O PEN, Partido Ecológico Nacional, representado pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro[1], e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, representada pelos advogados Claudio Lamachia, Lenio Streck, Juliano Breda e André Karam Trindade[2], ajuizaram Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) com pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal (STF), buscando a constitucionalidade da redação dada ao artigo 283 do Código de Processo Penal pela Lei nº 12.403/2011.
As ações nasceram da controvérsia instaurada em razão da decisão proferida pelo STF no Habeas Corpus nº 126.292[3], no qual, por maioria, o Plenário considerou válido o início do cumprimento da pena de prisão antes do trânsito em julgado da condenação, alterando o entendimento que prevalecia desde 2009. Desde o HC nº 126.292, o fundamento apresentado para determinar a prisão imediata tem sido a falta do efeito suspensivo dos recursos ao STF e STJ, sendo que o art. 637 do CPC falava em efeito devolutivo, mas o novo CPC fala em, excepcionalmente, caber o efeito suspensivo, conforme art. 995 e 1027, ou seja, a regra seria a execução provisória. Ademais, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, afirmou em seu voto que, entre janeiro de 2009 e abril de 2016, menos de 3% dos recursos foram providos pela Corte. Contados apenas as decisões favoráveis aos réus, o índice cairia para 1,1%.
Nas duas ações, basicamente, o que se sustenta é que o art. 283 traduz a única interpretação possível e razoável do princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. A nova redação do dispositivo do CPP, advinda da reforma de 2011, buscou harmonizar o direito processual penal ao ordenamento constitucional, espelhando e reforçando o princípio da presunção da inocência.
O PEN requereu, em caráter cautelar, que não sejam determinadas novas execuções provisórias e que sejam suspensas as já determinadas, sendo colocadas em liberdade as pessoas que porventura foram levadas à prisão, antes do trânsito em julgado da decisão. Em caráter subsidiário, ainda na cautelar, o PEN requereu seja feita uma interpretação do artigo 283 do CPP conforme a Constituição para determinar a aplicação de medidas alternativas à prisão (art. 319 do CPP) até que seja julgado o mérito da ação. Ainda subsidiariamente, requereu também seja feita interpretação do art. 637 do CPP conforme a Constituição, para condicionar o início do cumprimento da pena ao julgamento do recurso especial pelo STJ, enquanto não for julgado o mérito da ADC. A OAB, no mesmo sentido, requereu a concessão da medida cautelar para suspender as ordens de início de execução provisória de decisão de órgãos fracionários de segunda instância, antes do trânsito em julgado.
Inúmeras entidades requereram habilitação nos autos como “ amici curiae”[4] e, no julgamento da cautelar ocorrido no último dia 1º de setembro, promoveram sustentação oral. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, representada pelo defensor Rafael Munerati. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, representada pela defensora Thais dos Santos Lima. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), representado pelo advogado Thiago Bottino. A Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), representada pelo advogado Leonardo Sica. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), representado pelo advogado Fábio Tofic Simantob. O Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), representado pelo advogado José Horácio Ribeiro. A Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRACRIM), representada pelo advogado Elias Mattar Assad. O Instituto Ibero Americano de Direito Público, representado pela advogada Vanessa Palomanes. O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), representado pelo advogado Técio Lins e Silva.
Os argumentos trazidos pelo PEN, OAB e demais entidades, como não poderia deixar de ser, gravitam em torno da questão fundamental, que é o objeto central da controvérsia: a decisão proferida nos autos do HC 126.292 viola a Presunção de Inocência e o disposto no art. 283 do Código de Processo Penal.
Os 10 argumentos a favor das ADC.
Em primeiro lugar, vem o argumento apresentado especialmente pela OAB, no sentido de que o legislador alterou a redação do art. 283 do CPP, exatamente para espelhar o dispositivo constitucional, no sentido de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (artigo 5º, inciso LVII). A alteração legislativa veio para assegurar, também pela lei ordinária, a impossibilidade de início do cumprimento da pena antes do julgamento do último recurso cabível.
Em segundo lugar, um importante argumento apresentado pelo PEN, no sentido de se observar que o julgamento da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, foi reconhecido que o sistema prisional brasileiro viola preceitos constitucionais, ou seja, não é razoável que milhares de pessoas sejam levadas a um sistema completamente falido, por uma decisão ainda sem trânsito em julgado, portanto, sujeita a ser reformada.
Em terceiro lugar, é fundamental verificar os dados, porque eles mostram a relevância do pedido subsidiário, de postergação da execução provisória da pena até decisão do Superior Tribunal de Justiça. É que, como mostram as Defensorias do Rio de Janeiro e de São Paulo, há uma alta taxa de reversão dos acórdãos dos tribunais de justiça no STJ, chegando a percentual em torno de 41% dos recursos especiais que cuidavam de absolvição, atenuação de regime, redução da pena ou substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Em quarto lugar, na mesma linha, como destacado pelo IBCCRIM, sequer as matérias que constam nas Súmulas do STJ e do STF são respeitadas pelos tribunais estaduais, o que redunda na reforma dessas decisões de segunda instância.[5]
Em quinto lugar, argumento trazido pela AASP, a mudança do entendimento gera prejuízo para as defesas, pois elas não foram pensadas (desde o início) dentro da lógica da execução antes do trânsito em julgado.
Em sexto lugar, argumento do IDDD, antes de adotar parâmetros retirados de sistemas vigentes em países desenvolvidos, o Brasil deve resolver diversos problemas em seu sistema criminal, penitenciário e judicial, especialmente a paridade de armas entre defesa e Ministério Público.
Em sétimo lugar, com base em pesquisa, o IASP sustenta que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), com cerca de 1/4 dos processos criminais em tramitação, tem altíssimas taxas de reversão dos seus julgados, com números assustadores. Dos 157 mil acórdãos analisados, 57 mil representaram apelações da defesa e, desses recursos, houve, em média, 45% de provimento.
Em oitavo lugar, conforme sustentado pela ABRACRIM, os juízes têm por tradição escrever nas três últimas linhas das decisões que: “transitada em julgado esta sentença, expeça-se mandado de prisão”. Nunca acontece de o MP recorrer deste ponto, ou seja, a prisão antes do trânsito em julgado significaria uma violação da coisa julgada.
Em nono lugar, o Instituto Ibero Americano de Direito Público sustentou que o atual entendimento do STF gera consequências também no caso do servidor público, que pode vir a ser desligado no caso de condenação criminal, podendo haver reversão da condenação pelas instâncias superiores, o que geraria a reintegração do servidor e o pagamento de indenização, além dos valores retroativos ao início do afastamento.
Em décimo lugar, afastando o frágil argumento do Procurador Janot, o Instituto dos Advogados Brasileiros mostra que as ADCs não visam favorecer réus de colarinho branco, mas defendem o direito dos milhares de anônimos clientes preferenciais do sistema penal.
Por todos esses 10 motivos, é possível ver que não está em jogo nesse julgamento apenas o simples fato de começar ou não o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado.
O que está em jogo é a hermenêutica constitucional ou a necessidade de respeito aos limites semânticos do texto ou, enfim, o papel do STF de guardião da Constituição e dos Direitos Fundamentais nela previstos.[6]
O que está em jogo, na verdade, é o valor da dignidade da pessoa humana, pois, ainda que apenas um recurso fosse admitido e provido pelos Tribunais Superiores para reformar a decisão da segunda instância (e são centenas deles), esse único ser humano preservado de uma prisão ilegal nas masmorras brasileiras, apenas um, já teria sido o suficiente para cumprirmos o disposto no art. 5, inciso LVI, da Constituição Federal de 1988 e art. 283 do Código de Processo Penal.
E que fique ecoando a estupenda sustentação do grande advogado Técio Lins e Silva, quando lembrou aos Ministros que as ações não beneficiam os presos da Lava-Jato, meia dúzia de ricos, mas trata da população pobre, dos negros, da clientela do sistema penal. Que nunca silencie, o grito de esperança que nós, advogados, sempre depositamos no STF, quando bradamos contra a injustiça: NÓS VAMOS AO SUPREMO, NÓS VAMOS AO SUPREMO.
Com Saramago: “O pior de tudo é quando sabemos das coisas e não agimos”.
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] STF: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=43&classe=ADC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M
[2] STF: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=44&classe=ADC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M
[3] A respeito: http://emporiododireito.com.br/tag/julgamento-do-habeas-corpus-n-o-126-292/
[4] Antes que me corrijam, estou usando o plural (amicus – amici).
[5] http://direitorio.fgv.br/projetos/habeas-corpus-nos-tribunais-superiores
[6] Como bem explica Lenio Streck, a mudança de posição deveria significar um “overruling”, que ocorre quando um tribunal percebe que deve mudar sua jurisprudência, obviamente, falando do que acontece na common law. Para tanto, o Tribunal haverá de demonstrar as razões de estar provocando essa alteração ou, no dizer de Streck, overruling quer dizer que o caso “provocador” deve ser um caso tal que tenha o condão de provocar a reviravolta. Não pode ser qualquer caso. Aqui, o leading case (HC nº 126.292) que provocou a significativa mudança, diz respeito a um caso de acusado que respondeu a apelação em liberdade e que teve a prisão decretada “de ofício” pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. (http://www.conjur.com.br/2016-set-01/senso-incomum-stf-curvara-cf-lei-presuncao-inocencia e http://www.conjur.com.br/2016-ago-11/senso-incomum-estranho-fez-stf-sacrificar-presuncao-inocencia)
Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal de Justiça // Foto de: Thiago Melo // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/thiagomelo/4893152130
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode