O STF e a nova roupagem da presunção de inocência

02/03/2016

Coluna Espaço do Estudante

No dia 17 de fevereiro de 2016 o STF mudou o entendimento anterior de que não poderia ser cabível a execução provisória. Todavia, por meio de decisão favorável a implementação da execução provisória, declarou que o início de cumprimento de pena, ainda que pendente de julgamento recurso especial e extraordinário não violaria o princípio da presunção de inocência.

Primeiramente, vamos analisar alguns dos principais argumentos levantados pelos ministros do STF sobre a possibilidade da execução provisória da pena.

Sabe-se que no Estado Democrático de Direito vige diversos direitos fundamentais, os quais em determinado momento poderão entrar em colisão um com o outro, temos como exemplo o emblema entre o princípio da presunção de inocência e o princípio da liberdade. É necessário que exista uma ponderação para que ambos possam conviver harmonicamente. No entanto, é preciso ressaltar que esta ponderação não pode levar ao esvaziamento de determinado princípio, mas apenas a sua relativização.

Desta maneira, pode ocorrer um conflito entre um direito fundamental e um interesse geral, como a segurança pública. O Supremo Tribunal Federal utilizou como argumento a necessidade de buscar um equilíbrio entre o princípio da presunção de inocência e a efetividade da função jurisdicional penal. Todavia, não houve equilíbrio, ao passo que a importância do principio da presunção de inocência fora eliminada, preponderando argumentos vazios baseados em uma possível segurança e clamor popular. Infelizmente, agradando ou não, devem ser respeitadas as regras do jogo, não se deve buscar um caminho mais curto, por ser mais fácil. Sendo assim, se o problema esta na eficácia da função jurisdicional a questão deverá ser encaminhada ao legislativo para que, por meio de processo legislativo, sejam criadas regras jurídicas que maximizam a celeridade no julgamento dos recursos.

Desta maneira, deve-se ressaltar que o ativismo judicial, também, deve ser limitado, principalmente quando se esbarra nos direitos fundamentais assegurados pela constituição. Segundo, Dimitri Dimolus, é possível que os direitos fundamentais sejam limitados, entretanto, alerta o autor que é necessário que esta intervenção seja permitida, caso contrário só seria possível a intervenção após um processo de justificação constitucional para que pudesse ocorrer a intervenção no caso concreto. Desse modo, não se pode permitir uma intervenção que desrespeite o princípio da presunção de inocência, ao passo que é considerada por muitas como cláusula pétrea, logo esta garantia constitucional não pode ter diminuída a efetividade e importância pelo poder judiciário.

Não pode o STF afrontar as garantias constitucionais, com objetivo único de satisfazer apelos políticos e sociais, característico de um direito penal emergencial que promete, por meio, do judiciário ou legislativo, atender aos clamores públicos.

A presunção de inocência, bem como os demais princípios, pode ser relativizada, é o que acontece, por exemplo, quando se permite a prisão preventiva, porém ela não pode ser totalmente ignorada e flagrantemente violada, fazendo com que o texto constitucional fique sem expressão. Isto é um nítido retrocesso.

É inegável considerar que o processo penal somente se finda quando esgotados todos os recursos. Desse jeito, não se pode considerar o recurso extraordinário e especial como não integrante deste processo somente pelo fato de não se tratar mais de processo ordinário e de não ser mais possível a análise de fatos e provas. Deve-se observar que a impetração do recurso especial ou extraordinário impede que o transito em julgado da decisão se configure, justamente porque esta decisão poderá ser modificada, logo, o réu deve ser tratado com presunção de inocência. Querendo ou não, uma decisão pendente de recurso impede a produção total de efeitos, já que poderá ser reformada. De outro modo, pode implicar ate mesmo num aumento de causas judiciais que possuam como objeto pedido de indenização pelos danos causados, quando, por exemplo, um individuo começar a cumprir pena em regime fechado, em execução provisória, e esta decisão for revertida pelo STJ declarando-o inocente. Sendo assim, aquele individuo que cumpre a pena em execução provisória deverá ser liberado, todavia lhe ocorreu um dano irreparável, pois a sua liberdade foi ceifada injustamente, caracterizando um constrangimento ilegal.

De outro modo, é necessário abandonar a cultura da importação de modelos estabelecidos em outros países. Sabe-se que o direito é um construto social, logo esta inteiramente ligado à sociedade e seu aspecto cultural, o qual é peculiar. Isto é possível ser observado por meio da constituição de cada país que estabelece quais são os direitos fundamentais da sua sociedade que merecem ser tutelados. Assim sendo, o argumento de que em tal país já é assim, então no Brasil, também pode ser é totalmente equivocado.

A politica criminal brasileira vive um momento emblemático com o crescimento potencial da população carcerária. A cultura que prevalece no Brasil é a do encarceramento, por isso é preciso que as decisões que possam interferir neste quadro sejam produzidas com observância da realidade atual brasileira. Dentre os países que o Supremo Tribunal Federal citou na sua decisão, a maioria, não estão entre os países com alto índice de encarceramento. Nesta esteira, esses países não podem servir de exemplo para que seja efetivada mudanças potenciais na interpretação constitucional que venham a interferir no aumento dos encarcerados, pois estamos falando de realidades diferentes e não podemos tratar o direito apartado da realidade circundante. O princípio da presunção de inocência é um filtro para que seja exaurida todas as possibilidades de se discutir a culpabilidade do individuo, antes da decisão definitiva.

A constituição de 1988 é marcada pela redemocratização, encerrando o ciclo da ditadura brasileira. Nossa constituição atual foi fruto de muitas lutas iniciadas com a campanha das Diretas Já, onde se reuniu milhares de pessoas exigindo a volta da democracia. A constituição de 1988 é a mais longa de todas as anteriores: são 250 artigos e mais 70 nas disposições transitórias, perfazendo um total de 320 artigos [1]. O art. 5º da CF/88 é considerado um dos mais importantes da Constituição. Ela garante um amplo leque de liberdades, efeito de um país marcado pelo autoritarismo. Sendo assim, não poderia surgir uma Constituição diferente desta. Dito isto,   não pode o STF ignorar a história e a conquista brasileira para permitir um precedente que viola nitidamente o devido processo legal, a presunção de inocência e o duplo grau de jurisdição.

Além disso, verifica-se que a possibilidade da execução provisória viola o princípio do devido processo legal, esculpido no art. 5º, inciso LV da CF/88 na medida em que interrompe o natural andamento do processo ao antecipar a execução de uma pena que foi aplicada antes mesmo de ser julgado os recursos especial e extraordinário. É relevante ressaltar que pode existir mudanças que poderão interferir no regime de cumprimento da pena ou ate mesmo na modalidade da pena do indivíduo. Por conseguinte a questão ainda será objeto de discussão, logo não estariam esgotadas as fases do processo penal. Neste sentido

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 180, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ESPECIAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) REGIME INICIAL FECHADO. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL. REINCIDÊNCIA. DIREITO AO REGIME SEMIABERTO. SÚMULA N.º 269 DO STJ. (3) SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. MEDIDA NÃO RECOMENDÁVEL. (4) NÃO CONHECIMENTO. ORDEM DE OFÍCIO.1. É imperiosa a necessidade de racionalização do habeas corpus, a bem de se prestigiar a lógica do sistema recursal. As hipóteses de cabimento do writ são restritas, não se admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso cabível, vale dizer, o recurso especial.2. Não se mostra razoável a imposição do regime fechado para condenado a pena igual ou inferior a quatro anos, ainda que reincidente, quando a análise das circunstâncias judiciais tenha sido considerada em seu favor, com a fixação da pena-base em seu mínimo legal (Súmula n.º 269 desta Corte). 3. Incabível a substituição da reprimenda por medidas restritivas de direitos, eis que as instâncias de origem assentaram não ser recomendável a medida, não apenas por ser reincidente o paciente, mas também pelo fato de o paciente não ter retornado ao cumprimento da pena após saída natalina. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para estabelecer o regime inicial semiaberto, mantidos os demais termos da sentença e do acórdão. (STJ. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura)

Observa-se que é imperioso ao juiz na aplicação da pena verificar a possibilidade de aplicação do regime semiaberto, mesmo que o réu seja reincidente. Desta maneira, quando imposta, por exemplo, pena inferior ou igual a 4 anos e as circunstâncias do Réu são favoráveis, necessário se faz a imposição do regime semiaberto. Diante disto, surge a possibilidade de continuar o processo penal impetrando recurso especial, já que a decisão foi dada em contrário ao prescrito em lei federal e a jurisprudência predominante. Assim sendo, é nítido e inquestionável que tal procedimento está atrelado ao princípio do devido processo legal, garantia constitucional do Réu. A execução provisória, nesta hipótese, antes de ser julgado o recurso especial, poderá acarretar em um grave prejuízo ao Réu que mesmo tendo o direito subjetivo ao um regime menos rigoroso, qual seja, o semiaberto, estaria enfrentando as mazelas do cárcere.


Notas e Referências:

VILLA, Marco antonio. A história das constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Ed. 4ª. São Paulo: Atlas, 2012.


Emanuela dos Santos Silva. Emanuela dos Santos Silva é Estudante do 8º Semestre da Graduação em Direito na UFBA (Universidade Federal da Bahia); Membro do Patronato de Presos e Egressos da Bahia; Pesquisadora no Laboratório de Ciências Criminais de Salvador e Membro Associado do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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