Será possível fazer um olhar hermenêutico sobre a tipicidade penal?
Trabalhei este problema no doutorado, sob o olhar atento do amigo Lenio Streck[1] e outros amigos não menos queridos, aos quais agradeço referindo os parceiros Rafael Tomaz de Oliveira e Adler Baum.
O que pretendo indicar com a expressão “tipicidade hermenêutica” diz respeito ao caráter fundamentalmente interpretativo que envolve os problemas da chamada adequação típica.
A tradição do Direito Penal brasileiro – e, até certo ponto, mesmo no tratamento dado pelo direito alienígena – tende a esconder nos porões da irracionalidade a dimensão da interpretação na configuração do que seja, de fato, um crime.
Na verdade, a chamada teoria analítica do crime, opera como se a adequação do fato à norma penal tivesse lugar a partir de um acesso direito, dispensando-se a interpretação. Trata-se da crença, já por diversas vezes combatida, de que a interpretação é um momento prévio que antecede logicamente a aplicação. Assim, o momento interpretativo é descrito como um movimento a priori ligado ao esclarecimento de determinados desacordos linguísticos. A função da hermenêutica, nesse contexto, é a de uma disciplina auxiliar, servil, que contribui apenas para se evitar mal-entendidos.
Daí que, esclarecidos os sentidos possíveis do texto, o aplicador do direito penal submete o caso a um exame fatiado – por isso, analítico – no interior do qual irá realizar a chamada adequação típica (vide teoria tripartida do delito).
Ocorre que, o elemento interpretativo persegue o intérprete/aplicador do Direito Penal em todos os momentos da adequação típica, no decorrer de todo o procedimento estabelecido pela teoria analítica do crime. Trata-se, pois, de uma concepção que entende a interpretação como um elemento fundamental de toda a experiência jurídica, de tal forma que, assumir essa radicalidade implica, para o Direito Penal, novos caminhos que devem ser trilhados a partir do enfrentamento da questão interpretativa.
Esse enfrentamento deve ser realizado no contexto da defesa de uma teoria da decisão a ser observado no âmbito do direito penal. Uma teoria da decisão, no contexto da chamada crítica hermenêutica do direito, que pode/deve ser pensada através do como (“método”) fenomenológico-hermenêutico.
O “método” fenomenológico, visto – a partir de Heidegger – como ontologia fundamental, serve como excelente fio condutor para uma reflexão crítica sobre o caráter hermenêutico da tipicidade penal.
De se consignar, com Rafael Tomaz de Oliveira, que a ideia de método se transformou no interior da modernidade, de modo que se pode perceber pelo menos duas significações para o termo método. Seguindo as premissas do referido autor, trata-se aqui de distinguir esses dois significados na perspectiva de tornar mais claro o caminho que a pesquisa seguiu. Desse modo, quando é utilizado o termo entre aspas, aponta-se para a própria fenomenologia hermenêutica, enquanto um como um modo de filosofar. Quando, por outro lado, se mencionar o termo método sem aspas, estar-se-á falando do método em seu sentido produzido no interior da modernidade, ou seja: ideia de certeza e segurança próprias da matematicidade do pensamento moderno. Assim, e de modo decisivo, pode-se estabelecer a diferença específica entre os dois modos em que é empregado o termo método afirmando que o método da modernidade é sempre acabado e definitivo. Na verdade, em sua acepção moderna, método significa um tipo específico de organização do pensamento que serve como fiador do conhecimento que, através dele, foi obtido. Já o “método” (enquanto fenomenologia) é sempre precário e provisório e não permite sua total apreensão e domínio.[2]
A fenomenologia deve ser pensada, em termos gnoseológicos (teoria do conhecimento), como a proposta de um modo de filosofar que pretende atingir as “coisas elas mesmas”.
Surge, pelas mãos de E. Hurssel, no contexto da chamada crise do fundamento e da cultura europeia. Nos termos sugeridos pelos integrantes do movimento, ao final do século XIX, a produção filosófica se concentrava na repetição – com algum colorido diferente – das chamadas filosofias clássicas. Assim, propunha-se uma grande revisão de autores consagrados a partir da fundação de um neoaritotelismo, neotomismo, neohegelianismo, neokantismo, etc. A fenomenologia, por sua vez, apresentava-se como um modelo filosófico que se propunha a acessar as coisas elas mesmas, sem intermediários ou intérpretes consagrados. Hurssel consagrou aquilo que ele chamava de nova filosofia, a partir de uma reação contra o psicologismo predominante até então. Sua demonstração da idealidade dos números representou um capítulo final na disputa que se tinha até então, que já havia encontrado – no plano das filosofias analíticas – em Frege um primeiro contentor.
A proposta de Husserl, paradoxalmente, se mantinha aferrada a pressupostos do paradigma da filosofia da consciência: se pretendia como superadora do psicologismo, mas acabava reafirmando certos pressupostos desse paradigma consciencialista, ou seja, acabava ainda prisioneira da relação Sujeito-Objeto (S-O).
Em Heidegger, assistimos uma transformação no interior da fenomenologia que supera, de certa forma, esses recalques do seu mestre. Em primeiro lugar, a fenomenologia deixa de ser encarada como verdadeira filosofia e passa a assumir um significado “metodológico”: a fenomenologia passa a ser o como que a investigação deverá pressupor. Nesse sentido, assume o caráter de uma metódica da compreensão em que se supera a concepção idealistica da “Filosofia da consciência” (que separa, hermeticamente, o sujeito cognoscente do objeto cognoscível) a partir da preponderância que assume o fenômeno e sua mediação linguistica como fator determinante para os resultados da investigação científico-filosófica.[3]
Assim, pode-se dizer, sucintamente, que o “método” fenomenológico visa ultrapassar o tecnicismo cientificista que caracteriza a consciência assujeitadora do mundo da Metafísica, estabelecendo um novo processo travado na estrutura do conhecimento em que sujeito e fenômeno estão inseridos numa mesma realidade de tempo e lugar e, a partir dela, devem ser pensados. Calca-se a análise em uma relação sujeito-sujeito na qual tanto o “sujeito” cognoscente quanto o “objeto” cognoscível estão inseridos em uma mesma realidade histórico-temporal que condiciona a existência de ambos.
Daí Lenio Streck afirmar que a questão fundamental no Direito será, assim, conseguir compreender que ‘fundamentar não é um problema de metodologia ou de procedimento argumentativo’, mas, sim, um modo de ser, pela simples razão da que hermenêutica é filosofia e não normatização de “procedimentos metodológicos” que sustentariam o raciocínio dos juristas.[4]
Com efeito, o “método” heideggeriano ultrapassa o solipsismo metodológico tradicionalmente utilizado pela filosofia da consciência, quando demonstra a superação da ideia da supremacia do sujeito no desenrolar do processo de conhecimento, a partir da descoberta – ou “desentulhamento” – do ser. Assim, o homem e as coisas não estão soltos, desprendidos uns dos outros. O homem, como ente privilegiado dotado de dasein (pre-sença), é sempre ser-no-mundo; ser-em; ser-com, e nesta condição se relaciona com os demais entes intramundanos, segundo a historicidade e temporalidade nas quais estão inseridos.[5]
Nessa medida, a “metodologia” heideggeriana se ajusta com perfeição aos objetivos pretendidos pela pergunta feita no início, revelando o objetivo de trazer à presença da teoria do direito penal um fenômeno que ela parece ignorar quando trata das questões ligadas à tipicidade: o caráter radicalmente interpretativo que a constitui e lhe dá conformação. Trata-se de uma proposta que tem como aportes teóricos máximos a evolução da Teoria do Estado – a partir do enquadramento histórico e do desenho institucional do modelo de Estado Democrático de Direito; além disso, a fenomenologia hermenêutica e a hermenêutica filosófica como praxis capacitadora da concretização da principiologia constitucional no âmbito da concretização interpretativa do Direito Penal.
A aproximação da filosofia (hermenêutica) como condição de possibilidade para pensar o problema das soluções em direito, coloca o pensamento jurídico num horizonte completamente novo. A descrição da fenomenologia hermenêutica heideggeriana (e os contributos posteriores da hermenêutica filosófica de Gadamer), constituem uma nova matriz para pensar os fenômenos jurídicos, considerando e aceitando a diferença essencial-existencial que cada fenômeno nesse âmbito possui.[6]
A invasão da filosofia (hermenêutica) no direito pode representar a possibilidade de superação das aporias e dicotomias decorrentes do apego ao pensamento metafísico (clássico e moderno), o que deverá proporcionar o rompimento com o atual modo-de-ser do jurista e permitir um novo olhar sobre os fenômenos e seus significados.
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] Lenio Streck, como é sabido, fundou a Crítica Hermenêutica do Direito ou Nova Crítica do Direito, fazendo uma imbricação entre a filosofia hermenêutica de Heidegger e a hermenêutica filosófica de Gadamer (e, posteriormente, agregando a teoria integrativa de Dworkin), manancial teórico que orientou a escrita da tese.
[2] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 13.
[3] STEIN, Ernildo. Pensar e Errar: um ajuste com Heidegger. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. p. 195.
[4] STRECK, Lenio. Hermenêutica e applicatio jurídica: A concreta realização normativa do direito como superação da interpretação jurídico-metafísico-objetificante. Revista da Faculdade de Direito - studia iuridica 90, Coimbra, 2008. p. 1130.
[5] STEIN, Ernildo. Breves Considerações Históricas Sobre as Origens da Filosofia no Direito. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, vol. 1, n. 5, p. 97-110, 2007.
[6] HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008. pp. 3-4
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