O ser humano como ser afetivo: aproximações iniciais entre o Direito de Família e a Hermenêutica Heideggeriana

08/02/2016

 Por Guilherme Wunsch e Wilson Engelmann – 08/02/2016

Compreendendo-se que a relação afetiva familiar necessita ser tutelada juridicamente, é preciso entender o próprio fenômeno de se estar em família, de ser família. E, para tal desiderato, imprescindível a reflexão a partir da matriz fenomenológica hermenêutica de Heidegger, pontuando-se a questão à luz de um chamado direito de família ontológico.

O fator determinante para o pensamento de Heidegger foi o seu encontro com a fenomenologia. Segundo Stein, foi a descoberta da fenomenologia que desencadeou os novos recursos que o conduziram às regiões distantes de um pensamento que se afirmava em confronto com toda a tradição filosófica ocidental. Assim, analisar sua posição dentro do movimento fenomenológico é, portanto, destacá-lo como um pensador que ultrapassou a situação concreta da corrente fenomenológica que recebera.[1]

A fenomenologia veio, antes de tudo, abrir horizontes para a elaboração das instituições e experiências metafísicas dos que a ela aderiram. E, assim, já na introdução de Ser e Tempo, Heidegger irá apresentar o conceito de fenômeno como um mostrar-se em si mesmo, um modo privilegiado de encontro e o de fenomenologia, como “a via de acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve constituir o tema da ontologia. Ontologia só é possível como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados”.[2]

A questão que se coloca como um ponto de partida é a compreensão de que o novo trazido pela teoria hermenêutica de Heidegger, que é aquilo que se chama de fenomenologia hermenêutica é que ele acrescenta um aspecto prático na medida em que descreve o ser humano como um ser-no-mundo, que, desde sempre, já se compreende a si no mundo, mas só se compreende a si mesmo no mundo porque já se antecipou sempre uma compreensão do ser. Essa compreensão do ser não é um ser objetivo, objeto, mas totalidade. Se antes a hermenêutica era o compreender de textos, ou seja, determinados objetos; agora, o compreender é um compreender que se constitui como totalidade, porque é um compreender do mundo, que é a própria transcendência. Como refere Stein, “estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos”.[3]

Nesse contexto, é em Ser e Tempo que Heidegger assume uma tarefa decisiva: a questão do sentido do ser. Essa compreensão da vida fática do homem é que o Heidegger vai chamar terminologicamente de Dasein. Torna-se importante chamar a atenção para esse ponto, uma vez que ao lado desses conceitos, Heidegger definirá a transcendência como o modo em que o Dasein existe, a saber, finitamente.

O problema central de Heidegger é o problema do ser, o fenômeno da existência na sua faticidade. É necessário compreender que em Ser e Tempo, Heidegger identificará o conceito de ser com a noção de presença, aquilo que subsiste, razão pela qual Vattimo explicará que essa obra começa com uma análise preparatória do ser do homem.[4]

Heidegger reconhece em Ser e Tempo que o essencial a toda compreensão é certa pré-compreensão, um certo horizonte preliminar, aberto, que, em vez de limitar a liberdade da compreensão, a torna possível. Aquilo que é procurado na questão do ser não é completamente desconhecido, embora, à partida, nos seja inconcebível. Assim, é possível questionar como se resolve este paradoxo entre o desconhecido e inconcebível. Heidegger o fará a partir da distinção entre ser e ente.

Tem-se com o filósofo que na questão a elaborar, o questionado é o ser, o que determina o ente como ente, aquilo em direção ao qual o ente, qualquer que seja a explicação, é já, a cada instante, compreendido. O ser do ente não é ele próprio. Essa distinção permitirá que se faça ontologia e não história. Chama-se ente a uma multiplicidade de coisas e de modos: aquilo que se fala pensa, os comportamentos, o que se é e o modo como se é. Quanto ao ser, reside no que , no quem, naquilo que subsiste, no que existe, nesse ente particular que é o Dasein, porque ele é o único ente capaz de se interrogar sobre o seu ser.

Ao se analisar tais aspectos da hermenêutica fenomenológica de Heidegger, é necessário destacar que Streck explica que o filósofo será o corifeu da postura que se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o Dasein (o ser-aí). O que nos é dado a entender acerca da existência humana, com sua finitude, sua mobilidade, sua projeção para o futuro e sua precariedade, tudo isso pertencerá à forma primordial do compreender.[5]

Com Heidegger, a hermenêutica deixa de ser normativa e passa a ser filosófica, para a qual a compreensão é entendida como estrutura ontológica do Dasein (ser-aí ou pre-sença), em que o Da (aí) é como as coisas, ao aparecerem, chega ao ser, não sendo, desse modo uma propriedade do ser. A questão sobre o sentido do ser só é possível quando se dá uma compreensão do ser. O sentido articula-se simbolicamente. Encontra-se o Dasein na estrutura simbólica do mundo. O Dasein se comporta compreendendo. A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente denominado Dasein. Quanto mais originária e adequadamente se conseguir explicar esse ente, maior a segurança do alcance na caminhada rumo à elaboração do problema ontológico fundamental. O conceito de ser, vai dizer Lenio Streck, é o mais universal e mais vazio, resistindo a toda tentativa de definição. Por ser o mais universal dos conceitos, prescinde de definição.

De todo este percurso, resta claro que, compreendido o sentido da existência, o intérprete parte para a atualização do texto do direito de família, embarcando na tradição, na fusão de horizontes, no círculo hermenêutico, podendo dar um novo significado ao texto da norma familiar. Como alude Welter, não há como compreender um texto de direito de família imerso no mundo subjetivo do intérprete, e sim assentado nos arraiais da compreensão histórica da compreensão histórica da tradição, pois a filosofia explica e justifica a realidade como um todo, um universal, um entorno hermenêutico, em que o ser humano faz parte dessa realidade histórica como um todo, não podendo ser imparcial “comentando o espetáculo, pois ele é parte do espetáculo da vida”.[6]Assim, percebe-se que os legados históricos influenciaram a elaboração das diretrizes da família republicana brasileira, patriarcal e de vínculo indissolúvel, como se aludiu no primeiro capítulo. No entanto, dessa visão mais preconceituosa, emergiu a necessidade de o intérprete compreender a tradição histórica que significou a ruptura da família patriarcal para a família democrática, como um modo de ser-no-mundo ontológico, afastando-se o conceito dogmático de família (família como instituição, como um contrato), desvelando o mundo da linguagem, da vida, da realidade.

O intérprete não estabelece um sentido para a o direito de família dissociado da história, mas compreende a partir das possibilidades dadas pela tradição, pelo tempo, não havendo um grau zero, novamente, para se utilizar da ideia de Streck e a questão da inexistência do grau zero na linguagem. É apenas pelos conceitos prévios que o intérprete poderá acessar as coisas como elas são, desvelando o mundo humano, desvelando o direito (afetivo) de família.


Notas e Referências:

[1] STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijui: Unijuí, 2001. p.135.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p.75.

[3] STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p.61.

[4] VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Rio de Janeiro: Edições 70, 1987. p.23.

[5] STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p.248.

[6] WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.157.

WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijui: Unijuí, 2001.

STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Rio de Janeiro: Edições 70, 1987.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


Wilson Engelmann

Wilson Engelmann é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2005). Atualmente é professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da UNISINOS. Líder do Grupo de Pesquisa JUSNANO (CNPq/Unisinos). Avaliador ad hoc do INEP/DAES. Orientador de bolsista de iniciação científica PIBITI/CNPq, PIBIC/CNPq e FAPERGS. Orientador de Mestrado e Doutorado.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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