O que fazer com o que fizeram do processo penal brasileiro?

09/12/2016

Por Aramis Nassif – 09/12/2016

"As pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação, o que não é verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é verdade. As pessoas pensam que prisão perpétua é a única pena que se estende por toda a vida: eis uma outra ilusão. Senão sempre, nove em cada dez vezes a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens não".

Francesco Carnelutti

Credita-se a Sartre a autoria da frase “o que importa não é aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”, o que pelo especial e dramático momento (para não dizer trágico) que passa o processo penal brasileiro leva-nos a uma indagação similar: o que fazer com o que fizeram do processo penal brasileiro? Estou tão decepcionado e abatido com tudo que foi feito na área processual penal nos últimos tempos, que, confesso, não tenho resposta.

Destaco aquela que, com certeza, foi a mais grave agressão aos direitos fundamentais do cidadão brasileiro com a supressão da presunção de inocência patrocinada pelo Supremo Tribunal Federal[1].

A verdade é que, no que diz respeito ao processo penal brasileiro, era previsível que algo iria acontecer no STF, Corte onde, pela afluência legal se forma o estuário das pretensões do Ministério Público, passando ou não pelo exame de instâncias inferiores, e, logicamente, onde deságua o fundamentalismo punitivo que vem tendo destaque atualmente. Hoje está consolidado um litisconsórcio persecutório-punitivo entre as polícias (não é apenas a federal), o Ministério Público e Poder Judiciário (a generalização é injusta, pois existem focos de resistência importantes neste contexto).

Na observação dessas agressões dirigidas especialmente ao sistema de garantias processuais penais torna-se perceptível que a imprensa é o estamento mais feliz da Nação e vem ungindo esta inclinação do sistema processual penal em detrimento dos valores individuais, o que incrementa seus lucros (o discurso, mesmo falacioso, alimenta o medo e, conseqüentemente a audiência). Por óbvio, valorizada a violência contra os preceitos constitucionais em nome de um suposto combate a criminalidade, reduziu, à subserviência ao Ministério Público e o combalido Poder Judiciário.

A respeito do papel da mídia como ação deletéria de direitos merece ser lembrado o insigne jurista Francesco Carnelutti, que premonitoriamente escreveu:

A toga, sem dúvida, convida ao recolhimento. Infelizmente hoje sempre mais, sob este aspecto, a função judiciária está ameaçada pelos opostos perigos da indiferença ou do clamor: indiferença pelos processos pequenos, clamor pelos processos célebres. Naqueles a toga parece um instrumento inútil; nestes se assemelha, lamentavelmente, a uma veste teatral. A publicidade do processo penal, a qual corresponde não somente à idéia do controle popular sobre o modo de administrar a justiça, mas ainda, e mais profundamente, ao seu valor educativo, está, infelizmente, degenerada em um motivo de desordem. Não tanto o público que enche os tribunais ao inverossímil, mas a invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar se com aqueles aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de julgar. As togas dos magistrados e dos advogados, assim, se perdem na multidão. Sempre mais raros são os juízes que têm a severidade necessária para reprimir esta desordem[2].

Aos olhos de uma minoria – e nela incluo-me – é repulsivo o culto ao ídolo pela sociedade brasileira, embalada pelas vozes conservadoras antigarantistas, ou seja, o desprezo dos valores individuais liberais em favor de valores e poderes centrais coletivos. Com tal objetivo, estimula-se a mobilização das massas em torno de organizações de fato para formar um escudo protetor das pretensões reacionárias inclusive com ridículos ‘panelaços’ ou o emprego de clichês motivadores como ‘combate à corrupção’ etc.[3].

Em torno deste tema, Marcos Bagno[4], escritor, professor universitário (UNB) e jornalista, irresigna-se com a “incapacidade” das pessoas em conhecer alguns princípios básicos da ciência da linguagem, destacando que “essa incapacidade é visível principalmente entre jornalistas. Quando vão abordar qualquer outro assunto, desde como não deixar um suflé murchar até a exploração das luas de Júpiter, sempre recorrem a quem tenha um mínimo conhecimento de causa, de experiência e de formação para tratar do assunto. Mas quando o tema é língua, nada disso: bastam as noções mais rasteiras, o senso comum mais bisonho, a superstição mais descabelada. E, pior, tudo isso apresentado num discurso de grande pompa e circunstância, como se fosse o suprassumo da sapiência divina. Só que não é. Pior do que a afirmação de tolices monumentais é a reação de muitas pessoas, supostamente letradas (e, de novo, com destaque para os jornalistas), quando se metem a contrapor argumentos ao trabalho de linguistas profissionais”. Destaca, ainda, que a negligência na verificação das informações, preocupa quando junta-se a “isso o fascismo golpista que se apoderou dos nossos maiores meios de comunicação e a desgraça fica completa”.

Na mesma linha da preocupação de Marcos Bagno, trago a reflexão do magistrado carioca Rubens Casara, um dos mais dignos defensores do direito democrático, a respeito de uma situação que, a meu ver, emoldura os fenômenos que ocorrem atualmente no Brasil:

Diversos estudos apontam que a população alemã (mas, vale insistir, não só a população alemã) apoiava Hitler e demonizava seus opositores, inebriada por matérias jornalísticas e propaganda, conquistada através de imagens e da manipulação de significantes de forte apelo popular (tais como “inimigo”, “corrupção”, “valores tradicionais”, etc.). Em material de repressão aos delitos, os nazistas, também com amplo apoio da opinião pública, defendiam o lema “o punho desce com força” e a relativização/desconsideração de direitos e garantias individuais em nome dos superiores “interesses do povo”.[5]

Notável é o desenvolvimento de um sistema de propaganda e de controle ideológico dos meios de comunicação decorrente da retórica autoritária, resultando na influência sobre a opinião pública, sua docilização e intimidação, para convertê-la em apoiadora na extinção dos preceitos constitucionais empregados na defesa dos penalmente processados. Observe-se o repetido do rótulo ‘garantia da ordem pública’, fundamento anêmico que está presente em quase todos os despachos judiciais que decretam a prisão cautelar de suspeitos de prática criminosa. Os magistrados, cientes da receptividade dessas prisões pela sociedade manipulada pela propaganda conservadora, não procuram mais que o emprego de clichês para revogar o status libertatis dos cidadãos. Resulta que essa força sutil entorpece a reação garantista e provoca o desenvolvimento de movimentos políticos de direita.

É fácil constatar que a presunção de inocência já estava revogada de fato e muito antes da lamentável decisão do STF nas ADCs 43 e 44, mas que talvez tenha influenciado este julgamento. O princípio do in dubio pro reo também foi imolado pela nova vocação judicial, o que explica, em parte, a realidade perversa de uma superpopulação carcerária[6]. O número de presos provisórios e a banalização das prisões cautelares são o maior indicativo do desrespeito aos dois princípios. Uma simples verificação nos tribunais e órgãos superiores judiciários deixa evidente esse registro.

Mesmo que o objetivo do presente texto sejam considerações críticas sobre o processo penal, não é possível desconsiderar a instabilidade política e social gerado pelos movimentos de direita em busca do poder e reflexiva no meio jurídico. O direito criminal está inserido neste contexto, pois ao banalizar encarceramento, reduz-se a força da resistência através da via legítima do processo judicial.

Pela teoria garantista, “es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el[7],   que nas palavras de Salo de Carvalho, significa “… o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.[8]

Mas, por mais que se tente explicar a desconstrução do conjunto de princípios elementares do direito processual penal no suposto Estado Democrático de Direito e a da própria justiça penal, acaba-se por rememorar o momento legiferante do CPP durante o Estado Novo e de Francisco Campos, Ministro da Justiça de Getúlio Vargas[9], e seu CPP de origem iniludivelmente autoritária, promulgado para honrar a Carta Constitucional de 1937, de inspiração fascista.

Com isso, anula-se paulatinamente um presente que, paulatinamente, se desvinculava desta origem e dos momentos autoritários posteriores, através do empenho da doutrina e jurisprudência nacionais pelo qual passou o país. Mas, ao contrário, promove-se, hoje, o retorno, mesmo inconscientemente, da ideologia que prevaleceu em tais ocasiões (ou seja, na gênese legislativa e tropeço na evolução constitucional do processo penal).

A verdade é que nunca houve, apesar de momentos de efêmera conscientização democrática, uma autêntica revolução liberal, seja pela acomodação legislativa e/ou despreparo intelectual dos juristas, quase sempre em permanente contemplação e sem reação com o que fazia (destruíam) o processo penal brasileiro.

Por outro lado, a debacle do sistema garantista, lançado ao desamparo pelo próprio ‘guardião da Constituição’, para o que contribuiu a incapacidade dos agentes do sistema judicial brasileiro (MP, Advocacia e Poder Judiciário), alguns deslumbrados com a repercussão midiática das iniciativas arbitrárias e autoritárias de vários de seus membros nos meios de comunicação, a refletir sua natureza pequena burguesia, retrógrada e com retórica falaciosa, contribuintes da contrafação teórica, que conduziram o sistema de garantia a um nicho onde estão abrigados alguns corajosos agentes públicos na missão de preservar e defender as garantias fundamentais do cidadão, que ocupam nossos tribunais, sempre silenciados pelo (des)interesse da mídia e pela antipatia reacionária dos agentes conservadores, traidores que são de sua missão constitucional.

É de ser visto o problema dessa inclinação ao autoritarismo como relação com o sistema social e político que, sabidamente, anima-se com a exposição pública e os transforma em demagogos, sem o privilégio de uma inteligência mediana que estivesse articulada para acolher as aspirações da classe média animada porque está ouvindo o que queria ouvir desde o fim da ditadura. Ou seja, todo o sistema político, social e agora o jurídico, inclina-se para uma postura indiscutivelmente fascista.

Por isso é verdadeiro afirmar que o Poder Judiciário garante a minoria contra a maioria, o cidadão contra o Estado e o indivíduo contra a sociedade. Esta é a missão do Juiz, ou seja, a jurisdição, que estaria encarregada da preservação da ordem jurídica, restabelecendo a paz nas relações intersubjetivas através da resolução dos conflitos com adoção de medidas que (r)estabeleçam o equilíbrio entre as partes, não necessariamente apenas sob o aspecto formal, mas, garantindo também a igualdade material no processo, seguindo rigorosamente e sem concessão os princípios constitucionais, os direitos e garantias fundamentais do ser humano.

Porque, se o Juiz não garantir a minoria em seus direitos contra o meio sócio-político majoritariamente dominante, estará consagrando preconceitos e discriminação de toda ordem. A preponderância de interesse desse segmento ao preço do sacrifício de direitos fundamentais consagra a ideia de tirania daquela, contaminando a jurisdição, ou seja, age o Juiz com preconceito e discriminatoriamente, desprezando a diversidade e as diferenças entre os jurisdicionados.

Baumann traduz com sabedoria esta preocupação, lembrando que a transição da sociedade industrial moderna para a sociedade de consumo refletiu numa série de mudanças, sendo pertinente ao texto. Diz:

Dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As classes perigosas são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem às vezes das definhantes instituições do bem-estar.[10]  

Se não houver respeito à diversidade e às diferenças de um determinado contexto social, o juiz não estará sendo menos que um ser seletivamente intolerante.

Edgar Catoria, jornalista, revela que ao entrevistar uma magistrada afro descendente encerrou o encontro indagando, nas suas exatas palavras, se hoje, “(...) depois de quatro décadas, ainda existiria este tipo de preconceito dentro do judiciário, que mereceu de “algum” magistrado, no entanto, respondeu minha questão postando um texto na Lista da ABM – Associação dos Magistrados Brasileiros – que vem a ser caixa postal eletrônica dos associados”. Transcreve a postagem sem correção, verbis:

Se querem incluir negros, por quê não se incluir anõezinhos, índios, portadores de urrice, gaguinhos, bichas, lesbicas, calhordas, sindrome de down, portadores de defeitos na coluna,paraplégicos, abobados, bêbados, viciados em crack. Peles vermelhas, amarelos , leprosos, etc.. Só os "colored" isto que é discriminação. Por quê só black is beautiful... Tá na cara que é a maioria votante do país. Eta governo populista.... Que se ensejem colégios públicos, empregos, auxilio alimentação, passe escolar, livros e material escolar gratuitos e tudo seria resolvido. Assim todos (brancos e não brancos) teriam a mesma chance de ingressarem em faculdades, dependendo do esfôrço de cada um. Chega de privilégios[11].

Imperativo ter-se presente na análise da proteção às minorias, a teoria do direito penal do inimigo, pois o poder punitivo discrimina os habitantes da periferia, elegendo-os como alvo do direito e do processo penal produzindo uma seletividade perversa.

André Kehdy, então presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em feliz entrevista prestada à revista Carta Capital, publicada em 26 de fevereiro de 2016, criticando o golpe desferido contra o princípio da presunção de inocência em nome da, aduz que “o Supremo Tribunal Federal não é porta-voz da população, ele é ‘guardião da Constituição’. Mas ideias fascistas estão vindo à tona. Vamos eleger um inimigo e fazer um tipo de processo diferente para ele, um processo menos garantista, sem tantas barreiras. Estamos jogando no lixo diversos de nossos direitos em nome de uma caça às bruxas que está sendo tocada.”

Para Zaffaroni, a individualização de um inimigo é uma construção tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder punitivo[12].Se não adotar a postura de garantir a minoria em face da arrogância da maioria, aplicando simplesmente o direito penal do fato, com expurgo do direito penal do autor, despojado de sua coação discriminatória, o magistrado será, nada menos, que um agente preconceituoso.

Mesmo sendo órgão do Estado, o Juiz deve garantir no exercício de seus legítimos direitos, o cidadão contra o Leviatã.

A consagração do discurso punitivo como política de Estado, desvinculado da sua legitimação democrática de respeito aos ditames da Constituição ‘cidadã’ de 1988, promove a hegemonia de um poder persecutório-punitivo estabelecendo o já referido acumpliciamento poderoso entre polícia, MP e Poder Judiciário, incumbindo ao último a legitimação do desrespeito e desconsideração de direitos fundamentais, estimulado pelo discurso da proteção dos interesses da sociedade, e promotora da fragilização do sistema processual no quesito ‘garantias do cidadão’.

Anula-se a cidadania com as decisões proferidas pelos órgãos judiciais, a ponto de ser erigida em ‘rainha’ da prova a delação premiada, conquistada a preço da liberdade, numa perversa extorsão jurídica[13].

Mas os aplausos são unânimes na opinião pública, a olvidar que, pelo princípio da simetria, do ‘efeito dominó’ e do exemplo, esta violência do Estado-Jurisdição vai alcançar os mais humildes.

O magistrado que não tiver coragem de ousar legitimamente, perante o Estado não está sendo mais que subserviente.

Por fim, e talvez seja, hoje, a missão mais difícil da jurisdição penal, é assegurar a garantia do indivíduo perante a sociedade.

Observa-se no Brasil um irracional aumento de encarceramento, que não preocuparia tanto não fosse pelas excessivas prisões cautelares decretadas em primeiro grau e referendadas nos tribunais, o que resultou em denúncias de instituições preocupadas com a defesa dos direitos humanos do Brasil perante a OEA, da qual sobreveio uma constrangedora censura internacional. O fundamento para este absurdo é o da ‘impunidade’ palavra chave para a reclusão maciça de cidadãos brasileiros. Leia-se a análise de Rubens Casara no corpo do artigo citado anteriormente[14]:

“Na Alemanha nazista, o Führer do caso penal (o "guia" do processo penal, sempre, um inquisidor) podia afastar qualquer direito ou garantia fundamental ao argumento de que essa era a "vontade do povo”, de que era necessário na "guerra contra a impunidade” ou na "Iuta do povo contra a corrupção" (mesmo que para isso fosse necessário corromper o sistema de direitos e garantias) ou, ainda, através de qualquer outro argumento capaz de seduzir a população e agradar aos detentores do poder político e/ou econômico (vale lembrar aqui da ideia de "malignidade do bem": a busca do bem sempre serviu à prática do mal, inclusive o mal radical. O mal nunca é apresentado como "algo  mal” Basta pensar, por exemplo, nas prisões brasileiras que violam tanto a legislação interna quanto os tratados e convenções internacionais ou na busca da verdade que, ao longo da história foi o argumento a justificar a tortura, delações ilegítimas e tantas outras violações. E no Brasil?

Mas denunciadas foram as autoridades administrativas – governo federal e estaduais - que a meu ver, mesmo sendo procedente e justa a representação perante a Organização dos Estados Americanos (OEA), foi omissa por não deixar claro que a maior responsabilidade pelo grave problema da superpopulação carcerária é do sistema judicial brasileiro ao banalizar a reclusão, principalmente, provisória provocando o caos do sistema prisional. Afinal, esses decretos prisionais, com fundamentos rasteiros, repetidos em clichês, estão a legitimar a barbárie do sistema prisional.

Reduzido à timidez perante a repercussão e clamor de alguns fatos, muitos juízes decidem de maneira a não desagradar a opinião pública, quando não se aproveitam de seu cargo para atuar como agente policial ao deferir medidas extremas, arbitrárias, com o sacrifício de direitos fundamentais do indivíduo para simples agrado das autoridades investigatórias e, com divulgação do pleito, coagem os responsáveis e agradam a opinião pública. Outros se deslumbram como tudo isto e tornam-se ídolos perante a sociedade.

É tão forte o discurso persecutório-punitivo na mídia, que Rubens, digno magistrado carioca e doutrinador de escol, em seu lúcido artigo no site ‘Justificando’, já citado antes neste texto, observa:

“O medo de juízes de desagradar a “opinião pública” e cair em desgraça – acusados de serem coniventes com a criminalidade e a corrupção – ou de se tornar vítima direta da polícia política nazista (não faltam notícias de gravações clandestinas promovidas contra figuras do próprio governo e do Poder Judiciário) é um fator que não pode ser desprezado ao se analisar as violações aos direitos e garantias individuais homologadas pelos tribunais nazistas. Novamente com o apoio dos meios de comunicação, e sua enorme capacidade de criar fatos, transformas insinuações em certezas e distorcer o real, foi fácil taxar de inimigo todo e qualquer opositor do regime”.[15]

O movimento da fascistização do sistema processual penal, como de outros segmentos da sociedade brasileira, aparece com nitidez numa proposta de dez medidas anticorrupção que recebeu os aplausos da nação e dos mais poderosos meios de comunicação, inclusive no que diz com a aproveitamento da prova ilícita no processo penal. Rasgaram a Constituição, inebriados com a perspectiva de que seu protagonismo os leve em direção a mais poder, sem a necessidade de serem apadrinhados pela jurisdição antigarantista.

A culta e inteligente Marcia Tiburi, estudiosa do fascismo, no artigo que empresta título ao seu livro “Como conversar com um fascista”,[16] destaca que:

“O autoritarismo é um modo de exercer o poder, mas é também um ideário, uma espécie de regime de conhecimento. Como visão de mundo, ele é fechado ao outro. Ele opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado. Ora, dizemos “regime de conhecimento” pensando na operação mental da negação do outro, mas o conhecimento como gesto na direção do outro é justamente o que é destruído pelo autoritarismo que se basta como máscara sem rosto do conhecimento transformado em ideologia, ou seja, em ofuscamento da verdade social”.[17]

Em, outra passagem de seu artigo a filósofa conclui que “...a impressão que temos de que uma personalidade autoritária é, também, burra, pois ela não consegue entender o outro e nada que esteja ao seu circuito.”

Estou convencido que, mesmo por ignorância ou vaidade, muitos juristas e comunicadores que alimentam essas ideias fascistóides não sabem o que estão fazendo com o processo penal brasileiro e que, no fundo, pela pressão da opinião pública embalada pela mídia, às quais cedem temerosos da reação de tais segmentos, e, por isto, sacrificam os direitos individuais e fundamentais, não são mais que covardes.

Diante de tudo isto confessa minha extrema dificuldade de responder à indagação sobre ‘o que fazer com o que fizeram do processo penal brasileiro’(?), a não ser contar com alguns membros do Ministério Público, da Magistratura e da Advocacia brasileiras, mais lúcidos e corajosos, para a resistência e reação às conquistas fascistas que vitimaram o sistema processual constitucional brasileiro.


Notas e Referências:

[1] Ao julgar Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou o que a Corte tinha sido antecipado no HC 126292, firmando entendimento que o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância.

[2] CARNELUTTI,  Francesco. AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL, Tradução, José Antonio Cardinalli, Ed. CONAN, 1995

[3] O vazio teórico e a pobreza ideológica é tão grande que se ouve de pessoas ignorantes clichês de expressões agressivas como ‘tá com pena, leva pra casa’ ao reagir contra a defesa das garantias do indivíduo. Outros: ‘bandido bom é bandido morto’, ou ‘direitos humanos para humanos direitos’ etc. Essa mendicância mental está presente subliminarmente nos despachos de juízes ao decretarem prisões cautelares ou antecipar prisões em face da revogação da presunção de inocência.

[4] Escrito na Revista ‘Caros Amigos’, nº 234/2016, p. 06

[5] Encontrado em: http://justificando.com/2016/03/12/vamos-comemorar-um-tribunal-que-julga-de-acordo-com-a-opiniao-publica/

[6] As condições prisionais no Brasil foram denunciadas pela Anistia Internacional, (ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2014/15: O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Disponível em https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Web-Informe-2015-03-06-final.pdf)

[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razon: Teoria del Garantismo Penal. Ed TROTTA, 2011

[8] CARVALHO, Salo de. Descodificação Penal e Reserva do Código, Porto Alegre:  ITEC.

[9] Ministro da justiça e negócios interiores do governo Vargas, Francisco Campos, que em 1941 apresentou o projeto de um novo código de processo penal ao presidente Getúlio Vargas

[10] BAUMAN Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999Parte superior do formulário

[11] Encontrado em http://www.cartacapital.com.br/politica/preconceito-no-judiciario

[12] ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 

[13] Pelo menos a história registra que Judas, com suas trinta moedas, e Joaquim Silvério dos Reis, com a quitação de tributos devidos ao Reino de Portugal, ‘deduraram’ culpados (ao menos na visão do Império Romano e da Coroa portuguesa). Ora, se deu certo com Jesus e Tiradentes...

[14] Encontrado em: http://justificando.com/2016/03/12/vamos-comemorar-um-tribunal-que-julga-de-acordo-com-a-opiniao-publica/

[15] Encontrado em: http://justificando.com/2016/03/12/vamos-comemorar-um-tribunal-que-julga-de-acordo-com-a-opiniao-publica/

[16] Ler seu livro ‘Como Conversar Com Um Fascista’, da editora Record

[17]Encontrado em:  http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/como-conversar-com-um-fascista/


Aramis Nassif

. . Aramis Nassif é Mestre em direito (AJURIS-UNISINOS). Desembargador aposentado. Professor pós-graduação UNIRITTER Porto Alegre; UNISINOS Porto Alegre; UPF Passo Fundo RS.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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