O ser e o ente  

19/05/2019

 

Na Filosofia, a questão terminológica é fundamental, porque os conceitos básicos têm significados em si, que condicionam as demais definições, havendo uma natural interdependência simbólica e lógica entre as palavras de uma língua, que vale, igualmente, para os sistemas de pensamento. Como regra, nesse ponto, há que se buscar, sempre que possível, o senso comum da palavra, sua ideia original, para a melhor interpretação de seu sentido, e para isso muitas vezes é necessário resgatar toda uma visão de mundo na qual foi criada determinada palavra, com seu conceito.

Assim, ente e ser são palavras ligadas por seus significados interdependentes, sendo o ente condicionado pelo ser, porque este possui um sentido mais geral, enquanto aquele é uma determinação deste. Terminologicamente, o ser é, o que vale também para o ente, que é o ser-aí, aquilo que está no ser. Contudo, o ser sempre é, é de sua natureza, do ser, ser o mesmo, mantendo-se o que era no que será. O ser era, é e será. O ente, por sua vez, é uma manifestação do ser, possuindo uma dupla natureza, como aquilo que está e é, porque manifestação do ser, e como aquilo que deixará de estar, porque em um determinado local e momento do ser em seu constante devir, numa forma material, que não se manterá no tempo, na medida em que o ser é o próprio ser em sua passagem de si para si mesmo, no devir, que inclui todos seus estares.

O ser possui, em sua eternidade, um movimento intrínseco no espaço e no tempo, abarcando todos os seus locais e momentos, a totalidade dos seus estados em suas determinações. Contudo, é humanamente impossível, sem auxílio do Espírito, conhecer a completude de um determinado estado do ser, ou seja, o ser em toda sua determinação e todas as suas entidades, porque o estado básico do ser, no mundo físico, é o movimento constante, sendo impossível ao ente, que está dentro do espaço-tempo, a determinação simultânea de todos esses estados, pela magnitude das informações a eles relativas e pela incapacidade de processamento material dessas mesmas informações. Aplicável, atualmente, epistemologicamente, o princípio da incerteza, que, entretanto, não alcança o nível ontológico do ser; caso contrário este não seria o ser em sua necessidade, apenas estaria, como um mero acidente entre um estado e outro.

O ser é sua necessidade na unidade de todos os entes, material e formalmente. O conhecimento humano ocorre pela análise do ser em entes, material e intelectualmente, sendo exigida, para a racionalidade do conhecimento, a unidade lógica, material e intelectual, ou simbólica, dos entes entre si, no ser.

O ser é inicialmente separado em coisas, indeterminadas nesse primeiro momento. Então, a coisa é nomeada pelo ente pensante, sem que este tenha ainda a consciência de sua essência, e o nome transfere intelectualidade ou pensamento à coisa pensada, transformando-a em ente. A Ciência, ou Filosofia, é a atividade humana que desenvolve a razão dos entes, pensantes e pensados, em sua unidade enquanto ser. O nome, por isso, realiza o potencial ôntico da coisa, externando sua essência. Nomear é transferir logos, é conferir uma determinada razão a uma determinada coisa, que deixa de ser coisa, passando a ente. Assim como Deus havia feito com a humanidade, transferindo-lhe seu Espírito, fazendo-a sua imagem e semelhança, o homem transporta para a coisa parte de seu espírito, de sua inteligência, fazendo com que a coisa se transforme em ente, ou seja, passe a ter uma essência, uma qualidade que transcende aquele determinado momento espaço-temporal e material da coisa entificada, porque a essência está, simultaneamente, dentro e fora do espaço-tempo, pelo que não apenas está na coisa, como também é.

Antes do nome, a coisa é indiferenciada, é uma coisa qualquer. Vale salientar que para os animais as coisas são entes, mas inconscientemente, porque representam uma unidade instintiva, com as razões que lhes são inerentes, sem que a inteligência animal possa conhecer as razões dessa unidade. A capacidade do animal para transcender o espaço-tempo é muito limitada, o que também ocorre com o homem sem atenção, sem a consciência da realidade de seu entorno, o que permite que seja enganado por sinais parecidos, que o levam a confundir um ente com outro, uma razão existencial com outra.

Essa limitação cognitiva também afeta os entes presos ao tempo e ao espaço, aos corpos, e que não conseguem a compreensão da eternidade, porque ignoram a realidade mais profunda que integram, e acabam rejeitando o próprio ser ao se identificarem exclusivamente com um aspecto de sua entidade.

O ente que rejeita o ser, apegando-se à sua finitude, ao seu ser-aí, ou dasein, é um ente limitado, fora de seu contexto adequado, transformando esse ente, ser-aí, ou dasein, em não ser. Transformar o ser-aí em mero finito é limitar o ente a uma perspectiva fugaz, à simples temporalidade. É o que faz Heidegger em sua filosofia.

“A constituição ontológica existenciária da totalidade-do-Dasein se funda na temporalidade. Por conseguinte, o projeto estático do ser em geral deve ser possibilitado por um modo originário de temporalização da temporalidade estática ela mesma” (Martin Heidegger. Ser e tempo. Tradução Fausto Castilho. Campinas, SP:723). Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012, p. 1179).

Em Heidegger o ser-aí, ou dasein, é o ente voltado para a sua finitude, preocupado com sua morte. “A morte, como final do Dasein, é no ser desse ente para o seu final” (Idem, p. 711). Ou, ainda: “A morte é a possibilidade mais-própria do Dasein. O ser para a morte abre para o Dasein seu poder-ser mais-próprio, no qual o ser do Dasein está pura e simplesmente em jogo” (Idem, p. 723).

O dasein, como ser-aí, é um ente que se entende no ser, mas sua compreensão de si é limitada e incompleta se identificada apenas com o ente que perece e, portanto, deixa de ser. Há uma incompreensão ontológica em Heidegger quando ele afirma que “o ser para a morte abre para o Dasein seu poder-ser mais-próprio”, porque afirmar “ser para morte” como algo mais próprio do ser-aí significa cair em uma contradição ontológica, na medida em que o ser, conceitualmente, não pode ser para a morte, sob pena de deixar de ser, pelo que o correto seria dizer “o estar para a morte” é uma característica do dasein, e que seu poder-ser mais-próprio é o seu modo-de-ser que não morre, e que é, sempre. O que está em jogo para o dasein, na realidade, pois, não é o que deixará de estar, porque morrerá, mas o que continuará a ser, porque é, ainda que esse ser seja experimentado pelo dasein na temporalidade.

Se é fato que algo de Heidegger morreu, seu corpo perdeu o movimento interno, também é irrefutável que o livro que dele tenho é algo dele que não morreu, é um movimento espiritual (um espírito) que continua agindo sobre a sociedade, inclusive materialmente, é uma parte de seu ser-aí que permanece, fora de seu corpo, o que refuta sua ideia de que o ser-aí é tão somente o que se volta para a morte, porque o ser, em realidade, transcende a morte, ele é. O ser mais-próprio do ser-aí, do dasein, do ente, pois, é o que se mantém além da morte.

Somente é possível compreender o ser, outrossim, a partir da perspectiva do Espírito, do Eu Sou, do entendimento do infinito, daquilo que era, é em nós, e continuará a ser, o Logos. Jesus afirmou “antes que Abraão fosse, Eu Sou”, unindo em si o finito e o infinito, e sua consciência de ser continua, movendo bilhões de pessoas a partir do Espírito que encarnou, do ser mostrado por seu ser-aí, ou dasein, que é o verdadeiro ser.

“O entendimento insiste em rejeitar unidade do finito e do infinito, apenas porque ele tanto pressupõe a barreira e o finito quanto o ser em si como perenes; com isso, ele ignora a negação de ambos que está presente, de fato, no progresso infinito, como (ignora), do mesmo modo, que eles nisso ocorrem apenas como momentos de um todo e que eles emergem apenas mediante seu oposto, mas essencialmente, do mesmo modo, mediante o suprassumir de seu oposto” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser. Traduzido por Christian G. Iber, Marloren L. Miranda e Frederico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016, p. 153).

Destarte, a verdade é agir como ser, é encarnar o Logos, de modo que o ser-aí seja o ser em si, sua essência. Como afirma Hegel:

“A infinitude verdadeira, assim, em geral, como ser aí que está posto como afirmativo frente à negação abstrata é a realidade em sentido superior à anteriormente determinada como simples; aqui, ela obteve um conteúdo concreto. Não é o finito o real, mas o infinito. Assim, a realidade é determinada ulteriormente como a essência, o conceito, a Ideia etc” (Idem, p. 154).

A realidade, portanto, é o Logos, que estava no princípio e estará no fim, era, é e será, e determina o ente que é no ser.

 

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