Pretendo-me feminista. Algumas feministas denegam-me a condição. Na “categoria” de homem, eu não estaria no “lugar de fala”. Por não viver as condições biológicas e históricas de uma mulher, eu não poderia defender o feminismo.
Discordo. Não carece de estar na condição biológica de um sexo para considerar as condições históricas que o constrangem. É suficiente instruir-se em um bom livro de História ou ler alguma escritura religiosa. Basta observar o derredor.
Faço-me feminista, seja porque persiste um injusto civilizatório dos homens para com as mulheres, seja porque me é desconfortável carregar o ônus de herdar o bônus que os homens se concederam na repartição dos “papéis” de gênero.
É-me inconveniente ser beneficiário de vantagens indevidas. Sou igual, e assim me declaro porque assim me reconheço, não porque tenha a petulância de me supor concedente de condições de igualdade entre homens e mulheres.
Em questões de gênero, não se conferem direitos, já mesmo porque não se deve fazê-lo, já mesmo porque não se pode fazê-lo. Nesse tema, o imperativo moral interpelante de todo homem politizado é o de reconhecer direitos e lutar por eles.
Não é plausível, nessa questão mais de humanidade do que de gênero, exclusividade de “lugar de fala” a quem quer que seja. Aliás, em tudo quanto é ponto de construção libertária da humanidade, ninguém pode privatizar “lugar de fala”.
Há contudo uma posição a ser respeitada: a de protagonista. A causa é de todos, mas tanto a refrega da luta quanto o seu resultado têm machucado mais as mulheres do que os homens. Então, o comando dos acontecimentos há de ser feminino.
Mas posso bem levantar questões. E há uma que me é particularmente aflitiva: a permanência voluntária de mulheres em companhias abusivas. O tempo médio de detença de mulheres em situação de violência é de dez anos.
Muitas mulheres, talvez a maioria, é certo, submetem-se a tal condição porque estão involuntariamente presas em uma armadilha. Inúmeras mulheres encontram-se, à sua revelia, em estado de vulnerabilidade que verdadeiramente aprisiona.
É bom anotar que essas arapucas advêm de culturas milenares e são acachapantes. Elas informam as relações sociais, dando a homens e a mulheres “atribuições”. Essas “atribuições” são valorizadas e generalizadamente subjetivadas.
Um tanto significativo de mulheres, contudo, está liberta de estados terminantemente cerceadores. Quero dizer: há mulheres que se mantêm, não por meios forçosos explícitos de qualquer natureza, em relacionamentos agressivos.
O que fazem lá, nessa conjuntura de violência professada, essas mulheres? Tenho levado essa indagação a muitos lugares. Ao dirigir minha dúvida a Alice Bianchini, ela me redarguiu com provocação: “O que lá fazem os homens?”.
De fato, é uma relação. Homem e mulher estão nela. Então, ocorre-me: os homens estão onde sempre estiveram. Sempre dispuseram dos corpos femininos por amparo costumeiro e legal; perderam o da lei, mantêm o dos costumes.
Num primeiro momento pareceu-me evidente a resposta: os homens ficam, mesmo em situações que se tornaram hostis, porque, dados os costumes, extraem vantagem dela. Considerei, equivocadamente, que para os homens estaria bem.
Mas, aí, recobro o objeto da minha indagação: questiono a permanência voluntária de mulheres independentes em situação de violência; pessoas enlaçadas em situação fragilizada não têm opção, não são voluntárias da própria posição.
Contudo, constado: nessas relações abusivas há mais que controlador e controlada. A situação de violência é, a violência mesma, causa e efeito da perduração da relação. Convivências de homens e de mulheres gays repetem o padrão.
Não refiro rusgas com começo, meio e fim; isso todos conhecemos. Mesmo agressões podem escapar do controle; se não são justificáveis, de toda forma acontecem. Aludo à vida cotidiana em naturalização do rancor, em rotina de ódio.
Há insultos. Os dizeres insultuosos rosnados até poderiam ser capitulados nos crimes contra a honra tipificados no Código Penal. Depois o casal, amuado, silencia. Logo os costumes remetem o par para o mesmo quarto, para a mesma cama.
A parelha, de que gênero seja, amanhece dando curso normal à sucessão dos seus dias. Dá seguimento cotidiano à mesma vida. Alice tem razão: é de se perguntar o que faz nisso um homem. Eu tenho razão: o que faz nisso uma mulher?
Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Certo, a psicanálise assim o atesta. A neurociência testifica que é assim. Há gozo na coisa. Os labirintos do cérebro nos conduzem. Há operações em nós que nos escapam.
Não obstante, homem ou mulher: se te listas entre crentes, Jesus cobraria o alvedrio cristão, ou não haveria pecado; se não crês nessas coisas que animam o povo, Sartre inquire da responsabilidade com a existência, ou não há humanidade.
Beatriz Pereira da Silva: “Processo histórico; a dialética entre discurso e prática é complexa. Há mulheres que se submetem por incorporar o discurso machista. Outras não alcançam a prática do largo amparo discursivo existente”. Assim é.
Cabe, contudo, lembrar: os homens se passam da conta por incorporar esse mesmo discurso, dele extraindo razões de vida machista. O machismo tem vítima, mas não tem sexo: é socialmente produzido e reproduzido por homens e mulheres.
Aduzo: nem sexo, nem a categoria histórica gênero prescrevem um destino inexorável. “É lógico que o gênero traz em si um destino. Todavia, cada ser humano – homem ou mulher – desfruta de certa liberdade para escolher a trajetória a descrever.
O gênero apresenta sim um caráter determinante, mas deixando sempre espaço para o imponderável, um grau variável de liberdade de opção” (Heleieth Saffioti, Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero, Cadernos Pagu, 2001).
Então, do meu por direito e dever “lugar de fala”, indago à mulher emancipada por metódica provocação e ao homem porque fui provocado a fazê-lo: se e quando há saída, que gozo ou desvergonha te mantém nessa vexatória condição?
Os movimentos feministas avançaram, educando homens e mulheres. Educaram a mim, inclusive. Contudo, não obstante o alcance da advertência do discurso libertário feminista, muitos homens e muitas mulheres perseveram em repetição.
Repetem – insisto que refiro homens e mulheres psicologicamente e materialmente independentes – um agarramento doentio a convivências acabadas. Parece-me um “discurso da servidão voluntária” ao desconforto “amoroso” em comum.
Não é razoável questionar homens e menos ainda mulheres (em geral vítimas) caídos nas armadilhas da mentalidade patriarcal. Todavia, ao homem e à mulher que, podendo, não sai disso, indago: o que fazes nos abusos dessa relação?
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