Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 27/02/2016
Ao julgar o HC n.º 126.292, no dia 17 de Fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos (sete votos a quatro), passou a entender ser possível a execução provisória da pena após o julgamento pela 2ª instância. Deste modo, o STF afastou a exigência constitucional decorrente do princípio da presunção de inocência (art. 5.º, LVII, da Constituição da República) de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Como já dissemos neste prestigioso espaço, “a decisão do STF atingiu o coração do princípio da presunção de inocência, mas oxalá permita que ele sobreviva como princípio, como princípio constitucional, como princípio do Estado democrático de direito. Estado democrático de direito, que não se satisfaz simplesmente com a democracia formal, mas, sobretudo um verdadeiro Estado democrático de direito que efetivamente garanta os direitos fundamentais e onde prevaleça a maximização da liberdade e a minimização do poder punitivo estatal”.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, a um só tempo, afrontou o texto Constitucional (art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República), Tratados Internacionais – que o próprio Estado Brasileiro ratificou, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 2[4]), a própria legislação processual penal (art. 283 do Código de Processo Penal) e também sua própria jurisprudência (HC 84.078/MG, de 05/02/2009[5]). [1]
O festejado artigo 5º da Constituição da República está inserido no Titulo II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – não sendo sem razão que respeitáveis constitucionalistas tratam os dispositivos proclamados no referido artigo da CR como clausulas pétreas. Direitos fundamentais que não podem ser alterados nem mesmo por uma nova Constituição já que se trata de conquistas históricas que não permitem retrocesso.
Como ensina Paulo Bonavides,
“A garantia constitucional qualificada ou de primeiro grau garante a inalterabilidade do preceito tanto por via legislativa ordinária como por via constituinte derivada; a regra constitucional é protegida simultaneamente contra a ação de dois legisladores: o legislador ordinário e o legislador constituinte – este último dotado de competência para emendar a Constituição. A garantia constitucional se apresenta tão rígida que não consente sequer seja objeto de deliberação a proposta de emenda sobre a matéria constante da cláusula constitucional de exclusão sobre a qual não incide assim o poder de reforma”. [2]
De acordo com o art. 60, §4º, inciso IV, da CR não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir “direitos e garantias individuais”.
De igual modo, não se admite em matéria de direitos fundamentais qualquer forma de “retrocesso”. A “proibição do retrocesso” norteia a evolução dos direitos fundamentais, sendo assim, os direitos não podem ser suprimidos ou enfraquecidos. No que se refere ao plano normativo, a vedação do retrocesso protege os direitos fundamentais impedindo a revogação das normas que os consagram, bem como a substituição dessas normas por outras que não ofereçam garantias com a mesma eficácia. Embora quase sempre relacionado aos direitos sociais, é evidente que não se pode retroceder, também e principalmente, em matéria de direitos fundamentais e humanos.
A “proibição do retrocesso” é também chamada de efeito “cliquet”, palavra de origem francesa, utilizada pelos alpinistas para significar que, a partir de um determinado ponto da escalada, não é mais possível retroceder, devendo avançar sempre para cima, sendo permitida apenas a subida durante o percurso da escalada e jamais retroceder.
Portando, em se tratando de direitos e garantias fundamentais - princípios garantistas e de direitos humanos - nem o legislador ordinário e nem o STF podem retroceder nos já consagrados direitos e garantias. Nestes casos, assim como na escalada, o legislador e os juízes só podem avançar e progredir em direção a mais garantias e direitos.
Ora, se nem mesmo o legislador ordinário e o legislador constituinte podem abolir direitos e garantias individuais como pode o Supremo Tribunal Federal cometer a insensatez e a ignomínia de suprimir o direito individual fundamental do acusado não ser considerado culpado até decisão condenatória última, definitiva, transitada em julgado. Quando se tem afirmado repetidas vezes que o STF rasgou a Constituição da República, não é por ausência de motivos e justificativas.
Não resta dúvida que a dignidade da pessoa humana – fundamento do Estado democrático de direito (art. 1º, III da CR) – é, também, o fundamento de todo o ordenamento jurídico. Neste sentido Flávia Piovesan, para quem:
“O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro”. [3]
Neste diapasão, é inegável que o princípio da presunção de inocência se refere a garantia e direito fundamental e, portanto, a direitos humanos. Neste particular, verifica-se que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos reconhece um catálogo de direitos civis e políticos de igual modo ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Destacando-se, no universo de direitos: o direito à personalidade jurídica; o direito à vida; o direito a não ser submetido à escravidão; o direito à liberdade; o direito a um julgamento justo; o direito à compensação em casos de erro judiciário; o direito à privacidade; o direito à liberdade de consciência e religião; o direito à liberdade de pensamento e expressão; o direito à resposta; o direito à liberdade de associação; o direito ao nome; o direito à nacionalidade; o direito à liberdade de movimento e residência; o direito a participar do governo; o direito à igualdade perante a lei; o direito à proteção judicial.
O artigo 8º (Garantias Judiciais) da Convenção Americana de Direitos Humanos assegura o direito a um processo justo e o reconhece como algo inerente ao princípio da inviolabilidade da dignidade humana. Fernando G. Jayme, em sua obra sobre “Direitos Humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos” [4], observa que a jurisprudência da Corte concebeu uma verdadeira “teoria geral do devido processo legal, moderna e sintonizada com os valores da dignidade humana e da democracia”. De acordo com o autor, “o devido processo legal existe para salvaguardar os direitos das pessoas em quaisquer circunstâncias e, por essa razão, é uma garantia absoluta, inafastável, mesmo em situações de extrema gravidade, onde a segurança do próprio Estado esteja em risco”. [5]
A Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 2) proclama que “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Assim, a Corte consagra o princípio da presunção de inocência que em termos práticos, representa o seguinte: “a) a restrição à liberdade do acusado antes da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautelar, de necessidade ou conveniência, segundo estabelecer a lei processual; b) o réu não tem o dever de provar sua inocência; cabe ao acusador comprovar a sua culpa; c) para condenar o acusado, o juiz deve ter a convicção de que é ele responsável pelo delito, bastando, para a absolvição, a dúvida a respeito da sua culpa”. [6]
Em palestra proferida na I Conferência Internacional de Direitos Humanos (17.9.1997) sobre a “Democratização do Poder Judiciário e Acesso à Justiça” o ministro Celso de Mello, decano do STF (Supremo Tribunal Federal), assevera que:
“As violações dos direitos humanos, quando absurdamente toleradas pelas autoridades locais do Estado nacional, devem ser repelidas pela ação consequente e eficaz de organismos externos investidos de jurisdição internacional para apreciar – sempre que previamente esgotada a via processual doméstica – qualquer reclamação formulada contra o País, que, embora participando formalmente de convenção ou tratado sobre direitos básicos da pessoa, tenha ainda assim, descumprido o compromisso solenemente assumido na esfera internacional”. [7]
Ao negar vigência à Constituição da República o STF viola garantia e direito fundamental da pessoa humana, uma vez esgotada a via processual no Brasil, restam dois caminhos: 1) o recurso a Corte Interamericana de Direitos Humanos conforme sua competência e sua missão de assegurar o respeito aos direitos humanos no continente americano; 2) esperar que o meteorito atinja e destrua o planeta.
Belo Horizonte, verão de 2016.
Notas e Referências:
[1]Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Flávio Quinaud Pedron e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. Disponível: http://emporiododireito.com.br/presuncao-de-inocencia-uma-contribuicao-critica_/
[2] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
[4] JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela corte interamericana de direitos humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
[5] Idem.
[6] JAYME, Fernando G. ob. cit.
[7] MELLO, Celso. Democratização do poder judiciário e acesso à justiça. In Justiça e Democracia – Revista de Informação e Debates. n. 4 – 2001. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .
Imagem Ilustrativa do Post: Libya Revolution // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ssoosay/6074604716
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.