Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil
É quase impossível, no Direito brasileiro, estudar as famílias simultâneas e não mencionar Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk. Dentre as escassas obras jurídicas dedicadas a analisar o fenômeno da monogamia e suas repercussões jurídicas, sobretudo a respeito das famílias simultâneas, sem dúvidas, o livro de sua autoria intitulado Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional[i] (2005b) é um ícone, citado na maioria dos trabalhos nacionais – para não dizer em todos eles – que, de alguma forma, empenham-se em conjugar esforços para a compreensão e discussão do tema, mesmo que em breves passagens superficiais do assunto.
Ao tratar da simultaneidade de famílias, Ruzyk (2005a, p. 1) a conceitua como a “circunstância de alguém se colocar concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si. Trata-se de uma pluralidade sincrônica de núcleos diversos que possuem, entretanto, um membro comum”.
Ruzyk (2005b) assevera que, no âmbito da conjugalidade, é necessário fixar limites e possibilidades da apreensão jurídica para atribuir-se eficácia à situação de simultaneidade.
O modelo familiar monogâmico, conforme disserta o autor, pode ser identificado como padrão médio da família do Ocidente, o que não exclui a existência de outros padrões. Uma vez que a família é uma construção social, não cabe ao Direito eleger o referido padrão como único passível de tutela jurídica. Além disso, considerando-se a atual finalidade da família e os contemporâneos princípios identificadores da relação familiar, especialmente o do livre e pleno desenvolvimento da personalidade, o da liberdade de constituição e o da pluralidade, a imposição de um padrão de relacionamento, isto é, a imposição da monogamia, choca-se com esses princípios.
Como explica Ruzyk (2005a, p. 5), não se critica a orientação monogâmica para a constituição das conjugalidades, mas a imposição estatal de tal orientação, reputando como “ilícitas formas de convivência decorrentes de escolhas coexistenciais materialmente livres”.
Dessa forma, o primeiro ponto para o reconhecimento das relações de conjugalidade simultânea consiste no afastamento do caráter principiológico da monogamia. É devido a essa visão principiológica que se criminaliza a simultaneidade de casamentos, tipificando-se como crime a bigamia. Porém, nem por isso, deixa-se de dedicar efeitos jurídicos à referida situação, no caso de putatividade por um ou ambos os consortes do segundo casamento. Trata-se, pois, de concluir que, mesmo com a vedação legal e com a visão principiológica da monogamia, o próprio ordenamento, em situações específicas, dedica efeitos às relações paralelas: o casamento putativo.
No entanto, ao mesmo tempo em que Ruzyk (2005a) afasta a monogamia como princípio, na delimitação de critérios permissivos ao reconhecimento da simultaneidade de relações de conjugalidade, acaba por resgatá-la como parâmetro obrigatório para a configuração da entidade familiar. Isso porque, no entendimento do autor, as segundas núpcias – bem como as terceiras, quartas, e assim por diante – paralelas às primeiras não desconstituídas só serão reconhecidas se contraídas de boa-fé pelo membro não comum dos núcleos. Se contraídas de má-fé, não se atribuem sequer os efeitos de união estável, se anuladas as segundas núpcias, em proteção à primeira relação e ao princípio da boa-fé objetiva.[ii]
Ruzyk defende que, apesar do caráter eudemonista da família, a busca da felicidade por meio de sua constituição não teria o escopo de instrumentalizar o outro da relação nem ensejaria a proteção de um dos entes para o atendimento de interesses estritamente individuais, quando tais interesses partiram de escolhas egoístas e narcisistas que geraram prejuízos – patrimoniais e morais – ao outro da relação, principalmente ofendendo sua dignidade.[iii]
Diante dos referidos prejuízos, o autor indica a possibilidade de se negar a produção de efeitos jurídicos à família simultaneamente constituída, “em homenagem ao sentido ético imanente à perspectiva de uma felicidade coexistencial” (RUZYK, 2005a, p. 15). Assim,
aquele que viola deveres inerentes à boa-fé pode não ser contemplado com efeitos benéficos da simultaneidade se esses efeitos, de algum modo, vierem a intervir na esfera jurídica dos componentes do outro núcleo familiar, que tiveram sua confiança e suas expectativas legítimas violadas. (RUZYK, 2005a, p. 20).
Nesse contexto, então, Ruzyk (2005) elenca três possíveis situações de simultaneidade de famílias, das quais somente as duas primeiras teriam os efeitos jurídicos preservados:
1ª situação – Uma pessoa casada constitui, na vigência e manutenção do casamento, união estável, porém com o conhecimento do cônjuge, bem como do companheiro. Ou seja, os membros não comuns das relações paralelas são cientes da coexistência dos núcleos. A coexistência de uniões estáveis também se encaixa nessa situação.
2ª situação – Uma pessoa casada constitui, na vigência e manutenção do casamento, união estável ou casamento com terceiro, porém nem este nem o cônjuge do primeiro enlace tem conhecimento da coexistência dos núcleos.
3ª situação – Uma pessoa casada ou em união estável constitui, na vigência e manutenção do casamento, união estável com terceiro, porém o cônjuge ou companheiro do primeiro enlace não tem conhecimento da coexistência de núcleos, mas o companheiro da segunda união, sim, e mantém-se oculto ao primeiro núcleo.
Antes de se apresentarem as ponderações sobre as três situações-problema descritas pelo autor, cumpre elencar outras três possibilidades não mencionadas por Ruzyk:
4ª situação – Uma pessoa casada ou em união estável constitui, na vigência e manutenção do vínculo, união estável com terceiro, porém este não tem conhecimento da existência da primeira união, embora o membro não comum do primeiro enlace tenha ciência da formação do núcleo paralelo.
5ª situação – Uma pessoa em união estável constitui, na vigência e manutenção da união, casamento com terceiro. O primeiro companheiro tem conhecimento da instituição do novo vínculo, mas o cônjuge do segundo enlace não sabe da existência e manutenção da união estável.
6ª situação – Uma pessoa em união estável constitui, na vigência e manutenção da união, casamento com terceiro, porém o primeiro companheiro não tem conhecimento da instituição do novo vínculo, ao passo que o cônjuge do segundo enlace sabe da existência e manutenção da união estável.
Pela visão de Ruzyk (2005), na primeira situação, em que todos têm conhecimento e toleram a coexistência de núcleos, todos os efeitos da constituição familiar em simultaneidade seriam aplicados, ante a preservação da boa-fé objetiva.
Na segunda situação, em que os integrantes não comuns desconhecem a coexistência de núcleos, em nome da boa-fé subjetiva do membro do segundo núcleo, preservar-se-iam os efeitos do reconhecimento do vínculo familiar, aplicando-se as mesmas regras do casamento putativo.
Na terceira situação, sabendo o membro não comum da situação de conjugalidade do companheiro, não seria reconhecida a família simultânea devido a sua má-fé, aplicando-se também, embora no sentido negativo, as regras do casamento putativo.
Na opinião de Ruzyk (2005a), (i) quando todos os envolvidos na simultaneidade de famílias têm conhecimento e toleram a coexistência dos núcleos, todos os efeitos da constituição familiar em simultaneidade seriam aplicados, ante a preservação da boa-fé objetiva; (ii) quando os integrantes não comuns desconhecem a coexistência de núcleos, em nome da boa-fé subjetiva do membro do segundo núcleo, também se preservarão os efeitos do reconhecimento do vínculo familiar àquele de boa-fé, aplicando-se as mesmas regras do casamento putativo, nos termos do art. 1.561, § 1º C/C art. 1.564, ambos do Código Civil; e, (iii) sabendo o membro não comum do segundo núcleo da situação de conjugalidade preexistente do companheiro, não será deferido efeito a família simultânea devido a sua má-fé, bem como a quebra da boa-fé objetiva em relação ao membro da primeira relação, aplicando-se, também, as regras do casamento putativo, conforme o art. 1.561, § 2º C/C art. 1.564, ambos do Código Civil (BRASIL, 2002). Com isso, para Ruzyk, a boa-fé, tanto subjetiva como objetiva, é requisito fundamental para a produção de efeitos da família simultânea.
Nas palavras de Ruzyk (2005a, p. 20),
aquele que viola deveres inerentes à boa-fé não pode ser contemplado com efeitos benéficos da simultaneidade se esses efeitos, de algum modo, vierem a intervir na esfera jurídica dos componentes do outro núcleo familiar, que tiveram a confiança e suas expectativas legítimas violadas.
Concorda-se com Ruzyk no que diz respeito à impossibilidade de não se reconhecer e aferir ineficácia às famílias simultâneas quando se verifica que os componentes de todos os núcleos conhecem e toleram a situação de simultaneidade e agem de modo ético, transparente, leal, sem violação das expectativas e confiança dos outros. “O atendimento pelos componentes das famílias simultâneas dos deveres de boa-fé faz com que esse princípio, antes de constituir óbice, se apresente como um plus a legitimar a chancela de efeitos jurídicos a essa situação [...]” (RUZYK, 2005b, p. 198).
Porém, analisadas as demais situações apresentadas pelo autor, pode-se tecer as seguintes considerações.
No que se refere à aplicação do instituto do casamento putativo como parâmetro para o reconhecimento e eficácia das famílias simultâneas, esse paliativo não seria plausível, uma vez que todo o tratamento dado ao casamento putativo privilegia a monogamia como norma jurídica. Isso porque, no casamento putativo, embora se valorize a boa-fé subjetiva do consorte não comum da segunda relação, essa vinculação há de ser anulada, e a produção de efeitos se findará com a sentença declaratória de nulidade. Denota-se, com isso, e pela redação do art. 1.561 e §§ do Código Civil (BRASIL, 2002), que a proteção do casamento putativo teria um cunho patrimonial advindo da monogamia. Em termos práticos, ao privilegiar, exclusivamente, a boa-fé do segundo consorte, a lei não se preocupou com a realidade fática por ele vivenciada, nem mesmo com a hipótese de o primeiro casamento existir tão-somente na esfera formal.
Por esse viés, vislumbra-se o tratamento indevidamente diferenciado dado às relações paralelas, se tomado o casamento putativo por referência, haja vista que se ousa questionar tão-somente a conduta do membro não comum da segunda relação. Não se questiona a postura do consorte não comum da primeira relação, e, quanto ao membro comum das relações paralelas, considerando-se que se anula o segundo enlace, e toda a retirada de possíveis vantagens se verifica neste, mantendo-se intacta a primeira relação, chega-se ao contraponto de o infiel ser menos “penalizado“ que o terceiro cúmplice. Ou seja, aquele que firmou o compromisso e o descumpriu sofre menos prejuízos – ou nenhum – que o terceiro, que não prestou qualquer compromisso com o primeiro consorte, como se sua deslealdade fosse mais grave que a do cônjuge infiel.
Analisado esse panorama, Maria Berenice Dias (2010) expõe as considerações a seguir:
O absurdo da solução preconizada se flagra ante a possibilidade de extraírem-se efeitos jurídicos quando se está na presença do que se chama concubinato puro ou de boa-fé. A situação, no entanto, é absolutamente a mesma: um varão – eis que esta postura é basicamente masculina – entretém vínculo afetivo com duas mulheres. Se aquela que vem a juízo buscar o reconhecimento do vínculo dizer que sabia da condição de casado do parceiro, não lhe é assegurado nenhum direito. É quase como se o juiz respondesse com um agressivo: “bem feito!”. Porque sabia do outro relacionamento, não tem qualquer direito. Agora, ainda que a situação seja objetivamente igual (ou seja, mantém o varão duas uniões), mas alega a mulher que não sabia da vida dupla do parceiro, considerando sua boa-fé, lhe são assegurados todos os direitos reconhecendo-se o que se chama de união estável putativa.
Desse modo, o conhecimento ou desconhecimento da situação, por si, não pode ter o condão de tornar juridicamente irrelevante a existência da família constituída em concomitância com a primeira, até porque os elementos caracterizadores da entidade familiar, bem como para a formação da união estável, são, como já se mencionou, a afetividade, a ostensibilidade, a estabilidade e o animus familiae, ou affectio maritalis.
Da análise apurada da ostensibilidade, convencionou-se poder havê-la a uma dada conjugalidade em determinado local e perante determinadas pessoas que compõem o ambiente social em que está inserida e, paralelamente, um dos membros integrar outro núcleo conjugal familiar, igualmente reconhecido assim, em outra localidade, perante outras pessoas daquele círculo social.
Noutro ponto, discutem-se as circunstâncias em que o membro não comum do segundo núcleo tomou conhecimento da existência da união já vivida pelo consorte e, mesmo sabedor do vínculo anterior, estabelece vida em comum. Ruzyk (2005b) entende que, nesse caso, surge para o componente do segundo núcleo o dever, advindo da boa-fé objetiva, de abster-se de estabelecer relação amorosa ou conjugal, pois “aquele que, ciente de que está a manter relação de conjugalidade com pessoa que já compõe um núcleo familiar anterior, procede de modo a desprezar qualquer dever ético perante os componentes da primeira entidade familiar” (RUZYK, 2005b, p. 188).
Esse entendimento teria plausibilidade no sistema cuja única forma de constituir família é o casamento, um negócio jurídico formal, celebrado com a ingerência estatal, semelhante às relações obrigacionais e contratuais ordinárias em sua rigidez. Porém, a partir do momento em que a família passa a ter um conceito plural, permitindo-se sua constituição por diversos trejeitos, em especial quando se trata de famílias simultâneas, o instante da declaração de vontade criadora da relação negocial muitas vezes não será identificado. Como se trata de uma relação afetiva, pela própria natureza de espontaneidade, pode não se ter o controle prévio do que surgirá daquele evento inicial episódico. Muitas vezes o que ocorre é o que Karl Larenz (2006, p. 60) denomina de comportamento social típico, que levaria à formação de negócio jurídico, não pela expressão de vontade própria de obrigar-se, mas pelo comportamento externado que tem um significado social típico, conhecido do agente, e de cujas consequências jurídicas não se pode afastar.
Diante de tal quadro, Marcos Alves da Silva (2013, p. 197) atenta que, sociologicamente, já se estará constituída uma família paralela a outra anteriormente verificada. Mas, juridicamente, pelo entendimento esboçado, seu reconhecimento dependeria da boa-fé objetiva, derivada da boa-fé subjetiva, isto é, do desconhecimento da existência e manutenção da família primeva. Na ausência de boa-fé subjetiva, haveria violação da boa-fé objetiva, sendo condenada “a família paralela, sociologicamente existente, à inexistência jurídica, impondo-se especialmente à mulher, reconhecida como concubina, um lugar de não direito” (SILVA, 2013, p. 197).
Por tudo isso, discorda-se da posição de Ruzyk quando ele afirma que não se cogitaria situação de simultaneidade, nos mesmos fatos narrados, por violação da boa-fé objetiva, que impõe dever de transparência e lealdade – fidelidade – nas relações jurídicas. Tal violação adviria não somente do consorte infiel, mas também daquele que com ele constituiu novo núcleo familiar, principalmente se o reconhecimento com atribuição de efeito gerar algum prejuízo ao primeiro consorte. Como pena,[iv] será ineficaz a relação constituída posteriormente.
No entanto, o dissertado pelo autor, não obstante afirmar tratar de boa-fé objetiva, não passa de análise e aplicação da boa-fé subjetiva, isto é, não se refere à tutela da confiança, mas focaliza a ignorância ou não de determinada situação. Tanto é que Ruzyk (2005a, p. 192) afirma que se mitiga o dever de fidelidade quando os cônjuges pactuam “casamento aberto”, no qual não haverá violação da boa-fé objetiva, podendo ser reconhecidas relações paralelas, uma vez que são de conhecimento de todos os componentes.
Em conclusão, Ruzyk (2005b, p. 26) afirma que, se o companheiro da segunda união tem conhecimento de que seu consorte mantém um casamento ou união estável formada anteriormente, e o componente do primeiro núcleo ignora a existência do segundo, o segundo núcleo se configuraria como concubinato, e, pela incidência do princípio da boa-fé objetiva, estariam obstados os efeitos de direito das famílias ao segundo núcleo, especialmente nas questões patrimoniais que prejudicassem o membro do primeiro núcleo. Tratar-se-ia de uma sociedade de fato, aplicando-se-lhe regras de direitos obrigacionais, tão-somente com o fito de se evitar enriquecimento sem causa.
Todavia, tal conclusão premia o retrocesso jurídico e contradiz imperiosos fundamentos principiológicos constitucionais alhures debatidos. Não se pode negar efeito à constituição de núcleo familiar paralelo pelo simples fato de o outro, pertencente à relação anterior, não ter conhecimento da criação da nova família.
A não tutela ao núcleo formado paralelamente, baseada meramente no fato de o membro do segundo núcleo ter conhecimento da existência do primeiro, evidencia uma proteção “retrógrada” do núcleo familiar, maquiada pela suposta proteção da dignidade do membro do primeiro núcleo.
Pelos apontamentos apresentados, chega-se às seguintes conclusões no que se refere às três situações-problema descritas anteriormente, em outro ponto deste texto, e não enfrentadas por Ruzyk, quais sejam:
4ª situação – Uma pessoa casada ou em união estável constitui, na vigência e manutenção do vínculo, união estável com terceiro, porém este não tem conhecimento da existência da primeira união, embora o membro não comum do primeiro enlace tenha ciência da formação do núcleo paralelo.
5ª situação – Uma pessoa em união estável constitui, na vigência e manutenção da união, casamento com terceiro. O primeiro companheiro tem conhecimento da instituição do novo vínculo, mas o cônjuge do segundo enlace não sabe da existência e manutenção da união estável.
6ª situação – Uma pessoa em união estável constitui, na vigência e manutenção da união, casamento com terceiro, porém o primeiro companheiro não tem conhecimento da instituição do novo vínculo, ao passo que o cônjuge do segundo enlace sabe da existência e manutenção da união estável.
Na primeira hipótese elencada – 4ª situação –, considerando-se a posição defendida por Ruzyk de que a boa-fé seria elemento limitador ao reconhecimento e concessão de efeitos às famílias simultâneas, o fato de o membro não comum do primeiro relacionamento – casamento ou união estável – ter conhecimento da existência do segundo em nada influencia na resolução do problema, pois será levada em consideração a boa-fé subjetiva do membro não comum do segundo relacionamento. Em nome dessa boa-fé, terá efeitos a família simultânea, porém nas regras do casamento putativo. Ou seja, os efeitos benéficos caberão somente ao membro de boa-fé, se desconstituída aí a segunda relação. Mantida esta, como o primeiro núcleo já o conhecia, em nome da ausência de violação à boa-fé objetiva, ambas as famílias permanecem reconhecidas.
Porém, quando se parte para a análise da segunda proposição – 5ª situação –, se é o casamento que se perfaz após uma união estável já constituída, com o conhecimento do companheiro – membro do primeiro núcleo –, mas sem a ciência do cônjuge – membro do segundo núcleo –, válido e eficaz será este. Primeiro, porque a existência de união estável não impede o casamento.[v] Segundo, por consequência direta da primeira constatação, não há de se falar em casamento putativo, porque a segunda relação é válida. Assim, a união estável, primeira união, deixa de sê-lo com o casamento, passando a ser um concubinato. Vê-se que se privilegia o casamento em detrimento da união estável constituída primeiro.
Para a terceira hipótese – 6ª situação –, a mesma solução anterior será verificada. Mesmo que o companheiro da primeira relação desconheça o casamento ocorrido após sua constituição, e o cônjuge da segunda relação tenha ciência da existência da união estável anterior – ou seja, estaria este de má-fé –, ainda assim, o casamento seria válido. Por sua vez, a união estável totalmente válida e eficaz, que se formou primeiro, tornar-se-ia, com o casamento posterior, uma união estável putativa.
Por tudo isso, conclui-se que estabelecer a boa-fé, seja subjetiva ou objetiva, como parâmetro para reconhecimento e possibilidade de eficácia para as famílias simultâneas não passa de subterfúgio para privilegiar a família matrimonializada e determinar que as demais sejam constituídas ao seu espelho, bem como reafirmar a monogamia como norma jurídica.
No mesmo sentido concluiu Marcos Alves Silva (2013, p. 198):
Tomar a boa-fé objetiva como critério para o reconhecimento de conjugalidades simultâneas pode converter-se em mecanismo de reforço de uma concepção matrimonializada de família. Pois, neste caso, ainda que se admita a união estável como relação de fato, esta viria carregada dos estigmas, dos pressupostos e da forma típica do casamento.
Uma vez que as relações de conjugalidade são baseadas numa vinculação afetiva e, portanto, advindas do afeto – elemento anímico, nascido espontaneamente, sem parâmetros racionais de verificação –, determinar que a constituição e reconhecimento jurídico desse tipo especial de relação jurídica devam passar por uma análise de racionalidade de seus personagens – ou seja, o conhecimento ou não de outra vinculação de mesma natureza – contradiz a própria origem afetiva da relação.
Não se pode deixar de mencionar, no tocante à boa-fé objetiva, as anotações de Anderson Schreiber (2013) quanto à banalização da evocação da boa-fé objetiva. Como o autor atenta, a maior das virtudes de tal princípio é o seu conteúdo ético. Entretanto, paradoxalmente, este é também apontado como seu ponto de fragilidade, na visão científica, dada a tendência dos Tribunais brasileiros em reduzir seu significado a algo puramente ético, desconsiderando a técnica. Isso se dá, principalmente, por sua natureza de cláusula geral, cuja amplitude a caracteriza. Muitas das vezes se verifica a alusão à boa-fé objetiva como “cláusula de estilo”, empregada frequentemente como sinônimo de equidade ou moralidade ou como um conceito-síntese do ordenamento.
Também a doutrina, por vezes, invoca a boa-fé objetiva inapropriadamente, sendo comum apresentá-la como um princípio que atende ao ideal de justiça e ao direito natural, impondo conduta normal e correta para as circunstâncias, seguindo o critério do razoável.
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber (2003) ressaltam que a invocação da boa-fé como referencial de comportamento ético genérico necessita que seja preenchido seu conteúdo para se chegar a uma solução adequada, sob pena de se cair em uma aplicação vazia do instituto, desconsiderando dados concretos.
Estabelecido o afastamento da boa-fé em ambas as vertentes, subjetiva e objetiva, a qual constitui elemento limitador ao reconhecimento e eficácia das famílias simultâneas, cumpre analisar sua possível influência na partilha de bens nessas situações de concomitante conjugalidade.
Considerando-se que a boa-fé objetiva irradia seus efeitos a todas as relações jurídicas, especialmente as negociais, incluindo as de direito das famílias, também não ficará sem efeito a violação da legítima expectativa gerada no consorte que, porventura, saia prejudicado patrimonialmente pela atribuição de efeitos jurídicos ao núcleo simultâneo. Porém, isso seria assunto para uma outra oportunidade!
Notas e referências
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 nov. 2023.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias – de acordo com o novo CPC. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
LARENZ, Karl. O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento social típico. Tradução de Alessandro Hirata. Revista Direito GV, v. 2, n. 1, p. 55-64, jan./jun. 2006. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/ article/view/35214> Acesso em: 24 nov. 2023.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Família simultânea e monogamia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 5., 2005, Belo Horizonte; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e dignidade humana. Anais... Belo Horizonte: IBDFAM, 2005a.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005b.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: CZ Editora, 2011.
SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: a superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013.
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Os efeitos da Constituição em relação à cláusula de boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Revista da EMERJ, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, p. 139-151, 2003. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revista23_139.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2023.
[i] Não somente nesse livro o autor disserta sobre o assunto, mas também em artigos científicos, como Família simultânea e monogamia (2005b), apresentado e publicado nos anais do V Congresso Nacional de Direito de Família do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.
[ii] Ruzyk (2005a), no entanto, pondera que, se a simultaneidade é meramente formal, ou seja, se o primeiro casamento, apesar de não desconstituído juridicamente – por meio judicial ou extrajudicial –, faticamente não mais persiste, não seria caso de simultaneidade vínculos, visto que restariam existentes somente as segundas núpcias ou união estável, e as primeiras núpcias estariam fadadas à inexistência, mesmo em caso de má-fé. Tal situação resultaria, inclusive, na não invalidação do segundo casamento.
[iii] A leitura da dignidade pelo autor assemelha-se ao defendido pela professora Maria Celina Bodin de Moraes (2007), sendo que a proteção da pessoa em sua dignidade também se dá pelo princípio da solidariedade, que traz em si um sentido ético de respeito ao outro, que poderia ser violado, por exemplo, no descumprimento dos deveres advindos da boa-fé objetiva.
[iv] Como afirma Maria Berenice Dias (2016), a negação do núcleo paralelo, por vezes, não penaliza o desleal, mas o premia, e quem acaba penalizado, nessa hipótese, é somente o outro, da segunda relação.
[v] Nem mesmo após a possibilidade de averbação de união estável no registro civil, Livro E, pela Resolução nº 37/2014 do CNJ, não se cogita a união estável como impedimento para o casamento. Tanto é que o TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais, regulamentando a referida resolução, expediu o Provimento nº 281/2014, alterando o Provimento nº 260/2013, para fazer acrescer o § 3º ao art. 575 com a seguinte redação: “§ 3º A anotação de que trata o caput deste artigo não é impedimento para o casamento civil ou para a conversão da união estável em casamento entre os conviventes ou entre cada um deles com terceiros, dispensando-se a prévia dissolução da união estável” (grifo nosso).
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