O que há de novo nos smart contracts?

11/10/2023

Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil

A novidade inscrita nos smart contracts, e todos os novos termos que ela traz consigo com seus “algoritmos”, “blockchains”, “códigos”, “inputs” e “outputs”, pode causar algum sobressalto no meio jurídico, que se vê repentinamente invadido pela gramática da ciência computacional. Anuncia-se, por vezes, que estamos diante de um futuro irreconhecível, que torna imediatamente anacrônicas as categorias jurídicas do passado. Porém, apaziguados os ânimos, ao avaliarmos com alguma frieza e circunspecção o fenômeno, acabamos nos vendo diante de estruturas que nos são, já, bastante familiares. O que não significa dizer que o fenômeno não contenha em si, nenhuma novidade. Novidade há, mas podemos apontar com maior precisão em que consiste ela. Vejamos: 

Em primeiro lugar, os smart contracts, não são nada mais que contratos de adesão. Figura já bastante conhecida, que colocou em xeque a teoria liberal dos contratos. De outra parte, posto que se realizem no ambiente digital, seus efeitos são automatizados. Isso é o que os diferencia como “smart”. São contratos auto-eficientes. A partir de um software que age no ambiente digital, seus efeitos jurídicos são programados e automatizados. Basta lembrar que o modelo de inspiração dos smart contracts segundo o seu idealizador, Nick Szabo (1997), é aquele que já vinha sendo praticado nas vending machines (máquinas em que se deposita uma moeda, para receber um produto, como uma lata de refrigerante). Da sofisticação deste modelo, é que surgiriam os contratos automatizados do meio digital. 

Para exemplificar: ao fazer uma chamada para uma corrida no Uber, o aplicativo imediatamente lança a cobrança do valor respectivo no cartão de crédito do cliente. Se o cliente cancela a corrida, o aplicativo deixa de cobrar a corrida, mas lança a cobrança de uma multa pelo cancelamento. Naturalmente que essas ações automatizadas (outputs), demandam uma legitimação jurídica, uma causa, que é o contrato em si. Neste ponto, pouca diferença faz, que seja contrato digital ou não. A legitimidade jurídica da medida de subtração patrimonial é baseada em um contrato, em um consenso, que autoriza a cobrança em certos termos; termos estes que também são disciplinados pela legislação, e precisam ser respeitados pelo aplicativo, sob pena de caracterização do enriquecimento sem causa.

Isso permite localizar a novidade, não no plano da validade, mas no plano da eficácia. E a partir disso, a novidade se desdobra em outros dois elementos particulares. Um primeiro, vislumbra nos smart contracts um recurso que favorece o escape contratual. Ou seja, um mecanismo de driblar o disciplinamento legal dos contratos. O segundo diz respeito a um detalhamento ainda maior da relação. Reporta ao tipo de relação obrigacional que surge a partir dos smart contracts. Não se trata de uma relação de direito/dever, mas de uma relação de poder potestativo/sujeição.

Cumpre desenvolver, cada um desses pontos.

1. A teoria liberal dos contratos, tomava o consenso como o fundamento da obrigatoriedade contratual, sob o argumento de que as partes contratantes se vinculam ao contratado por sua própria vontade deliberada. Não é dizer que essa teoria esteja propriamente “superada” na atualidade. A obrigatoriedade contratual, juridicamente tutelada, ainda se baseia, de algum modo, no fator do consenso e da vontade contratual exercida pelas partes contratantes.

Os contratos de adesão desafiam essa lógica porque, neles, não se pode dizer propriamente que o aderente tenha contratado no mais puro e livre exercício de sua autonomia. Esses contratos são caracterizados pela impossibilidade de negociação de seus termos e cláusulas. Quer dizer, uma das partes contratuais (o proponente) fixa os termos, e a outra parte (o aceitante, aqui já restrito a condição de aderente) os aceita ou não, sem possibilidade de contraproposta.

Resulta disso, um contrato tendencialmente desequilibrado, seja com relação ao balanço de suas prestações e contraprestações, seja com relação às cláusulas laterais, à atribuição das responsabilidades ou a distribuição dos riscos contratuais. O que propicia esse desequilíbrio contratual não é a “vontade” do aderente, mas a indisponibilidade de alternativas à contratação. Como bem lembrava Teresa Negreiros (2002), muitas vezes o contrato é o veículo do acesso a bens e serviços essenciais à vida. Muitas vezes, o que move a ação do contratante não é propriamente uma “vontade”, mas a “necessidade”.

Como há muito tem lecionado Claudia Lima Marques (2002), esse desequilíbrio econômico e social na base das relações contratuais, compromete a liberdade contratual e leva a parte mais vulnerável a admitir clausulas e condições prejudiciais. Ou seja, nesses casos, o fundamento liberal dos contratos, baseado na vontade livre das partes, simplesmente não se verifica na experiência empírica. Daí porque é necessário um disciplinamento contratual mais incisivo.

É neste escopo que surge o Código de Defesa do Consumidor, de que se destaca sempre o seu artigo 51, continente de um rol de cláusulas contratuais abusivas. Cláusulas que serão consideradas nulas de pleno direito. De modo mais geral, o direito contratual contém ainda outras normas e disposições legais, principalmente aquelas vinculadas aos tipos contratuais, como o da locação residencial, por exemplo. São tentativas políticas e legais de restabelecer algum equilíbrio às relações contratuais (embora estejam ainda muito aquém do necessário). Por outro lado, é muito comum que os agentes de mercado em posição dominante em relação aos consumidores procurem engendrar meios de escapulir a esse disciplinamento legal. E fazer prevalecer egoisticamente os seus interesses sobre os dos aderentes contratantes.

Articulam-se, então, os mecanismos de escape contratual, por diversos meios. As cláusulas abusivas, por exemplo, aparecem descaradamente nas minutas de contratos de adesão. Apostando-se, muitas vezes, na improbabilidade de que o contrato venha a sofrer algum controle judicial; improbabilidade de ajuizamento de uma ação em face do contratado. Geralmente, o disposto no contrato é cumprido simplesmente, esteja em conformidade com a lei ou não. Outras vezes, tendo havido o descumprimento, o agente econômico precisará ajuizar a ação. Neste momento, o tema da validade se colocará em pauta. As cláusulas abusivas poderão ser caracterizadas como tais, e declaradas nulas de pleno direito. Nessa ocasião, não é raro que se insista no reconhecimento de sua validade, alegando-se que a parte aderente livremente consentiu com os termos dados. Alegação que, a esta altura, afigura-se incorrigivelmente ideológica.

Pois bem, neste quadro, os smart contracts, a princípio, nada têm de extraordinário. Não são outra coisa que não contratos de adesão. Mas contêm, sim, uma novidade, que não está no plano de sua validade. Serão tão válidos ou tão inválidos quanto todo e qualquer contrato de adesão. A novidade está no plano da eficácia porque eles suprimem essa etapa do cumprimento. Suprimem um ato jurídico específico do devedor, e que é o próprio adimplemento.

2. O adimplemento como ato jurídico geralmente envolve também uma conduta do devedor. Conduta obrigatória e conforme o direito, mas que não se realiza por si. “Não se conduz o devedor debaixo de vara”, não é o que diz o brocardo? O próprio adimplemento envolve uma disposição voluntária do devedor. A conduta do pagamento pode acontecer ou não. E, não acontecendo, é que tornará necessária a medida de coerção exercida pelo credor, nos limites da lei, e por meio do ajuizamento de uma ação. Momento em que, portanto, a relação será submetida a controle judicial de validade. O atropelamento dessa etapa favorece o abuso da posição dominante no engendramento dos contratos de adesão. Passamos a tratar aqui de outra categoria já muito conhecida da teoria contratual, que é a autotutela, figura muito bem retratada na tese de Raquel Bellini Salles (2019) sobre o tema. Tema que exige exame cauteloso. A elaboração de mecanismos de autotutela nas relações econômicas tem sido uma tendência da virada neoliberal.

Desvendando melhor a estrutura obrigacional resultante deste processo, é importante lembrar que se trata, desde o princípio, do contrato como fonte das obrigações. Tradicionalmente, um contrato, mesmo um contrato de adesão, gera obrigações de parte a parte, prestação e contraprestação. Está aí aquilo que chamamos “sinalagma”. Nos contratos de adesão que conhecemos e que têm sido corriqueiramente praticados, essas obrigações, de parte a parte, formulam duas relações correspectivas de direito/dever.

Pensemos o seguinte: quando um consumidor contrata um serviço de limpeza de carpetes, mediante o pagamento de certo preço, estão aí duas obrigações. Uma da parte do fornecedor de serviços, que é obrigação de fazer: a limpeza do carpete. Outra da parte do contratante, que é obrigação pecuniária: remunerar o serviço de limpeza. Em ambos os casos, se trata de uma relação obrigacional de direito/dever. Por definição, o dever jurídico demanda um comportamento do devedor para o adimplemento da obrigação. Quer dizer que, tanto o prestador precisa fazer a limpeza, quanto o contratante precisa fazer o pagamento. Em ambos os casos, há um ato jurídico exigido do obrigado, no sentido de cumprir a obrigação. Há, igualmente, a possibilidade de não praticar o ato do pagamento, o que pode ser um exercício legítimo ou ilegítimo do direito. Se o prestador não faz a limpeza, ou não a faz à contento, o contratante pode reter sua contraprestação, e deixar de pagar por ela. Se cobrado judicialmente pelo prestador, poderá mobilizar uma exceção de contrato não cumprido (que será julgada, avaliada em termos de sua legitimidade etc.).

Muito bem, julgando-se que essa cobrança do contratante fosse automatizada, fica suprimida a etapa do ato jurídico do pagamento. Esse se dá de forma automática, gerando a subtração imediata do seu patrimônio. Suprime a necessidade do ato jurídico do pagamento que, por si, também é uma etapa do processo obrigacional, em que se exerce uma deliberação, uma vontade. A questão é: será isso necessariamente uma vantagem do mecanismo pensado? Não terá valor jurídico específico a vontade do devedor envolvido no ato do pagamento, enquanto reconhecimento ativo de que é devido, em contrapartida a um serviço adequadamente prestado?

Talvez nunca tenhamos pensado nisso. Nunca tenhamos colocado esse exercício ativo do devedor, no reconhecimento de sua obrigação, como algo de juridicamente relevante. E tenhamos visto isso sempre como um problema, uma insuficiência dos mecanismos legais. Porém, essa nova realidade dos smart contracts permite chamar a atenção para esse aspecto, colocando-o em perspectiva. A supressão dessa etapa implica uma alteração estrutural da relação obrigacional, e que não é sem importância. Pois, a partir disso, o que se tem não é mais uma relação de direito/dever, correspondente a outra de mesmo tipo. Forma-se, aí, uma relação de poder potestativo/sujeição. Quer dizer, fica inteiramente à conta do credor fazer surtirem os efeitos do contrato, sem a necessidade de nenhuma ação ou conduta do devedor para que isso aconteça. O credor faz acontecer, e o devedor se sujeita ao ato do credor, suportando os efeitos em sua esfera jurídica.

Essa novidade é que precisa ser contraposta ao que não é novo: o desiquilíbrio contratual típico dos contratos de adesão. A novidade consiste em um agravamento estrutural do desequilíbrio típico dos contratos de adesão.

Conclusão: Nada disso excepciona a autoridade do ordenamento jurídico na regulação dessas práticas econômicas. Nada disso interfere no juízo sobre o plano de validade dos contratos. Uma cobrança indevida, neste caso, envolverá, ainda, o direito a repetição do indébito, por exemplo. Mas é o ônus do aderente o que foi agravado. Coloca-se uma barreira a mais ao exercício de suas faculdades próprias no âmbito da relação obrigacional. A supressão de um momento, cuja importância não costumávamos dar conta e víamos, sempre, talvez, como um infortúnio: o de que “querer” cumprir a obrigação. Momento de um juízo de reconhecimento de que a prestação é realmente devida. E cabe refletir, agora, se este não é, afinal, um momento precioso, que mereça ser protegido e tutelado por si. Se as circunstâncias do seu exercício não devem ser garantidas e tuteladas pelo direito.

Sobre isso, é importante retornar a reflexão ao tema da validade. Diante desse quadro que está dado, em relação à essa nova realidade dos smart contracts, é importante repensar os termos de sua validade; repensá-los mediante essa nova lógica das contratações nas redes (ao que têm se dedicado, por exemplo, as teorias contratuais chamadas “neoformalistas”). Pois os smart contracts surgem já em um cenário tensionado por práticas comerciais abusivas, em que se renovam os mecanismos de submissão econômica das partes mais fracas no mercado. Aquelas que não têm nada a negociar, senão os frutos de sua própria força de trabalho.

 

Notas e referências

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 

NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 

SALLES, Raquel Bellini. Autotutela nas relações contratuais. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.

SZABO, Nick. Formalizing and securing relationships on public network. First Monday, v. 2, n. 9, Sept. 1997. Disponível em: <http://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/548/469>. Acesso em: 15 jul. 2021.

 

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