O que Jesus Cristo, Sócrates e a Fera de Macabu têm a ver com o rapaz tatuado na testa?

24/06/2017

Por Lucas Silvy Santos - 24/06/2017

Em meados do mês de junho deste ano, muitos brasileiros, alguns atônitos e outros maravilhados, colocaram-se frente aos computadores e telefones celulares para verem, muitos com regozijo e outros poucos com indignação, a filmagem de um rapaz sendo tatuado na testa pelo fato de ter supostamente furtado a bicicleta de um deficiente físico.

A filmagem, que viralizou nas redes sociais, foi divulgada com entusiasmo, como se a atitude do tatuador fosse digna de louvor e representasse, por si só, a vontade de muitos brasileiros que, indignados com os altos índices de criminalidade, acreditam que o crime deva ser combatido com mais crime.

Vários dias se passaram desde a data dos fatos, mas o assunto ainda continua atual, apto a demonstrar que estamos vivendo um período inquisitorial, marcado pela vingança privada e pelo ódio.

Os dias se passaram, o vídeo parou de ser divulgado, mas a tatuagem ainda continua na testa do adolescente. Foi marcado como gado!

Não estou querendo aqui - antes que alguém diga para eu levar o rapaz para casa - defender a prática de crimes. Todo o oposto. Estou, na verdade, tentando entender o motivo pelo qual se tortura - sim!, aquilo é tortura, um ato desumano e degradante - uma pessoa responsável pela suposta prática de um crime contra o patrimônio, ao invés de encaminha-la para as autoridades competentes.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, inciso III, é clara ao afirmar que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

Hoje, em uma sociedade que exala ódio, coíbe-se o crime com outra prática criminosa. Até onde sei, o exercício arbitrário das próprias razões ainda é crime, estando previsto no artigo 345 do Código Penal.

A tortura, prática desprezível levada a cabo nos porões das piores ditaduras, é, consoante o ordenamento jurídico constitucional brasileiro, crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

É inconcebível que tal prática criminosa, afeita a pessoas desprovidas de qualquer senso humano, seja endossada pela maioria da população como se fosse algo normal, trivial e comum, fruto de uma sociedade perplexa com os altos índices de criminalidade. Será que chegamos ao estágio da guerra de todos contra todos, conforme descrito por Hobbes em seu Leviatã?

Realmente, regredimos muito em termos humanitários. Voltamos à Lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Fazer justiça com as próprias mãos tornou-se um ato de grandeza. Talvez tenhamos voltado, realmente, ao estado de natureza descrito pelo referido filósofo inglês.

A verdade é que nosso sistema penal é seletivo, atingindo, na maioria das vezes, a parcela mais vulnerável da sociedade, como no caso do rapaz que, tatuado na testa por um “cidadão de bem”, viu-se submetido ao ridículo extremo.

Em entrevista concedida à imprensa, o adolescente disse que passou momentos terríveis e de que, em prantos, teve vontade de morrer quando se deparou com a sua própria imagem diante do espelho.

Descobriu-se, depois, que o homem que filmou o ato de tortura já havia cumprido pena por roubo.

Vamos ser coniventes com tamanha desumanidade? Vamos propagar o ódio como uma forma salutar de desenvolvimento social?

O problema é que o Brasil está repleto de pessoas cobertas de razão, as quais, lançando mão de um reducionismo sem igual, acreditam que os problemas de uma sociedade como a brasileira podem ser resolvidos facilmente por intermédio de bordões tais como: bandido bom é bandido morto! Ou: Bolsonaro 2018!

Nunca é demais afirmar que compete ao Estado, e não aos particulares, a aplicação da lei criminal. Existe um princípio que informa o processo penal: o princípio da necessidade. Ou seja: não haverá pena sem o devido processo legal, posto que o Direito Penal não é autoexecutável.

Bater palmas para ato tão vil como o constatado no vídeo citado é elevar a bestialidade humana ao patamar das atitudes dignas, nobres e éticas.

Nos dias atuais, revoltar-se com uma situação como esta é algo revolucionário. Tão revolucionário quanto o foi há 2000 anos, quando Jesus de Nazaré, dando ouvidos a quem não era ouvido, dando voz a quem não podia falar, estendendo a sua mão aos pobres, prostitutas e criminosos, foi crucificado sob o clamor das ruas, clamor este que, acreditando fazer justiça, fazia, a bem da verdade, a sua antítese.

E falando em Jesus Cristo, outros personagens históricos nos vêm à mente.

Emblemático o caso envolvendo o fazendeiro Manoel da Mota Coqueiro, o qual, em 1852, no Brasil monárquico, foi condenado à morte pelo fato de ter mandado supostamente matar uma família de colonos.

O caso teve imensa repercussão, fazendo com que a sociedade, à época, com dedo em riste, exigisse a condenação do referido fazendeiro.

Posteriormente, Manoel, já morto e condenado, fora descoberto inocente. Não fora ele o mandante dos assassinatos. E agora?

Passados milênios, o clamor popular ainda demonstra a sua sanha inquisitória, predisposta a submeter a julgamento aqueles que, por sua conduta, não se mostram como "cidadãos de bem."

A Fera de Macabu, como ficou conhecido o caso ocorrido na época do Brasil império, continua atual, muito embora a pena de morte tenha sido extinta no Brasil quando da Proclamação da República.

Sócrates, 399 anos antes de Cristo, quando condenado à morte pelo povo ateniense (aqui, o clamor das ruas novamente presente, como nos outros dois casos citados) por ter "corrompido" a juventude, foi certeiro ao afirmar que a morte pode ser até um prêmio divino, pois não se sabe ao certo o que vem depois dela. Deus, em sua bondade, segundo o filósofo grego, saberia reconhecer um homem de bem, injustiçado pelo clamor popular, sempre sedento em alimentar-se da tragédia alheia.

O rapaz de 17 anos, se tivesse sido morto, talvez fosse agraciado pela bondade divina. Vivo, estigmatizado, levará sobre a pele a dor da tortura, da humilhação e da bestialidade humanas.

O jovem garoto, acusado de ter furtado uma bicicleta - o que em nenhum momento foi comprovado - foi submetido, reitera-se, a tratamento desumano e degradante, tendo como principais apoiadores uma parcela da população que, como no caso do fazendeiro Manoel da Mota Coqueiro, de Sócrates e de Jesus de Nazaré, exigia uma reposta à altura do crime supostamente praticado. Eis a relação entre eles, como sugerido no título do presente artigo.

Em todas as situações narradas, um ponto em comum: a quase unânime vontade popular predisposta a condenar um inocente.

O maior problema, e o que mais nos assusta, é o fato do próprio povo revelar-se como o responsável por alimentar as suas feras, sejam elas a de Macabu, a de Sócrates, a de Jesus Cristo ou a do rapaz tatuado na testa.

Estas feras, alimentadas pelo ódio, sempre marcado pela irracionalidade e pelas paixões exacerbadas, não são vencidas nem mesmo pelos fatos que se impõem.

O fato de ter sido descoberto que o adolescente tatuado não furtara a bicicleta e de que possuía graves problemas psicológicos não se mostrou motivo suficiente para fazer com que muitas daquelas pessoas “cristãs” que compartilharam o vídeo fossem demovidas de sua ideia inicial. Diante dos fatos, continuaram irredutíveis, bradando: BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO!

Infelizmente, essas feras continuarão vivas, fazendo as suas vítimas.

Em um país como o Brasil, é fácil tatuar a testa de um moleque "marginal". Difícil é tatuar a testa de “Aécios”, “Cunhas” e tantos outros cleptocratas.

Alguma coisa está muito errada quando concordamos que o crime deve ser combatido com a prática de outros crimes.

Torço para que o rapaz do vídeo, marginalizado pela insanidade humana, repense as suas atitudes, buscando um emprego e tentando se tornar uma "pessoa de bem".

Mas convenhamos: quem dará chance a um moleque estigmatizado, com problemas psicológicos, que hoje ostenta em sua face uma tatuagem com os dizeres “SOU LADRÃO E VACILÃO”?

Não há dúvidas: “A história acontece como tragédia e se repete como farsa”.


Lucas Silvy Santos. Lucas Silvy Santos é advogado no Estado de Santa Catarina, atua na área do Direito Criminal. Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi aluno da  Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Socrates // Foto de: Allan Henderson // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/allanhenderson/29132922962

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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