao to dikaion (a coisa justa). Uma pessoa teria a virtude da justiça em sentido particular se praticasse o justo, não se fosse justo: o dikaios seria a justiça em mim, subjetiva; o dikaion é a justiça fora de mim, na realidade, objetiva. Da constatação e estudo da virtude da justiça particular à definição da tarefa judicial vai pouco espaço: analisar a justiça particular é definir a arte do direito.

O ato próprio da justiça particular é não ficar com mais, nem com menos do que lhe corresponde, de modo que seja bem realizada, numa comunidade social, a repartição dos bens e das cargas. Dizemos de um homem que ele é justo especialmente para significar que ele tem o hábito de não tomar mais do que a sua parte dos bens que se disputam em um grupo social ou menos que sua parte do passivo, dos encargos, do trabalho.

A definição do direito traça os três aspectos essenciais da tarefa judicial ou da arte do direito: 1) a repartição, b) os bens externos, c) o grupo social. A repartição é o objetivo da arte do direito; os bens externos a sua matéria; e o grupo social o seu campo de aplicação.

O dikaion (direito) em grego clássico é uma palavra de gênero neutro, que indica uma coisa e não uma pessoa. Significa, portanto, a coisa justa, e não a pessoa justa. A coisa justa é aquela que deve ser atribuída à pessoa que a merece. A conduta justa do homem justo (dikaios) é a justiça em mim, subjetiva, o direito (dikaion) é a justiça fora de mim, no real, a mesma coisa justa, objetiva. O direito está assim fora do homem, in re, nas coisas justas, de acordo com uma determinada proporção, o justo meio objetivo.

Em um litígio, o direito será a justa parte que corresponde a cada uma das pessoas. Pode ser uma vantagem ou uma desvantagem. Na visão aristotélica a atribuição de uma sanção é um direito. Por exemplo: o direito penal não tem por função proibir o homicídio, o roubo ou o infanticídio; essas proibições competem à moral. Um jurado ou o Código Penal repartem as penas, a cada um a pena que lhe corresponde.

O to dikaion é uma proporção (reconhecida como boa) entre coisas repartidas entre pessoas; um proporcional (termo neutro), um analagon. O direito consiste numa igualdade, um igual (ison).

Aristóteles acrescenta também ao to dikaion o justo meio (meson). O justo meio é o que exige maior esforço. É mais fácil deixar completamente de beber do que ficar na medida justa. O justo meio não é uma baixada, mas um pico, o mais difícil de atingir, entre dois lados de facilidade. A virtude da justiça está no justo meio: se sou justo é porque eu não sou nem muito ávido de aumentar minha parte, nem muito desleixado para não fazer valer meus direitos. O direito é, pois, um "meio", um justo meio objetivo, nas coisas, in re.

Para os gregos, o kosmos é ordenado, implica em uma ordem. O mundo não é somente constituído de causas eficientes ou por suas causas materiais, mas também por causas formais ou finais. Como o vaso do oleiro, ele é formado em função de uma finalidade. Pode-se dizer que cada ser particular tem uma natureza. E esta natureza é o que este deve ser, sua forma, seu fim, segundo o plano da Natureza. Como explica Aristóteles:

"A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim. Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja - homem, cavalo, família -, dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesma é uma meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais perfeito estado"[10].

Num sentido próximo, a palavra natureza pode também designar esse princípio, essa força, esse instinto inato que, segundo tal filosofia, impulsiona o ser a realizar seu fim. A observação da natureza é portanto mais que a observação dos fatos da ciência moderna. Não é neutra e passivamente descritiva, implica o discernimento ativo dos valores. Isso equivale a distinguir o que é justo segundo a natureza do que é, do mesmo ponto de vista, ruim e injusto.

Aristóteles distinguia duas fontes das quais o direito poderia provir: a natureza (physis) e o convênio humano (nomos). O direito natural é a coisa justa proveniente da natureza das coisas tomada em si mesma e também no modo em que se encontram dispostas na vida social. O direito positivo é a coisa justa posta, estabelecida socialmente, pelo convênio humano, em consonância com o que se percebe na natureza. A solução jurídica de um caso concreto deve, normalmente, ser obtida através do recurso conjunto a estas duas fontes, que não são consideradas opostas, mas complementares: por um lado o estudo da natureza e, num segundo momento, a precisa determinação do legislador ou do juiz. Não há, portanto, oposição entre o justo natural e as leis escritas do estado; ao contrário, as leis do Estado exprimem e completam o justo natural.

O direito natural é um método experimental. O direito natural para Aristóteles é flexível, não tem conclusões rígidas, avança por posições flutuantes e mais ou menos vagas.

Aristóteles distingue as duas espécies de operações onde a justiça procura se exercer: a justiça distributiva e a justiça comutativa.

O ofício primeiro da justiça é o de proceder à distribuição dos bens, das honras e dos encargos públicos entre os membros da pólis. Nas distribuições, o devido se determina em relação à finalidade do repartido e à relação dos sujeitos com essa finalidade. O que mede a igualdade da repartição é a proporção entre os sujeitos distintos e os bens repartidos. A igualdade no tratamento dos doentes não está em dar a todos eles os mesmos medicamentos, mas está em dar a cada um os medicamentos de que necessita. Essa é a igualdade proporcional, uma igualdade geométrica entre duas frações.

Na tarefa de atribuir um determinado benefício ou carga a uma pessoa, é preciso, em primeiro lugar, atentar para o objetivo que aquele benefício ou carga vem a cumprir na conjuntura social e, num segundo momento, verificar se aquela pessoa ocupa uma situação social condizente com a finalidade inscrita ao benefício ou à carga naquela conjuntura social. Deste modo, a justiça distributiva consiste em tratar os verdadeiramente iguais como iguais e os desiguais como desiguais na medida em que se desigualam.

São os seguintes os critérios da distribuição: a) a condição; b) a capacidade das pessoas em relação aos encargos; c) a aportação de bens à coletividade e d) a necessidade.

A condição terá relevância quando em uma coletividade existam diversas formas ou tipos pertencentes a ela (classes e membros) Ex: é diferente na família a condição do pai e do filho. Ao pai se deve então coisas diversas (respeito, obediência etc.). Também em relação às funções diversas ocupadas pelos distintos membros da coletividade pertinem coisas diversas. Corresponde a cada qual o que pertence à sua função.

A proporção de justiça, no que atine à capacidade das pessoas em relação aos encargos, consiste em impor as cargas e distribuir as funções proporcionalmente à capacidade. Na aportação de bens à coletividade é justo que quem mais aporta à coletividade deve receber mais. Ex: é justo que quem mais trabalha receba um maior salário.

Finalmente, na necessidade, é justo que receba mais quem mais o necessita. Mas só é justo esse critério quando a necessidade está em relação com a finalidade da coletividade e se combina com os restantes critérios. Quando não se dão as indicadas condições o remédio da necessidade não é próprio da justiça, senão de outras virtudes como a solidariedade, a liberalidade ou a misericórdia.

A justiça comutativa é a outra espécie da justiça particular, a que zela pela retidão das trocas, pela igualdade aritmética em matéria de intercâmbio de bens. No intercâmbio de bens a relação de igualdade dá-se quando a coisa que há que dar é igual em quantidade e qualidade (ou valor) à que saiu da esfera do sujeito de atribuição. Na sanção em decorrência do intercâmbio de bens o ofício do juiz é o de calcular uma restituição igual ao dano que foi suportado. A igualdade absoluta entre as coisas na justiça comutativa tem sua base na igualdade entre as pessoas, tal como se apresentam nessas relações de justiça. Em efeito, todas as pessoas se apresentam perante o outro em sua nuda condição, que é exatamente igual em todos. O campo de aplicação do justo é a a cidade; para Aristóteles o direito se realiza levando-se em consideração o conjunto da cidade

O direito antigo, assim pensado, não é rigorosamente individual; não supõe para o indivíduo somente um ativo, só vantagens; meu direito, isso que me deve ser dado, isso que eu mereço, não é "subjetivo", não se refere somente a um indivíduo, implica necessariamente uma relação entre indivíduos. É o resultado de uma repartição. Na dicção de Aristóteles o direito apenas é um atributo da minha pessoa, não é exclusivamente meu na medida em que é primordialmente o bem de outrem:

"Considera-se que a justiça, e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o ´bem dos outros´; de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro da comunidade" [11].

O direito - o justo de cada um - emerge de uma repartição concreta, é uma proporção (justa, um igual [ison] ou analagon, termo gramaticalmente neutro). Essa igualdade expressa, consoante a matemática grega, cosmovisão integrada da totalidade, não a constatação de uma simples equivalência de fato entre quantidades, mas revela a harmonia, o valor do justo, uma certa ordem que se discerne no caso mesmo e que se acha em conexão, em última instância, com a ordem geral do mundo que é a matéria da justiça geral. O direito nesse contexto não é, senão, uma coisa exterior ao sujeito, uma certa igualdade que reside nas coisas, na realidade, in re, e que se extrai da observação da natureza:

"C´est un autre passage de l´Ethique, qui traite de la connaissance du contenu de la justice. On sait la première réponse d´Aristote: nous extrayons d´abord le juste de l´observation de la nature: il est de lois constituées selon la nature. Il y a un juste, il y a un droit naturel. A la méthode subjective, qui prétend déduire la justice des principes de la raison interne, vient s´opposer une autre méthode, qui la cherche hors de nous-même, dans le monde extérieur. Nous voici au coeur de la doctrine du droit naturel" [12].

O direito não pode ser estimado senão do processo de interrogação da natureza, de tentar reencontrar a ordem que ela acolhe; ordem esta objetiva, e, portanto, jurídica. Para o direito antigo só a natureza é suscetível de dar às questões dos juristas respostas substanciais: a concepção objetiva do direito grego é, assim, tributária, em larga medida, do conceito filosófico de natureza, de viés holístico, racionalizante e integrativo de toda uma realidade.

Podemos concluir que a reflexão sobre o conceito filosófico de natureza inicia-se com os gregos e daí pode-se extrair algumas lições. Os helênicos propugnam inicialmente uma concepção mítica do mundo e, paulatinamente, desenvolvem sua filosofia para comportar uma explicação do mundo baseada no real. O mundo terá, nessa dimensão, uma explicação fundada em causas naturais. A atitude filosófica do homem diante da natureza inicia-se assim que se busca a universalidade, quando aprende a captar os problemas universais referentes ao cosmos e à vida, com vistas à satisfação de suas exigências espirituais, concretas e atuais.

Das ideias iniciais sobre a universalidade da explicação da natureza, com a proporcionalidade pitagórica e o devir heraclítico, surge uma elaboração mais sofisticada com a escola atomista.

A escola atomista postulará que o universo, na sua totalidade, é constituído por dois princípios: os átomos e o vazio. Os átomos são partículas corpóreas, insecáveis, imutáveis, indestrutíveis, invisíveis (devido à sua pequenez), plenos (não há vazio interno), existem em número infinito, dotados de movimento, substancialmente idênticos (não há entre eles distinção qualitativa), diferentes apenas pelos atributos geométricos de forma, ordem e posição. Em virtude da agregação dessas partículas (mínimos de extensão e de corpo constituintes de todas as coisas), as coisas sensíveis começariam a aparecer. Isso significa que cada ser é um agregado de partículas, não surge do nada, mas de coisas, que são os átomos.

Para Epicuro, o mundo sensível é uma realidade objetiva que pode ser determinada a partir de uma essência: o átomo. Superando o lado material e as hipóteses empíricas de Demócrito, Epicuro vai objetivar a contradição entre essência e existência no próprio conceito de átomo.

O átomo, na concepção de Epicuro, é um ser pleno, porque negação. Se o vácuo é representado como um espaço vazio o átomo passa a ser a negação imediata do espaço abstrato, isto é, um ponto espacial. A solidez e a intensidade que se afirmam relativamente contra a falta de coesão do espaço em si só podem conceber-se diante de um princípio que negue o espaço em toda a sua extensão, então se deve conceber também uma dimensão temporal do átomo.

A natureza para os gregos expressa uma essência que, para realizar-se, precisa ser-no-mundo. A contradição entre essência e existência está imbricada no próprio conceito do elemento formador de toda a natureza, o átomo. Deste modo, ser por essência é existir de uma determinada forma no mundo. Não há uma separação entre ser e dever-ser, ou seja, a própria forma pela qual a natureza se organiza, no seu processo de composição e diferenciação, impõe a todos a maneira pela qual a totalidade social deverá ser organizada.

Os gregos atomistas elaboraram a sua conceituação filosófica de natureza partindo não de construções geométricas, mas sim observando o dado social natural, interrogando a natureza, tentando reencontrar a ordem que ela acolhe, uma ordem objetiva. Suas características são voltadas para o conhecimento das coisas, é uma descrição das coisas e da natureza das coisas.

A natureza é um conceito ou fenômeno cultural e filosófico e não tem direitos em si, próprios e intrínsecos, mas sim é preservada em função do logos harmônico que a informa. Do conjunto normativo que tutela os recursos hídricos, a atmosfera, os solos etc., não cabe a conclusão de que a natureza tem direitos que se afirmam em relação ao homem e independentes das necessidades humanas

Considerações econômicas matematizantes dissociadas de uma compreensão holística do processo de produção social da natureza não tem o condão de dar uma reposta adequada ao problema da reparação dos danos ambientais; No que concerne à equidade intergeracional, sendo a humanidade parte integrante da natureza, estando submetida às mesmas leis ecológicas de outras espécies, aquilo que cabe preservar, para a sobrevivência e frutificação da espécie, é a conservação dos grandes equilíbrios naturais, não de quaisquer espécies ou mesmo de certa biodiversidade.

Deste modo, somente uma compreensão inequívoca da ideia grega de natureza e um conceito material de direito como justo, como o devido segundo um título de atribuição é capaz de fornecer o instrumental filosófico para a conservação dos ecossistemas.


Notas e Referências:

[1] ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 3.

[2] MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Tese de doutoramento em filosofia. Apresentada na Universidade de Jena em 1841. São Paulo: Global, s.d., p. 48-49.

[3] JACQUES, Paulino. Do conceito do direito: essência e existência. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 16.

[4] ANTUNES, Paulo de Bessa. op. cit., p. 26.

[5] MARX, Karl. op. cit., p. 9.

[6] “A destruição perpétua do mundo fenomênico não conduz a qualquer resultado. Surgem novos fenômenos mas o átomo se mantém eternamente como sedimento” SIMPLÍCIO, Scholia in Aristotelem.

[7] BOFF, Leonardo. Do iceberg à Arca de Noé: o nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 97.

[8] COIMBRA, José de Ávila Aguiar & MILARÉ, Édis. antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. In: Revista de Direito Ambiental, v. 9, n. 36, p. 9–41, out./dez., 2004, p. 18.

[9] CABANILLAS, Renato Rabbi-Baldi. La filosofía jurídica de Michel Villey. Pamplona: Universidad de Navarra, 1990, p. 158-160.

[10] ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 4.

[11] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: UNB, 2001, p. 93.

[12] VILLEY, Michel. Abrégé du droit naturel classique. Archives de Philosophie du Droit. Paris, n. 06, p. 25-72, 1961, p. 45.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: UNB, 2001.

BOFF, Leonardo. Do iceberg à Arca de Noé: o nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

CABANILLAS, Renato Rabbi-Baldi. La filosofía jurídica de Michel Villey. Pamplona: Universidad de Navarra, 1990.

COIMBRA, José de Ávila Aguiar & MILARÉ, Édis. antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. In: Revista de Direito Ambiental, v. 9, n. 36, p. 9–41, out./dez., 2004.

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MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Tese de doutoramento em filosofia. Apresentada na Universidade de Jena em 1841. São Paulo: Global, s.d.

VILLEY, Michel. Abrégé du droit naturel classique. Archives de Philosophie du Droit. Paris, n. 06, p. 25-72, 1961..


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