Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
No último 05 de outubro de 2023 o texto da Constituição Federal de 1988 completou 35 (trinta e cinco) anos de sua publicação e assinatura pelo jurista Ulysses Guimarães, no Congresso Nacional. Desde então, têm sido assíduos os debates acadêmicos em torno do fenômeno da Constitucionalização das Relações Privadas.
O fenômeno da Constitucionalização das relações privadas preconiza a Constituição (Federal) do Estado Democrático de Direito como ferramenta principal, isto é o paradigma, de interpretação das demais normas do ordenamento jurídico.
Embora a doutrina clássica de Hans Kelsen tenha inaugurado a concepção da Constituição como ordenamento jurídico principal diante das demais normativas vigentes, a proposta contemporânea da Constitucionalização é tornar efetiva a irradiação de valores das normas constitucionais sobre todas as demais normativas infraconstitucionais.
Acerca da Constitucionalização das Relações Privadas, o Professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso assevera que: “A fase atual é marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil.”[1]
No contexto da Democracia Brasileira, a partir da Constituição de 1988, foi atribuído ao Supremo Tribunal Federal (STF) a responsabilidade de juris dizer se determinada norma (lei e/ou ato normativo federal ou estadual) é compatível com os valores e preceitos da Magna Carta.
A atividade jurisdicional do Supremo está à serviço dos particulares que pretendam ingressar com as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), ações declaratórias de constitucionalidade (ADC), ações de arguição de descumprimento de preceitos fundamentais (ADPF), ou ainda de terem suas pretensões reanalisadas através do Recurso Extraordinário (RExt)
Uma vez que provocado, cumpre ao STF realizar o controle de constitucionalidade, que consiste na interpretação dos dispositivos normativos questionados pela parte interessada, a partir dos valores contidos na própria Constituição Federal, conforme preceitua o artigo 5.º §3º, do texto constitucional de 1988.
Nesse ponto, é possível seja estabelecido um comparativo com a jurisdição exercida pelo STF e a Eficácia Horizontal (Mediata) dos Direitos Fundamentais, que é ferramenta para interpretação da norma constitucional do Estado Democrático de Direito e que é originária da jurisprudência e da doutrina alemã.
Sobre a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, esse instituto propõe que nas relações jurídicas civis estabelecidas entre particulares (pessoas naturais ou jurídicas) haja a incidência das normas fundamentais previstas na Constituição Federal, as quais inicialmente estavam destinadas às relações verticais, estabelecidas entre o indivíduo e o Estado.
Diz-se Eficácia Horizontal Mediata dos Direitos Fundamentais, e não Imediata como pretendeu o legislador originário no texto do artigo 5º, §1º na Carta de 1988, em razão dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal ainda dependerem da apreciação pelo Estado-juiz da pretensão resistida por particulares da relação privada.
Enquanto guardião da Constituição Federal, segundo o artigo 102, do texto constitucional, compete ao Supremo Tribunal Federal revestir-se do instrumento derivado do Direito Alemão, para realizar a interpretação do espírito contido na normativa constitucional em prol da aplicação eficaz nas relações horizontais (entre particulares) questionadas.
A prova de que o papel exercido pelo STF é compatível com a instrumentalização da Eficácia Horizontal Mediata dos Direitos Fundamentais seria a de levar à discussão de seu plenário o entendimento sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que está destacado no trecho a seguir do Agravo Interno em Recurso Especial:
CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. 1. CONSTITUIÇÃO EM MORA. RECONHECIMENTO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 7 DO STJ. 2. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. PAGAMENTO DE PARTE MAJORITÁRIA DO DÉBITO. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO INTEGRAL DA DÍVIDA PARA AFASTAR A MORA. PRESERVAÇÃO DA GARANTIA. POSIÇÃO FIRMADA PELA SEGUNDA SEÇÃO DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
(...). 2. Para afastar a mora, é necessário o pagamento integral da dívida pendente, não bastando o pagamento substancial do débito. (...).[2]
Atualmente, o entendimento jurisprudencial consolidado pelo STJ é no sentido de que nos contratos de alienação fiduciária (relação jurídica eminentemente privada), regidos pelo Decreto-lei n.º 911/1962, é inaplicável a Teoria do Adimplemento Substancial em favor dos devedores fiduciantes que arcaram com a maior parte da fidúcia.
Por consequência, os devedores deverão suportar a perda do objeto da alienação fiduciária para os credores fiduciários. O que certamente contraria as máximas previstas no Código Civil e violam os preceitos constitucionais de garantia do mínimo existencial, dignidade da pessoa humana, função social da propriedade, entre outros.
Ora, se a matéria fosse levada em discussão no STF cumpriria ao Tribunal Excelso a interpretação da Lei de Alienação Fiduciária (Decreto-lei n.º 911/1962), que é anterior ao próprio mandamento constitucional de 1988, e assim, juris dizer se tal ordenamento jurídico infraconstitucional é compatível e/ou foi recepcionado pelos valores normativos constitucionais.
Neste diapasão, seria propício fosse levado à debate pelo STF da questão, a fim de houvesse a aplicabilidade horizontal dos Direitos Fundamentais na relação privada descrita. Especialmente, para que os valores constitucionais fossem estabelecidos na relação jurídica contratual (horizontal) fiduciária, a partir da jurisdição (mediata) do guardião do texto constitucional.
Notas e referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo/SP: Editora Saraiva, 2013, p.395.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no AREsp 2052910/PR. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 2022/0009324-4. Relator: Ministro MOURA RIBEIRO (1156). Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 21/08/2023. Data da Publicação/Fonte: DJe 23/08/2023.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 15.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 182-185
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: parte geral. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 46-47.
RAMOS, André Luiz Arnt. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas: O estado da questão. RIL BRASÍLIA A. 53, n. 210. Abr./jun.2016. p. 291-314.
STJ Notícias. Adimplemento substancial: a preponderância da função social do contrato e do princípio da boa-fé objetiva. Publicado em 24/04/2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/24042022-Adimplemento-substancial-a-preponderancia-da-funcao-social-do-contrato-e-do-principio-da-boa-fe-objetiva.aspx>. Acesso em: 25.set.2023.
[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo/SP: Editora Saraiva, 2013, p.395.
[2] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no AREsp 2052910/PR. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 2022/0009324-4. Relator: Ministro MOURA RIBEIRO (1156). Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 21/08/2023. Data da Publicação/Fonte: DJe 23/08/2023.
Imagem Ilustrativa do Post: sem nome // Foto de: CopperScaleDragon // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/copperscaledragon/26749818602
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode