O RETORNO DE AUSARDIAZ

05/01/2018

Era quarta, quinta-feira, talvez.

Apolo ainda sorria, altivo, brilhando intensamente enquanto açoitava mortais obrigados a conviverem com os quase quarenta graus trazidos pelos primeiros dias de verão. Àquela altura, o céu ainda não havia permitido que o rosa se mesclasse ao azul reinante, um azul tão areado quanto sereno capaz de elevar o pensamento até algumas das imagens rabiscadas pelas mãos de Renoir para viverem por muito, muito tempo. Tampouco podia ser notada a presença dos flocos de algodão que costumam rasgar tal cenário sem, contudo, feri-lo sequer quando os piores humores impregnam o despertar de Éolo.

Alheio a tudo isso e tão impotente quanto os ponteiros de um relógio agonizando silenciosamente por não terem como deixar de girar, mais ou menos rapidamente, em torno de si mesmos, exausto depois de atravessar, uma vez mais, a interminável jornada que mecanicamente se reproduz, hora após hora, dia após dia, há quase vinte e cinco anos, rumava, desejando poder logo chegar em casa, sem saber porque, pois, não havia quase nada a sua espera que valesse, realmente, a pena naquele lugar que raramente era lembrado como lar.

Em verdade, a única sensação que experimentava, naquele instante – ao transitar por uma das ladeiras que cortam a capital brasileira mais distante do Equador – derivava da vibração havida no esforço do automóvel que conduzia, morro acima, apressadamente, entremeio a árvores, aves, placas, postes, praças, prédios e, como ainda era dia, pessoas assim não percebidas, imagens que iam, uma após a outra, sendo desprezas por seu campo de visão tal qual fumaça soprada para longe do fogo no qual fora gestada.

Do banco traseiro daquele automóvel, Ausardiaz – a personagem, fictícia, foi apresentada, aos leitores, há pouco menos de um ano –, chamou-lhe a atenção, em um rompante, rompendo, com sua voz angelicalmente estridente, o incômodo silêncio que reinava há séculos – consoante a percepção temporal e sensorial de nosso destemido infante –, apesar de ter sido recolhido, no portão da escola que frequentava desde o início do ano, havia pouco mais de quinze minutos, pelo pai, como repetidamente ocorrera ao largo dos últimos quase duzentos e oitenta dias.

– Papai, papai, papai, cuidado, cuidado, papai!

As palavras lhe escaparam à boca quase ao mesmo tempo em que o pai, pelo retrovisor interno, notara o olhar atônito e a invasão de um exército roxo que quase instantaneamente ocupara os lábios de uma criança obrigada à encarar os cerca de 40 centímetros de um azul perigosamente vibrante e retangular movidos pelo giro frenético de cada uma das oito hélices galopantes de um drone que acabara de cruzar, irresponsavelmente, vindo em sua direção, à frente de veículos em movimento, voando baixo através do céu azul areado e agora enegrecido pela angústia provocada pelo contato da visão ainda infantil com aquela coisa flutuando, perigosamente, há menos de quatro metros do solo.

Um objeto voador de titularidade talvez, jamais, identificada e que surgira, quase tão rapidamente, quanto, aparentemente, partira ao deixar para trás, primeiro, a opacidade de um gigantesco ônibus que ia mais rápido que eles, apesar de trafegar pelo lado direito da pista e, logo depois, alguma preocupação nos corações das nossas personagens, tanto de Ausardiaz, a imaginária, quanto a de um ser não tão fictício, embora, aqui, igualmente protegido no interior da pequenina trama criada nesta narrativa pseudoliterária.

Com quase sete anos, nosso corajoso infante permitiu que aquelas palavras lhe escapassem através da boca por bem saber que drones não são brinquedos, como ousou, um dia, inocentemente, acreditar – e quase morreu por causa disso, ficticiamente, é fato –; mesmo quando entre os humanos não fictícios, eles – os drones, portanto – figuram dentre os objetos de consumo mais desejados por seres que têm a sorte de terem os seus endereços catalogados na agenda do imaginário Santa Claus ou, o que é bem mais provável, nos blocos de notas das secretárias de seus pais.

O que Ausardiaz não viu e, também por isso, não comentou tão somente por terem dobrado a esquina segundos antes, foi o cinematográfico voo de um motociclista, melhor, de um motoqueiro, que vinha pela mesma via, há não mais que trinta metros atrás nosso intrépido infante, passeio aéreo motivado pelo contato daquele corpo que, desde então, por alguns instantes infindáveis, rodopiara pelo ar, em um giro, para trás, literalmente, quase mortal, para logo após, impulsionado por algumas das leis da física, ser arremessado com muito vigor e nenhuma paixão, ao chão, ante o contato de seu capacete com aquele mesmo objeto que voava apesar de não ter asas e que não poderia estar voando, exatamente, ali, ao tentar retornar às mãos do seu abobalhado condutor.

***

O Direito dirá ser crime expor outros a riscos.

E isso, de fato, resolve alguma coisa?

O Direito busca regulamentar as áreas de voo.

E isso impede o observar de drones através dos céus das cidades?

E o Direito irá dizer, ainda, ser devida a reparação dos danos sofridos tanto por aquele ser, imaginário outrora caído no chão e que agora jaz, moribundo, sofrendo com o calor insano do verão em um hospital qualquer na periferia da grande Porto Alegre, como os suportados por tantos outros – ilustres desconhecidos ou celebridades meteóricas – que venham a ser eleitos pela Fortuna.

Aqui ele dirá, arrogantemente, serem devidos tanto os danos emergentes – dentre os quais podem ser pensados os custos com medicamentos, tratamento fisioterápico e, ainda, as despesas com a recuperação de sua irrecuperável motocicleta Yamaha, ano 1996 –, como os lucros cessantes, ainda, que nosso trabalhador, lesado, vivesse de bicos ocasionais e, em tal contexto, pouco tenha deixado de lucrar em razão de seu pequeno grau de instrução formal. Dirá, ainda, acerca dos danos de natureza extrapatrimonial, danos à pessoa, portanto, embora, aqui, também, pouco lhe será destinado, pois, desde tempos imemoriais vige o suum cuique tribuere e, como os pobres têm muito, muito menos que os ricos, melhor que tudo siga com está...

Ademais, para que isso ocorra, haverá um sem número de entraves a serem ultrapassados, dentre eles, muitos dos quais não serão aqui narrados, exclusivamente, em razão da condição demasiadamente humana daquele que move a pena que mais borra que colore o papel. Isso, entretanto, não impede pensar sobre quem será o irresponsável que virá a ser responsabilizado pela reparação de danos que venham a ser sofridos em situações mais ou menos semelhantes à vivida por aquele desgraçado motoqueiro, afinal, a esta altura, o piloto daquela aeronave não-tripulada – ou de qualquer outra, que venha a levar um ser humano, com tamanha eficácia, ao chão –, provavelmente, não estará mais no comando de seu joystick e, muito menos, à espera de seu algoz.

É fato que o Código Civil impõe, de forma não escrita, que tanto ao proprietário como ao possuidor de coisa, que lesa a outro, impõe-se o dever de reparar os danos causados por tais coisas, mas como identificá-lo, aferindo, assim, quem conduzia objeto tão insensível através de espaço aéreo pouco amistoso e, porque não, tão densamente habitado?

A análise de qualquer modelo de drone o permite? A identificação do comprador é exigida, sempre? Obviamente haverá – quando emitida – uma nota fiscal, mas, ela não tem essa função, senão indireta. Ademais, isso pressupõe saber quem comercializou um bem que, a depender da violência do choque ou do calor das chamas, pode não deixar o menor vestígio físico de sua curta existência. A mesma lógica há de informar alusões a eventuais coberturas securitárias que venham a ser exigidas como deveres acessórios à compra de drones, exceto e, salvo melhor juízo, se balizadas pela racionalidade que informa o DPVAT e isso leva até outro conhecido problema: o teto da cobertura nem sempre tutelará a vítima.

Acredita-se que tanto o fabricante como o importador destes objetos voadores são personagens que emergem enquanto alternativas para a solução de pequena parte do problema que ganha corpo desde os primeiros parágrafos deste despretensioso opúsculo, também por que, dificilmente, será possível pensar na atribuição do dever de reparar a qualquer lojista – ainda que eles possam vir a ser identificados e, posteriormente, localizados – ante o comando normativo que, hermeneuticamente, pulsa de uma das páginas do Código de Defesa do Consumidor[1], ideia que ganha corpo quando se tem em mente que de fabricantes e de importadores se exige a materialização do dever de informar, o que lhes impõe advertir acerca de todos os riscos que tangenciem a manipulação de drones e, ainda, explicitar, da forma mais clara, pontual e detalhada, as condições e locais de uso e, ainda, as habilidades necessárias para tirar e trazer ao chão as aeronaves que comercializa, bem como, que não são brinquedos.

Na dúvida é oportuno lembrar que todos podem ser a próxima vítima, incluídos, aqui, você e eu...

 

[1] CDC. Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando: I – O fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados; II – O produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador; III – Não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

 

Referências:

CATALAN, Marcos. Um corpo que cai: uma concisíssima reflexão acerca de coisas que voam e não são aves, crianças expostas a riscos que vêm dos céus e adultos que, aparentemente, desconhecem-nos. Emporio do Direito, Florianópolis, 17 fev. 2017.

 

Imagem Ilustrativa do Post: drone 4july2017 // Foto de: Chris Andrew // Sem alterações

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