A Defensoria Pública do Estado da Bahia realizou uma coleta de dados sobre as audiências de custódia na comarca de Salvador, desde o mês de setembro de 2015 até dezembro de 2018, resultando em um relatório minucioso, cujo principal objetivo, segundo consta da própria apresentação da pesquisa, foi fazer uma análise do perfil dos presos e das presas em flagrante delito durante aquele período, “além de questões jurídicas relevantes.”[1]
Naquele intervalo de quase três anos, foram registradas 17.793 prisões em flagrante, sendo 16.757 de homens e 1.025 de mulheres (11 prisões, sem informação). Portanto, do total de prisões, 94,2% foram de homens e 5,8% de mulheres. Outrossim, a esmagadora maioria é de jovens com até 29 anos, representando um percentual de 68,3% dos presos em flagrante delito (excluindo-se os registros de “sem informação”).
Também do total, 15.273 declararam-se negros ou negras[2], ou seja, quase 99% de todos os presos e presas em flagrante na capital baiana, naqueles três anos (desconsiderando-se o número de “sem informação” e amarelos).
Nada obstante estes números, a liberdade provisória foi concedida apenas a 51,6% da população negra presa em flagrante, sendo este percentual, no caso dos brancos e brancas, de quase 57%.
Os negros e as negras também foram os que mais tiveram a prisão preventiva decretada (em 40,2% dos casos), sendo que, tão-somente, 27,4% dos brancos e brancas tiveram contra si o mesmo rigor. Estes também foram mais beneficiados pelo relaxamento da prisão (8,6%), ao passo que somente 4,3% (metade) dos negros e negras tiveram a mesma sorte. Estes (a população negra), ao menos no período de 2017 a 2018, afirmaram ter sofrido mais agressões físicas (24,4%) do que aqueles demais (16,4%). E estas agressões físicas eram visíveis em mais da metade dos casos, quase todas supostamente praticadas por policiais militares (cerca de 80%).
O grau de escolaridade foi pesquisado entre os anos de 2017 e 2018; neste período, a maioria presa só tinha o ensino fundamental incompleto (54,6%, desconsiderando-se o registro “não informado”); ainda aqui (entre os anos 2017/2018), a grande parte recebia valor abaixo de dois salários mínimos (quase 99%, também com aquela desconsideração).
A partir destes dados, a Defensoria Pública da Bahia, tendo em vista o período global analisado, concluiu ser o perfil social dos presos e das presas em flagrante, na comarca de Salvador, o seguinte: homem (94,2%) negro (98,8%), jovem (68,3%), com ensino fundamental incompleto (54,6%) e com renda inferior a dois salários mínimos (98,7%). Aliás, mais da metade foi assistida pela Defensoria Pública, em torno de 63% dos casos.
Eis, a meu ver, uma odiosa realidade que, certamente, não se limita ao território soteropolitano, mas, muito pelo contrário, trata-se de uma amostra triste, vergonhosa, repugnante e, sobretudo, indigna, de quanto a escravidão é, ainda hoje, uma maldita herança, seja do ponto de vista social, político e econômico, que afronta os direitos humanos de homens e de mulheres negras, no Brasil e no mundo.
Lembrei-me agora das palavras de Zulu Araújo, um arquiteto de Salvador, ao descobrir suas raízes numa pequena comunidade no interior de Camarões:
“Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui. Só conhecendo nossas origens poderemos entender quem somos de verdade. Enquanto não superarmos a escravidão, não teremos paz – nem os escravizados, nem os escravizadores.”[3]
Um dado causou-me imensa estranheza: entre os anos 2017/2018, em apenas 4,8% a liberdade provisória foi concedida de forma plena, isto é, sem quaisquer medidas cautelares. Ou seja, em 95,2% dos casos houve algum tipo de imposição de restrição ou privação da liberdade, ao ser concedida a liberdade provisória.
Ao que parece, portanto, ao menos nas audiências de custódia realizadas na comarca da capital do Estado da Bahia, aplica-se draconianamente o art. 321 do Código de Processo Penal, esquecendo-se que nele está contida a expressão “se for o caso”; vejamos:
“Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.” (grifo meu).
Por aqui, vê-se, quase sempre é o caso!
E quais os delitos supostamente praticados? A pesquisa mostra que são os crimes contra o patrimônio e aqueles relacionados com drogas, representando um total de 81,3%, ou seja, a grande maioria, tudo a demonstrar a seletividade do sistema penal.
Como dizem Celis e Hulsman, no sistema penal, “são outros filtros que estereotiparam o indivíduo, seu meio e o ato que lhe é reprovado; e as visões assim manifestadas – as visões míopes e rígidas do sistema – são outros tantos etiquetamentos estabelecidos à margem do homem, do que ele verdadeiramente é, do que vive, dos problemas que apresenta.”[4]
A pesquisa também considerou, isoladamente, as mulheres presas, comprovando-se que no período compreendido entre os meses de setembro de 2015 a dezembro de 2018, aproximadamente 97% delas declararam-se negras (desconsiderando o dado “sem informação), e a maioria de jovens mulheres, com menos de 29 anos (quase 60%). Assim, naqueles anos todos, a mulher presa foi predominantemente negra (quase 97%) e jovem (59,1%); quase todas presas por suposto envolvimento com crimes contra o patrimônio e os delitos relacionados às drogas ilícitas (aproximadamente 86%).
Aliás, “a profissão, a classe social, a mobilidade no espaço público, entre outros elementos, são importantes indicadores da perseguição a determinados estereótipos femininos, considerados os mais propensos à prática de condutas criminosas. (...) A vinculação entre mulheres e condutas ilícitas voltava-se àquelas que não correspondiam ao estereótipo do sexo frágil. Possivelmente as principais vítimas do sistema de justiça criminal eram aquelas que estavam mais expostas aos seus olhares e que destoavam na paisagem da cidade moderna.” (grifei).[5]
Um interessante dado também colhido na pesquisa diz respeito à questão da reiteração criminosa; neste sentido, demonstrou-se com números que em todos os anos pesquisados menos de 8% dos presos e presas voltaram para uma segunda audiência de custódia, “o que desconstrói a argumentação crítica pautada no senso comum que entende ser a audiência de custódia um instrumento de ´incentivo à criminalidade`, vez que o flagranteado solto voltaria a cometer delitos por conta de suposta ´impunidade`.”[6]
Evidentemente que a pesquisa é muito mais ampla - e muito mais definidora - do que este texto, pois preferimos aqui ressaltar o perfil dos presos e das presas em flagrante no respectivo período, deixando para outra oportunidade as demais “questões jurídicas relevantes” e constantes do (excelente e oportuno) relatório produzido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia.
Triste com esta realidade que, aliás, não é só nossa (de Salvador), encerro com o “Boca do Inferno” - o maldito! -, o mais rebelde de todos os poetas baianos, um “gênio da raça”, como bem assim o definiu (um outro baiano, e igualmente gênio), Glauber Rocha:
“Triste Bahia! oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.”[7]
Notas e Referências
[1] Veja aqui a pesquisa completa: http://www.defensoria.ba.def.br/wp-content/uploads/2019/09/relatorio-audiencia-de-custodia.pdf, acessado em 10 de setembro de 2019.
[2] Entre pardos e pretos, conforme critério adotado pelo IBGE.
[3] GOMES, Laurentino, “Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, Volume I, Rio de Janeiro: Editora Globo, 2019, p. 175.
[4] HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat de, “Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão”, Rio de Janeiro: LUAM, 2ª. edição, p. 81.
[5] ANGOTTI, Bruna, “Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus – O surgimento dos presídios femininos no Brasil”, São Paulo: IBCRIM, 2012, páginas 117 e 137. Este trabalho foi o vencedor do 16º. Concurso IBCCRIM de Monografias de Ciências Criminais.
[6] Trecho inserto nas “Considerações finais” do relatório, p. 107.
[7] MATOS, Gregório de, “Sonêto”, Antologia, Porto Alegre, L&PM Editores, 1999, p. 103 (trata-se, apenas, de um pequeno trecho da composição poética).
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