Por Thula Pires – 22/05/2017
Recentemente, reli o texto “Género, Raza, Sexualidad. Debates contemporâneos”, de Ochy Curiel (2014), e uma das perguntas presentes no texto vem me acompanhando desde então: o que significa renunciar a uma categoria? Ao debruçar-se sobre a necessária imbricação entre as três variáveis – gênero, raça e sexualidade – para a conformação de uma crítica feminista decolonial, a dominicana nos interpela de maneira decisiva a confrontarmos a subsidiariedade que é imposta a determinadas categorias nos diversos projetos que se apresentam, sejam eles rotulados como progressistas, emancipatórios ou conservadores.
Ao manter latente essa pergunta, Curiel nos incita a revisitar permanentemente nossas propostas teórico-políticas de modo a nomearmos tudo aquilo a que lançamos luz, mas principalmente, o que renunciamos. Grande parte do mito da universalidade e neutralidade construída e reforçada pelo pensamento eurocêntrico hegemônico se sustentou exatamente pela não nomeação de algumas categorias, ora para mantê-las como representativas do universal, ora para garantir sua rejeição.
Em sociedades de herança colonial escravista, os não brancos tratados como objeto (RAMOS, 1995) são extremamente racializados, em contraposição ao branco, representante do universal, sujeito a partir do qual são definidas as noções de respeito e cidadania. Esse pacto narcísico (BENTO, 2014) é responsável, em grande medida, por informar a renúncia da categoria raça das propostas que defendem a centralidade da classe, gênero ou sexualidade. Em resposta, os estudos críticos da branquitude racializam o branco para que deixe de se configurar como sujeito universal e seja possível perceber os códigos através dos quais o racismo opera estruturalmente, conformando brancos, não brancos e instituições racistas. Ao não renunciar a categoria raça, é possível perceber não apenas os efeitos do racismo sobre brancos e não brancos, mas também o seu impacto sobre o funcionamento de outras formas de dominação e opressão. Dito de outra maneira, não renunciar a categoria raça ajuda a entender melhor como funciona o patriarcado, a heteronormatividade e a luta de classes.
A análise das relações entre sexualidade e gênero devem conter as maneiras como a raça e a classe constituem nossas relações sociais e institucionais e são constituídas por elas. Confrontar a sexualização da raça através da racialização da sexualidade pode oferecer ferramentas importantes para enfrentarmos o contexto que herdamos. É preciso que a heteronormatividade seja entendida como um regime político que transcende as experiências sexuais, ainda que as inclua, manifestando-se em questões como, por exemplo: nuclearização da família, papéis sociais esperados do homem e da mulher, binarismo sexual, apropriação e exploração de corpos e de força de trabalho das mulheres, notadamente das mulheres negras e indígenas (CURIEL, 2016).
Entender a desumanização naturalizada dos corpos não brancos ajuda não apenas a perceber as estratégias do racismo, mas também do sexismo (da maneira pela qual irá operar sobre mulheres brancas e não brancas), da heterossexualidade compulsória (não apenas em relação a gays, lésbicas, transvestigêneros, não binários, mas inclusive sobre heteros), assim como o lugar reservado aos corpos não negros nos indicadores sociais de renda, saúde, educação, alimentação, moradia e violência.
Tenho defendido a necessidade de racializar para politizar gênero, classe e sexualidade como categorias empíricas, analíticas e normativas. O que nos mantém divididos entre as zonas do ser e do não ser é a perpetuação de um sistema de normas e pactos que privilegiam algumas categorias e renunciam outras, mantendo a conversa inacessível a alguns corpos, narrativas e saberes. Conforme nos ensina Ochy Curiel (2016), compreender a imbricação das opressões não se trata de pensar categorias que conformam um somatório de experiências ou uma intersecção de categorias analíticas. Trata-se de entender como estas experiências tem atravessado historicamente nossa região desde o colonialismo até a colonialidade contemporânea e como se tem expressado em certos sujeitos que não experimentaram privilégios de raça, classe, sexo e sexualidade, como as mulheres negras, indígenas e campesinas da região.
Quanto menos renunciarmos as categorias, maiores são as possibilidades de produzirmos uma conversa intercultural, uma agenda política de transformação ancorada na experiência dos movimentos sociais, a superação da dicotomia entre natureza e cultura (que informou nossas relações raciais, de gênero e sexualidade, mas não apenas) e o enfrentamento da histórica incomensurabilidade entre as zonas do ser e zonas do não ser.
Vive-se um momento político de absoluto retrocesso na fruição de direitos e onde a necessidade de redefinirmos estratégias de atuação e organização configura-se como questão de sobrevivência para negros, negras, indígenas, mulheres, lésbicas, gays, transvestigêneros, trabalhadoras, trabalhadores e todos aqueles e aquelas que sofrem desproporcionalmente os ônus da implosão dos poderes constituídos. É preciso que estejamos atentos às categorias que informam nossas ações, mas principalmente àquelas que são desconsideradas por elas.
A subsidiariedade histórica imposta às categorias de raça, gênero e sexualidade por determinados grupos de esquerda, se reinventa em algumas propostas ditas progressistas que fazem referência a implicações do racismo, sexismo e heteronormatividade, mas que continuam a depositar na luta de classes “o” lugar da tomada de consciência, da tomada de poder e do fim da opressão. Muitas são as iniciativas que se pretendem emancipatórias, mas que operam na lógica da branquitude, do patriarcado e da heterossexualidade compulsória. Esse mesmo cenário, em momentos políticos anteriores, de grave violência institucional e autoritarismo, impediu que se produzisse uma resistência articulada e horizontal.
Uma resistência política popular de larga escala precisa ser tecida por meios que não reinventem as hierarquias moderno-coloniais entre nós. Renunciar categorias é renunciar a condição política de diversos corpos e experiências que por elas são social e politicamente produzida(o)s. O momento político atual exige uma luta conjunta contra as estruturas de poder racistas, sexistas, heteronormativas, capitalistas, imperialistas e neocoloniais. Já passou da hora de Temermos a “mãe colonial”, cujo objetivo é apenas o de defender o filho dele mesmo! (FANON, 2005)
Notas e Referências:
BENTO, Maria Aparecida Silva. Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições. In Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a psicologia social no Brasil. Maria Aparecida Bento [org.]. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.
CURIEL, Ochy. "Género, raza, sexualidad: debates contemporáneos." Colombia: Universidad del Rosario. Disponible en http://www. urosario. edu. co/urosario_files/1f/1f1d1951-0f7e-43ff-819f-dd05e5fed03c. pdf, 2014.
CURIEL, Ochy. De las identidades a la imbricación de las opresiones. Desde la experiencia. In Encrespando. Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescentendes (ONU, 2015-2024) / FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Brasília: Brado Negro, 2016, p. 75-89.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. trad. Enilce Rocha e Lucy Magalhães, Juiz de Fora: UFJF, 2005.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Patologia social do “branco” brasileiro. In Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
. . Thula Pires é Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio) e professora da graduação e pós graduação na mesma instituição. . .
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