Em outubro de 2021, o ministro Gilmar Mendes concedeu uma medida cautelar no Recurso Ordinário em Habeas Corpus 206846, determinando a soltura de um acusado por roubo, cuja condenação baseou-se, tão somente, no reconhecimento fotográfico realizado, inicialmente, por meio do aplicativo WhatsApp.
Na sua decisão, o ministro observou que, “embora se tratasse de um recurso substitutivo de revisão criminal, a liminar deveria ser deferida, em razão da aparente ilegalidade verificada no reconhecimento fotográfico pré-processual”, ressaltando-se que, “ainda que seja possível que os agentes tenham se separado e dispensado os objetos roubados e a arma antes da chegada da polícia, nenhum outro elemento corroborou as declarações das vítimas, que afirmaram reconhecer o suspeito, inicialmente, por foto recebida via WhatsApp.”
Ademais, ainda segundo consta da decisão monocrática, “não havia nos autos nenhuma explicação para que o condenado tivesse sido fotografado na abordagem, já que nada fora encontrado com ele”, de tal maneira que “a falta de outros elementos que corroborassem os depoimentos das vítimas, gerava uma situação de dúvida”, motivo pelo qual o recorrente “teria razão ao afirmar que, no caso concreto, o reconhecimento judicial está viciado pelo reconhecimento fotográfico realizado por WhatsApp, somado ao fato de que não há nenhuma outra prova que confirme a autoria do delito.”
Na decisão, cita-se, inclusive, um precedente julgado na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (RHC 176025), em que o colegiado decidiu que o reconhecimento fotográfico, mesmo quando confirmado em juízo, não é prova idônea para fundamentar uma condenação se não houver outros elementos probatórios.[1]
Após a concessão da medida cautelar, e na sessão do último dia 23 de novembro, a Segunda Turma iniciou o julgamento do recurso, tendo o relator, confirmando a sua decisão anterior, votado pelo provimento do recurso para absolver o condenado, tendo em vista a nulidade do reconhecimento fotográfico e a ausência de provas para a condenação.
Nos termos do voto, “a matéria impõe a adoção de uma metodologia específica, a fim de evitar a produção distorcida de provas”, sustentando-se “que o reconhecimento de pessoas tem um regramento detalhado, previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que deve ser observado, a fim de que erros não sejam potencializados. Segundo o relator, “a desatenção às regras procedimentais determinadas na legislação potencializa brechas para abusos ou reprodução de desigualdades e preconceitos sociais como o racismo estrutural.”
Assim, diante da ausência de regulação normativa, o ministro observou “que o reconhecimento fotográfico precisa ser analisado com cautela, como uma etapa preliminar de investigação que deve seguir o procedimento determinado no Código de Processo Penal, além de sustentado por outras provas; e eventual irregularidade deve ocasionar a nulidade da prova, que se torna imprestável para justificar eventual sentença condenatória.”
Citando a própria jurisprudência da Suprema Corte (HC 157007), o relator afirmou “que o reconhecimento fotográfico não é idôneo para embasar a condenação, por si só, e a sua utilização pressupõe existirem outras provas aptas a corroborá-lo”, enfatizando a necessidade de respeitar as formalidades legais para garantir a confiabilidade da prova.
Para ele, no caso julgado, os atos de reconhecimento realizados pela polícia e em juízo não observaram o artigo 226 do Código de Processo Penal, não tendo havido “prévia descrição da pessoa a ser reconhecida nem a exibição de outras fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, a polícia tirou uma foto de um suspeito encontrado em um parque uma hora depois do fato, mas que nada indicava qualquer ligação com o roubo investigado, visto que não houve motivação para a busca pessoal realizada.”
Ressaltou, outrossim, “que, nos autos, não havia informações que explicassem por qual razão os policiais fotografaram o suspeito no momento da abordagem, uma vez que não foi encontrado nenhum objeto com ele.” Por fim, afirmou, confirmando a sua decisão anterior, que “a condenação de um inocente por erro judiciário é, além de obviamente algo inadmissível em si mesmo, um atestado de que o verdadeiro culpado não foi submetido à sanção devida.” O julgamento foi suspenso com um pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski.
Pois bem.
É de se esperar que o voto do ministro Gilmar Mendes seja acompanhado pelos demais ministros, afinal, conforme afirma Ferrua, uma das condições para se qualificar uma decisão como “justa”, ao menos do ponto de vista do processo penal, é exatamente “a observância concreta das formas e regras processuais estabelecidas pela lei.”[2]
Este tema, aliás, já foi objeto de deliberação da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Habeas Corpus 598.886, concedendo-se a ordem, por unanimidade, e absolvendo um acusado que havia sido condenado por um crime de roubo, com base em um reconhecimento pessoal feito a partir apenas da fotografia do acusado mostrada para as vítimas.
Segundo o relator do Habeas Corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, “a não observância das formalidades legais para o reconhecimento – garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime – leva à nulidade do ato, sendo urgente a adoção de uma nova compreensão dos tribunais sobre o ato de reconhecimento de pessoas, não podendo ser mais admitida a jurisprudência que considera as normas legais sobre o assunto – previstas no art. 226 do Código de Processo Penal – apenas uma ´recomendação do legislador`, podendo ser flexibilizadas, acabando por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças.”
Exatamente por isso, Fenoll, explicando o fenômeno da “sensação de saber”, afirma “que a memória, em geral, pode ser pouco segura, pois, de fato, as pessoas percebem normalmente somente aquilo que realmente a ela interessa; por outro lado, existe nos indivíduos uma tendência a confiar bastante na própria memória e, consequentemente, a sobrevalorizar também a dos demais. Assim, a confiança que tenha um indivíduo em sua memória no momento de declarar, não tem absolutamente nada que ver com a exatidão de suas lembranças, fato que deveria fazer pensar os juízes e também os legisladores.”[3]
Durante aquele julgamento na Corte Superior, ressaltou-se que “a inobservância do procedimento descrito na norma legal invalida o ato e impede que ele seja usado para fundamentar eventual condenação, mesmo que o reconhecimento seja confirmado em juízo, devendo o magistrado realizar o ato de reconhecimento formal, desde que observe o procedimento previsto em lei, podendo se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação com o ato viciado de reconhecimento.”
Mais especificamente em relação ao reconhecimento por fotografia, decidiu-se que, “além de dever seguir o mesmo procedimento do art. 226, tem de ser visto apenas como etapa antecedente do reconhecimento presencial, não servindo como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.” Para o relator, o reconhecimento por meio fotográfico “é ainda mais problemático quando realizado por simples exibição de fotos do suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, previamente selecionadas pela polícia. Mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no CPP para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.”
Essa correta e oportuna preocupação do ministro Rogerio Schietti está em absoluta consonância com a doutrina, inclusive porque “nem sempre se apresentam várias fotografias às testemunhas. Ao contrário, às vezes, a polícia tem indícios que apontam para um possível autor de vários delitos semelhantes, praticados na mesma localidade, e pedem às testemunhas e vítimas que venham à polícia, onde mostram uma única fotografia (por exemplo, tirada das câmaras de segurança). Em outras ocasiões, põem a fotografia do suspeito junto a outras formando uma ´roda fotográfica`, e mostram-na à testemunha.”[4]
Conforme acentuou o ministro do Superior Tribunal de Justiça, “deve ser exigido da polícia que realize sua função investigativa comprometida com o absoluto respeito às formalidades desse meio de prova, observando que “o reconhecimento equivocado de suspeitos tem sido uma das principais causas de erro judiciário, levando inocentes à prisão.” No seu voto, ele cita, inclusive, uma pesquisa realizada pela ONG Innocence Project Brasil, mostrando que “aproximadamente 75% das condenações de inocentes se devem a erros cometidos pelas vítimas e por testemunhas ao identificar os suspeitos no ato do reconhecimento. Em 38% dos casos em que houve esse erro, várias testemunhas oculares identificaram incorretamente o mesmo suspeito inocente.”[5]
A propósito, Daniel Schacter, da Universidade Harvard, e Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, Irvine, líderes mundiais em pesquisas sobre memória, “alertam para o fato de que a memória humana não funciona como um vídeo gravado, o qual basta ser repetido para reproduzir acuradamente o evento anteriormente testemunhado. A memória humana é muito mais complexa, sujeita não só ao esquecimento, mas também a distorções.”[6]
Por fim, afirmou o relator que o Superior Tribunal de Justiça, “ao conferir nova e adequada interpretação do artigo 226 do CPP, sinaliza para toda a magistratura e todos os órgãos de segurança nacional que soluções similares à que serviu de motivo para esta impetração não devem, futuramente, ser reproduzidas em julgados penais."[7]
A propósito, na lição sempre oportuna de Cordero “o reconhecedor, no momento culminante, trabalha sobre uma matéria alógica, em curto-circuito com as sensações: a sensação de já tê-lo visto (déja vu) está entre as menos exploráveis; assim, reconhece uma face em relação a qual não recorda nada; e sofre fortes variáveis emocionais. Também as impressões visuais duram menos que a memória historicamente elaborada, pois recordamos os acontecimentos ainda que os rostos já tenham desaparecido; o mecanismo de recordação e as curvas do esquecimento diferem claramente nos dois casos. Por último, aquele chamado a reconhecer sente os fatores ambientais mais do que se os narrasse.”[8]
Sempre importante também lembrar da clássica obra de Altavilla, especialmente quando ele explica que, “mesmo independentemente de qualquer interesse particular, sempre que há contemporaneidade ou continuidade imediata entre dois acontecimentos, pode haver erros na nossa percepção.”[9]
Também Binder, lembrando Foucault, afirma que “a prática judicial, desenvolvida por meio das formas, constitui um determinado tipo de sujeito que, finalmente, é muito mais que um sujeito de conhecimento. As formas estão a serviço da construção desse sujeito, e essa foi sua finalidade mais ocultada, mas, nada obstante, a mais forte e que mais perdurou.”[10] Efetivamente, Foucault entendia que “só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.”[11]
Portanto, é preciso atentar-se para as formalidades legais, especialmente quando se trata da produção de um determinado meio de prova, sob pena de se correr o risco (inaceitável) de se condenar um inocente, ainda que à custa da absolvição de um culpado, afinal trata-se de um risco próprio da atividade processual, sempre sujeita a erros e acertos, pois, lembrando Goldschmidt, o processo representa uma situação jurídica “com expectativas de uma sentença favorável ou perspectivas de uma sentença desfavorável, mas que sempre se espera ter sido fundamentada nas leis.”[12]
Outrossim, nesta questão muito sensível – e pouco enfrentada pelos nossos magistrados – é importante fazer referência também à Teoria da Dissonância Cognitiva, formulada originariamente por Festinger, e que consiste, em apertada síntese, no fato de que “toda pessoa procura um equilíbrio em seu sistema cognitivo, isto é, uma relação não contraditória entre seu conhecimento e suas opiniões.” Assim, “no caso de uma dissonância cognitiva, surge para o sujeito um motivo no sentido de reduzi-la e de restaurar a consonância, isto é, de fazer desaparecer as contradições.”[13] Muitas vezes, é disso que se trata quando se realiza um reconhecimento de pessoa sem respeito ao procedimento legal, à margem da legalidade. Ora, num tal reconhecimento, por óbvio, “a hipótese fática que se pretende provar não resultará finalmente provada.”[14]
Na Itália, conforme Tonini, “o reconhecimento (meio de prova mediante o qual, a uma pessoa que apreendeu com os próprios sentidos um determinado fato, é requerido o seu reconhecimento individuando-o entre outros similares) está minuciosamente regulado pelo Código, pois uma modalidade irregular pode interferir na idoneidade do resultado probatório.”[15]
Em Portugal a preocupação também existe, como mostra Benjamim Rodrigues, ao lembrar que “ninguém ignora que cada vez é maior a tentação de usar, em abono de taxas de eficiência (policial ou judiciária), em matéria de perseguição criminal, métodos ocultos de investigação criminal, sejam eles já clássicos, e conhecidos, ou novos e parcialmente desconhecidos, usados de forma desleal e enganosa (´às ocultas`), à margem dos grandes princípios estruturantes do processo penal típico de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.”[16]
Em definitivo, e para concluir, é sempre preciso aprender com a literatura que “o carácter secreto do crime contribui para o que dele, ou à roda dele, se observe, seja imperfeitamente observado, e o seu carácter interessante tende a produzir testemunhos de natureza involuntariamente conjetural, e os elementos emotivos, que sugere, a evocar testemunhos de carácter preconceitual.”[17]
Notas e Referências
[1] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348040516&ext=.pdf. Acesso em 24 de novembro de 2021.
[2] FERRUA, Paolo. La Prova nel Processo Penale, Volume I, Struttura e Procedimento. Torino: G. Giappichelli Editore, 2012, p. 16.
[3] FENOLL, Jordi Nieva. La Valoración de la Prueba. Madrid – Barcelona – Buenos Aires – São Paulo: Marcial Pons, 2010, p. 217.
[4] DIGES, Margarita, MARTÍNEZ, Maria Carmen Garcia, ESTRAMPES, Manuel Miranda, FENOLL, Jordi Nieva, MARTÍNEZ, Jorge Obach, PÉREZ-MATA, Nieves. Identificaciones Fotográficas y en Rueda de Reconocimiento – Un Análisis desde el Derecho Procesal Penal y la Psicologia del Testimonio. Madrid – Barcelona – Buenos Aires – São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 63.
[5] Veja-se, a propósito, a matéria de Guilherme Rosa, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1705294-como-um-monte-de-gente-inocente-e-preso-por-memorias-falsas-no-brasil.shtml. Acesso em 16 de março de 2016.
[6] LOFTUS, Elizabeth F. e SCHACTER, Daniel L. Memory and law: what can cognitive neuroscience contribute?. In: Nature Neuroscience, Vol. 16, no. 02, 2013, pag. 119 (apud, PINHEIRO, Rogério Neiva e BURATTO, Luciano G. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jun-10/avancos-neurociencia-podem-contribuir-direito-processual. Acesso em 10 de junho de 2015.
[7] Disponível em: : http://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/27102020%20HC598886-SC.pdf. Acesso em 28 de outubro de 2020.
[8] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo II. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editorial Temis, 2000, p. 111.
[9] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Giudiziaria – Il Processo Psicologico e la Verità Giudiziale, Volume I. Torino: Unione Tipografico – Editrice Torinese, 1955, p. 18.
[10] BINDER, Alberto M. El Incumplimiento de las Formas Procesales – Elementos para uma Crítica a la Teoria Unitária de las Nulidades en el Processo Penal. Buenos Aires: AD-HOC, 2000, pp. 42-43.
[11] FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, p. 27.
[12] GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso, Volume II – Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961, pp. 77-78.
[13] SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. Madrid – Barcelona – Buenos Aires - São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 208.
[14] BELTRÁN, Jordi Ferrer. La Valoración Racional de la Prueba. Madrid – Barcelona – Buenos Aires - São Paulo: Marcial Pons, 2007, p. 86.
[15] TONINI, Paolo. A Prova no Processo Penal Italiano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 182.
[16] RODRIGUES, Benjamim Silva. Da Prova Penal, Tomo II. Coimbra: Rei dos Livros, 2010, p. 38.
[17] PESSOA, Fernando. Novelas Policiárias – Uma Antologia. Porto: Porto Editora, 2006, páginas 39 e 40.
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