Por Maria Lúcia Barbosa - 14/11/2016
No dia 27/10/2016, exatamente na véspera do dia do servidor público, o STF profere a decisão com repercussão geral reconhecida no recurso extraordinário 693.456 do Rio de Janeiro. Tratou-se de mandado de segurança no qual os impetrantes, servidores públicos estaduais estatutários, pretendiam que fossem cessados os descontos efetuados pelos dias de paralisação, em razão da adesão a movimento grevista[1].
Após 34 páginas de voto do relator Dias Tófoli, a Corte decidiu da seguinte maneira: ... “A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será́, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público” [2].
Foram 6 votos a 4, em favor do dever de a administração pública fazer o corte do ponto servidores em greve, mas admitiu a possibilidade de compensação dos dias parados mediante acordo coletivo, embora o ministro relator reconheça em seu voto que a negociação coletiva no setor público carece de regulamentação legislativa. Excepciona da possibilidade de descontos as hipóteses de desconto motivado por conduta ilícita do próprio Poder Público.
Desde a constituição de 1988, há previsão do direito de greve do servidor público. A redação originária do art. 37, VII, do texto constitucional garantia o direito de greve condicionado à regulamentação por lei complementar. A Emenda Constitucional n. 19/98 deu nova redação ao dispositivo condicionando o exercício do direito de greve à edição de lei específica, subtraindo a necessidade de edição de lei complementar para regular a matéria. Atualmente é essa a redação do dispositivo: “ VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”.
Se de início apenas uma lei complementar poderia regulamentar tal direito, a emenda constitucional 19/98 trouxe a possibilidade de regulamentação do direito de greve do servidor por meio de lei ordinária, o que facilitava a edição de lei, já que o quórum de aprovação da lei ordinária é menor que o da lei complementar. Em que pese essa maior facilidade, ainda assim o legislador não criou a lei de greve para o setor público.
A luta política dos servidores públicos quase sempre se desdobrava em greves que eram consideradas abusivas pelo poder judiciário pela falta de norma regulamentadora. Assim, o poder público sempre esteve em uma condição muito confortável, já que não estava disposto a negociar melhores condições de trabalho e salariais para os servidores, que, ao deflagrarem greves, eram consideradas abusivas com a consequente obrigatoriedade de retorno ao trabalho, sob pena de multa diária aplicada a seus sindicatos de classe ou associações.
A lei que regulamenta o exercício do direito de greve nunca foi criada. Ainda que os sindicatos de servidores públicos tenham ajuizado diversos mandados de injunção, a realidade é que até hoje, passados 28 anos da constituição não houve regulamentação desse direito. O STF sempre adotou uma postura de autocontenção, de modo que procedeu a intimação do legislativo para que criasse a lei respectiva, o que não surtiu nenhum efeito na criação da lei regulamentadora.
Há nove anos que, em 25/10/2007, no julgamento dos Mandados de Injunção (MIs) 670, 708 e 712, ajuizados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo (Sindpol), pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa (Sintem) e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará (Sinjep), que o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu , por unanimidade, declarar a omissão legislativa quanto ao dever constitucional em editar lei que regulamente o exercício do direito de greve no setor público e, por maioria, que deveria ser aplicada a lei de greve vigente no setor privado (Lei nº 7.783/89) aos servidores públicos[3].
Apesar das especificidades do setor público, já que a norma foi feita visando o setor privado o tribunal entendeu que a mora legislativa na regulamentação do direito de greve afetava direitos fundamentais sociais dos servidores públicos.
Os sindicatos proponentes dos mandados de injunção buscavam assegurar o direito de greve para seus filiados e reclamavam da omissão legislativa do Congresso Nacional em regulamentar a matéria, conforme determina o artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal. Essa decisão decorreu da maturação de um processo de autocontenção do STF que só decidiu dessa maneira depois de haver notificado as autoridades legislativas e ainda assim não haver sido regulamentado tal direito social.
A greve corresponde a uma suspensão temporária do trabalho com o objetivo de pressionar o empregador na concessão de melhores condições de trabalho e/ou salariais. Na definição de Souto Maior Borges “greve é a paralização do trabalho por parte dos empregados, para fins de reivindicação de melhores condições de trabalho ou para a defesa de algum outro interesse” [4].
Tão antigas quanto o trabalho humano e quanto as opressões são as greves. Fala-se em greves de escravos na Roma antiga, mas é com a revolução industrial e com o advento do modo de produção capitalista que o trabalho humano passa a ser objeto de compra e venda, com um valor fixado a partir do salário.
Vendemos todos os dias parcelas de nossas vidas, vendemos nosso tempo, tempo de convivência com as pessoas que amamos, tempo de ócio, tempo de lazer, tempo de sono. O salário que é pago e as condições de trabalho impostas refletem o quão barata é a vida humana. Isso é muito perverso nas relações de trabalho, seja na iniciativa privada, seja no serviço público. Fazem-nos crer que não há saída a esse modelo, precisamos trabalhar, vender nossas vidas para sobreviver em uma sociedade capitalista necessitamos consumir e retroalimentarmos o sistema capitalista de produção. Nesse ciclo vicioso, trabalhamos para viver e vivemos para trabalhar.
E quando esse trabalho nos consome de forma desmedida? O que fazemos? Bom, no modo de produção capitalista, a partir do século XIX, os trabalhadores se organizaram movidos pela situação de opressão. Essa solidariedade foi fundamental na construção de lutas coletivas, a consciência de que a opressão opera contra todos e que somente a organização e a união possibilitariam maior força na luta contra o capitalista que os explorava. Assim, todos os direitos sociais, dentre eles a greve, surgem a partir da luta da classe trabalhadora. Não haveria salario, férias, jornada, descanso remunerado não fosse a morte de milhares de trabalhadores que lutaram para o reconhecimento desses direitos. Não existem direitos sociais sem organização social, sem greves, sem a luta da classe trabalhadora. É bem verdade que a regulamentação de direitos sociais aprisiona as lutas, limita possibilidades, mas essa foi a tentativa de “pacto” entre capital e trabalho que deu origem ao estado social de direito que hoje vemos estar em crise.
Com o advento do Estado Social de Direito, o Estado passa a ser prestador de serviços públicos, ocupando o locus de explorador de trabalho humano. É ele que contrata, assalaria, exige jornada e dispõe da força de trabalho dos servidores públicos. Servidores públicos são as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da administração pública com vínculo em regime estatutário, ou seja, com regulamentação própria.
Da mesma forma que na iniciativa privada, a partir de uma logica de exploração, o servidor público também vende parcela de suas vidas. A diferença é que trabalha para o poder público e que terá maior dificuldade de reivindicar direitos, pois segundo o STF, dada a natureza de continuidade do serviço público, esse servidor não pode suspender seu trabalho para reivindicar seus direitos, não poderá usar a greve como mecanismo de pressão, sob pena de ter seus salários, medida econômica de suas vidas, suspenso. O direito de autodefesa dos servidores de protestar contra a opressão nessa relação de trabalho fica fragilizado, pois somos todos escravos dos nossos salários.
O argumento central do STF para possibilitar o desconto de salários dos servidores em caso de greve é a de prevalência do interesse público ou geral sobre os interesses particulares dos trabalhadores. Em síntese, trata-se de limitar o exercício da cidadania dos servidores restringindo a greve, sob pena de desconto de salário. A decisão chega fazer referencia à autorização legal de contratação temporária de agentes para substituir os trabalhadores em greve. O STF esvaziou sua decisão anterior, inviabilizando o exercício do direito de greve do servidor público.
É fundamental observar que essa decisão se dá num contexto político de limitação de direitos e de gastos públicos com educação e saúde por ocasião da PEC 241 (Câmara) já aprovada na Câmara dos Deputados e que se encontra em tramitação no Senado (PEC 55) com prazo de aprovação provável para 15 de dezembro de 2016. Impressionante como o STF anda em compasso com as decisões políticas advindas do atual governo. A PEC congela gastos sociais com educação e saúde em 20 anos e os servidores dessas áreas terão ainda mais dificuldade, já que até o direito de greve acaba de ser limitado[5].
Além do retrocesso quanto ao exercício do direito de greve, no dia 09/11/2016, o STF colocou em pauta de votação o Recurso Extraordinário RE 713.211/MG, interposto pela Celulose Nipo Brasileira S/A – Cenibra contra a decisão da Justiça do Trabalho proferida nos autos da ação civil pública interposta pelo Ministério Público do Trabalho[6]. Esse recurso versa sobre a possibilidade de terceirização das atividades fins das empresas, inclusive das empresas públicas. Se julgada procedente a terceirização, será cancelada a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho que veda a possibilidade de o poder público e as empresas privadas terceirizarem suas atividades fins, o que significa que qualquer atividade terceirizada.
O Ministério Público do Trabalho aponta que a terceirização incorporada à cultura empresarial brasileira de redução do custo do trabalho a partir da redução de direitos sociais. Os trabalhadores terceirizados têm reduzido seu patamar remuneratório, pois ganham, em média, menos que os demais trabalhadores. A terceirização fragiliza a representação sindical, o que faz os trabalhadores perderem força de negociação por melhores condições de trabalho. Opera-se uma maior instabilidade e rotatividade contratual, esvaziando-se o ideal de continuidade no emprego e consequentemente a garantia de aposentadorias, férias, e demais direitos obtidos a partir da continuidade laboral. No mesmo sentido o Ministério Público do Trabalho aponta que entre 2010 e 2013, nas suas operações de combate ao trabalho escravo, 84,3%, em média dos trabalhadores que estavam submetidos a condições análogas a de escravos eram trabalhadores contratados por empresas interpostas, ou seja, eram terceirizados[7].
Imaginemos o cenário em que a terceirização seja permitida em qualquer atividade. Significa maior precarização das relações de trabalho.
Nesse contexto de aprovação da PEC que congela os gastos sociais, da decisão do STF que possibilita o desconto de salários em caso de greve de servidores, na iminência de o STF decidir pela possibilidade de terceirização das atividades fins das empresas, surgem movimentos de estudantis de ocupação de escolas e universidades que representam uma resistência legitima ao conservadorismo e retrocessos atuais.
Os estudantes têm se articulado, inclusive em solidariedade aos professores que se sentem pressionados a não aderir às greves. As ocupações de escolas e universidades podem ser compreendidas como um ato de resistência às pautas conservadoras vindas do atual governo e do Supremo Tribunal Federal que possibilitam uma destruição dos direitos sociais previstos constitucionalmente.
Esse desmonte de um Estado social capenga para um estado neoliberal vem sendo legitimada pelo poder judiciário que de costas para a constituição, não protege a liberdade de manifestação, direito de reunião, a liberdade de expressão. O principal alvo do poder judiciário passa a ser atualmente as ocupações das escolas pelos estudantes.
Isso observou-se na decisão do juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT) que autoriza a utilização de métodos de torturas, tais como: cortes do fornecimento de água, luz e gás, restrição ao acesso de familiares e amigos, até mesmo que estejam levando alimentos aos estudantes e o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono, o que corresponde à pratica de tortura.
A prática de torturas é definida pelo art 1° da lei n° 9455/97 como: “I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Decisões como essas que determinam a desocupação de escolas, além de incompatível com o texto constitucional, também estão em contradição com Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que possui o entretenimento de que o direito de reunião tem como pressuposto a liberdade de expressão que é fundamento para uma sociedade democrática[8].
Os limites desproporcionais de uma manifestação, em particular quando se trata de grupos que não têm outra forma de se expressar publicamente, comprometem seriamente o direito à liberdade de expressão. Por isso, a Relatoria Especial se preocupa com a existência de disposições penais que convertem em atos criminais a simples participação em uma manifestação, os bloqueios de estradas (a qualquer hora e de qualquer tipo) ou os atos de desordem que, na realidade, em si mesmos, não afetam bens como a vida, a segurança ou a liberdade das pessoas. [9]
Essa transição não só no Brasil na américa latina, com viés de retomar as bases coloniais, imperialistas e autoritárias buscam inviabilizar todas as formas de participação social, seja elas através dos sindicatos, nas ruas ou em ocupações em espaços públicos. Todas tolhidas pelo poder público.
Oportuna para o atual governo esse posicionamento do STF em possibilitar os descontos salariais em casos de greve e decidir eventualmente pela possibilidade de terceirização no serviço público e nas atividades fins das atividades empresariais. Como os servidores reivindicarão direitos com orçamento congelado e impossibilitado de realizar greves? A decisão do STF é perversa, ela deixa o servidor sem alternativas. O que dizer para um professor, cujo piso nacional é de R$ 2.135, 00 (dois mil, cento e trinta e cinco reais)? Contente-se com esse salário? Contente-se com suas péssimas condições de trabalho? O que dizer aos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas? O que fazer se qualquer atividade puder ser terceirizada? Se qualquer trabalhador puder ser substituído a qualquer momento sem respeito a própria continuidade dos serviços públicos supostamente defendida pelo STF?
Estamos vivendo dias muito difíceis, dias de extrema violação de direitos perpetradas pelas instituições que teriam o dever constitucional de defende-las. Esse tipo de decisão do STF distancia cada vez mais a jurisprudência dos objetivos e do projeto de constituição que tinha por base a defesa de direitos sociais e de liberdades públicas. Estamos, de fato, vivendo um período de desconstitucionalização promovida pelo STF, por meio de decisões como essa.
Isso não significa, nem é o que se espera, que seja do STF a competência de conferir eficácia aos direitos sociais ou de regulamentar, por meio da jurisprudência, direitos que devem ser regulamentados pelo legislador. Não é isso. A greve no serviço público deve ser regulamentada pelo poder legislativo, que deverá considerar a necessidade de serviços essenciais e inclusive limitá-la nessas atividades. O que causa estranheza é que, exatamente nesse momento político de falta de legitimidade do governo e adoção de política econômica fundada no sucateamento dos serviços públicos de saúde e educação, o STF tenha decidido dessa forma, deixando os servidores ainda mais fragilizados. Àqueles servidores que decidirem lutar por mais saúde, educação, condições de trabalho, contra a lei da mordaça na educação estarão sem salários.
Essa situação é vergonhosa e trágica porque impõe ao servidor uma escolha entre a sobrevivência e a luta política por meio da greve. Se ele decidir pela greve ficará sem salário, se ele decidir pelo salário terá seus direitos precarizados cada vez mais e ganhará de prêmio o ajuste fiscal e a terceirização.
Realmente, não dá para confiar às instituições o respeito aos direitos do cidadão e não dá mais para confiar ao STF o respeito à Constituição. Novas articulações e alternativas devem surgir a partir da luta daqueles que buscam uma sociedade mais justa. Se é verdade que a história é cíclica, já está na hora de mudarmos o rumo dela. Por hora, os estudantes têm demonstrado que representam uma articulação importante na luta contra a precarização de direitos sociais.
Notas e Referências:
[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=328294&caixaBusca=N
[2] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE693456.pdf
[3] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=75355&caixaBusca=N
[4] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de Direito do Trabalho, volume II, p. 391.
[5] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337
[6] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=328958
[7] http://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/14e6a342-cc4d-464b-93e3-7c61f1397039/Tercerização+da+Atividade+Fim_WEB.pdf?MOD=AJPERES&CONVERT_TO=url&CACHEID=14e6a342-cc4d-464b-93e3-7c61f1397039
[8] CIDH, Relatório sobre segurança cidadã e direitos humanos, 31 de dezembro de 2009 (OEA/Ser.L/V/II), pag. 198.
[9] CIDH, Uma agenda hemisférica para a defesa da liberdade de expressão, Relatoria Especial para a Liberdade de expressão, OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF. 4/09, de 25 fevereiro 2009, pag. 71.
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