O risco de lavagem de dinheiro no uso de dinheiro ilícito  

03/06/2021

O crime de lavagem de dinheiro ganhou popularidade após a deflagração da operação lava-jato, protagonizando o papel de imputação criminal coringa para quase todas as ações penais movidas pelo Ministério Público em face de agentes políticos e empresariais.

Neste contexto, também veio a destaque o recebimento de honorários (supostamente) maculados por parte dos advogados que compunham a defesa dos agentes acusados.

De outro lado, notabilizaram-se as pretensas imputações que objetivavam punir agentes que teriam utilizado dinheiro sujo em atividades cotidianas – apesar de não participarem do processo de lavagem dos ativos.

Forçoso, portanto, o estudo da lei de lavagem de dinheiro, Lei nº 9.613/98 – em especial de suas condutas equiparadas, reguladas pelo §2º do Art. 1º, a seguir colacionado:

Art. 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

§2o Incorre, ainda, na mesma pena quem:         

I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal.

II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.[i]

Nota-se que o dispositivo em apreço pune as condutas que se equiparam ao tipo penal trazido no caput, ainda que praticadas fora do processo de lavagem dos ativos, mesmo que executadas por agentes diversos e, apesar do dispositivo incriminador trazido pelo inciso II também se destacar no âmbito dogmático – tendo em vista que parece punir a conduta de quem, simplesmente, participa de grupos que pratiquem lavagem, numa grave inversão do postulado causal trazido pelo Art. 13 do Código Penal[ii] - iremos nos focar na conduta incriminada pelo inciso I.

É importante, portanto, destrinchar os elementos contidos na redação do tipo trazido pelo inciso I, §2º da Lei de Lavagem.

De início, nota-se que a lei pune a utilização na atividade econômica ou financeira de bens provenientes de infração penal, entendida a ação de “utilizar” como o emprego, uso ou aplicação (de qualquer modo) dos bens na atividade econômica ou financeira, compreendidas como as atividades que dizem respeito à produção, distribuição, circulação e consumo de bens e serviços, ao passo que “atividade financeira” referir-se-ia à obtenção, gestão e aplicação de recursos financeiros.[iii]

Desta forma, a lei de lavagem parece punir a conduta do agente que simplesmente usa o dinheiro ilícito nas atividades cotidianas que envolvam a circulação e consumo de bens e serviços, sendo esta ação suficiente para incorrer em conduta equiparada ao tipo de lavagem de capitais, conforme entende Luis Régis Prado, ao dizer que “(...) tem-se como suficiente a mera utilização, sem ter o agente por objetivo a ocultação ou dissimulação da origem dos bens, direitos ou valores”[iv].

Há doutrinadores que, inteligentemente, ainda pontuam que a intenção do legislador seria a punição da terceira fase do delito[v] – reintegração dos valores lavados na economia formal, normalmente para refinanciamento da atividade criminosa que gerou o proveito econômico ilícito -, tornando inócuas as vantagens financeiras obtidas com a prática criminosa, eis que a mera utilização dos valores, ainda que lavados, incorreria em crime, fazendo com que o agente criminoso tivesse que “sentar em cima” dos frutos do crime.

Entretanto, Pierpaolo Cruz Bottini aponta a interpretação do tipo penal noutro sentido, ao dizer que o legislador pune apenas o uso de bens diretamente prevenientes de infrações penais, fazendo incidir a norma do penal do §2º, inciso I do Art. 1º da legislação em estudo apenas ao agente que utiliza bens, valores ou direitos diretamente provenientes dos crimes que os originaram.

Nas palavras do eminente catedrático:

Por isso, as condutas típicas em comento não são a terceira e última etapa do ciclo de lavagem de dinheiro. Se apenas bens diretamente provenientes de infração penal são objeto do delito, não há que se falar em fase final do processo de reciclagem. A conduta objetivamente punível é o uso dos bens de proveniência direta da infração. A utilização de produtos decorrentes da substituição ou transformação dos bens originais pode caracterizar o comportamento do caput, mas não a conduta do §2º, 1.[vi]

Neste sentido, não se poderia fazer uma interpretação extensiva da redação adotada pelo legislador para punir o uso de bens, direitos ou valores indiretamente provenientes de infração penal, visto que a expressão “indiretamente” não está explícita no tipo do inciso I do §2º.

Doutro lado, em relação ao elemento subjetivo exigido para a tipificação do crime em comento, destaca-se a modificação do dispositivo pela promulgação da Lei nº 12.683/12. Antes da norma que modificou a redação da lei de lavagem, onde antes constava que incorre na mesma pena quem “I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;”.

Extrai-se do dispositivo que se aplicava antes da modificação que o legislador punia a conduta de utilizar bens, direitos ou valores ilícitos apenas por parte do agente que conhece sua proveniência criminosa e, com as modificações da Lei nº 12.683/12, passou a punir o agente que faz uso dos instrumentos financeiros na atividade econômica e financeira mesmo que não tenha conhecimento.

De outro modo, poder-se-ia entender, também, que o legislador admitiu o dolo eventual como elemento subjetivo balizador do crime em análise, ao extrair as expressões “que sabe” na reforma provocada pela Lei nº 12.683/12, admitindo que o agente que suspeita da proveniência ilícita dos bens e, ainda assim, os utiliza na atividade econômica ou financeira, assume o risco de lavagem de dinheiro e, portanto, responderia pelo crime equiparado.[vii]

Noutra conjectura, no que se relaciona ao dolo específico de utilizar os valores, bens ou direitos maculados nas atividades englobadas pelo tipo penal com a intenção de mascarar a sua origem delitiva, vale mencionar a interpretação que Blanco Cordero dá à redação do tipo penal de lavagem de capitais no ordenamento jurídico espanhol o qual, citado por Pierpaolo Bottini, entende que a intenção de mascaramento é dispensável quando não prevista no texto legal.

Deste modo, com a crítica do professor Pierpaolo Bottini, no sentido de que:

Ao admitir o dolo eventual, o legislador brasileiro ampliou de tal forma o espectro típico no que se refere ao conhecimento da infração anterior, que se faz necessária uma restrição em outro campo, justamente na exigência de uma intenção transcendente, para além do mero uso[viii]

O mencionado autor ainda relaciona o tipo em comento ao crime de receptação qualificada, argumentando que admitir o mero uso do bem como lavagem de dinheiro tornaria a conduta equivalente àquela proposta pelo tipo do Art. 180, §1º do Código Penal[ix], relevando um grave problema de proporcionalidade (dadas as diferenças de penalidades atribuídas aos dois delitos).

De outra forma, importante mencionar que, exigir a intenção de mascaramento ou ocultação na conduta do agente que utiliza bens, direitos ou valores ilícitos seria o mesmo que estabelecer uma equivalência – e não equiparação – da conduta prevista no §2º, inciso I do Art. 1º à conduta do caput, visto que, em última análise, seria apenas mais um ato voltado à empreitada de lavagem do proveito de uma infração penal.

Isto faria com que o inciso I do §2º tornar-se uma “letra de lei morta” pois a conduta exposta em sua redação seria punida pelo caput.

Todavia, dispensar o dolo específico voltado à ocultação, mascaramento ou dissimulação da origem ilícita dos bens, direitos ou valores não encontra uma lógica justificável tendo em vista que a norma de lavagem de capitais visa, em essência, a punição de condutas voltadas exatamente à tais praticas criminosas, objetivando proteger a administração da justiça.

Sendo assim, todas as condutas que envolvam a circulação do proveito econômico do delito deveriam, a priori, ser analisadas com o dolo extraído do principal tipo penal incriminador da Lei nº 9.613/98, razão pela qual se poderia concluir que o uso de valores, bens ou direitos maculados tem potencial apenas para tipificar a conduta de receptação qualificada, já mencionada, mas não a de lavagem de dinheiro.

 

Notas e Referências

[i] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613compilado.htm. Acesso em 09 mai 2021.

[ii] Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

[iii] PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Pag. 383

[iv] PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Pag. 383

[v] VILARDI, Celso. O crime de lavagem de dinheiro e o início de sua execução. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2004. Pag. 20.

[vi] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários a nova lei 9.613/1998, com as alterações da lei nº 12.683/2012. 3ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016. Pag. 162.

[vii] Idem.

[viii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários a nova lei 9.613/1998, com as alterações da lei nº 12.683/2012. 3ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016. Pag. 163.

[ix] Art. 180,  § 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: 

 

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