O que esperar do STF em tempos de retrocesso político: a decisão liminar na ADPF n. 548 como marco da liberdade acadêmica.

15/11/2018

 

No dia 27 de outubro de 2018, escrevíamos neste mesmo espaço sobre a decisão liminar proferida pela Min. Carmen Lúcia na ADPF n. 548 ajuizada pela Procuradoria Geral da República buscando garantir a autonomia universitária e a liberdade de manifestação do pensamento em face de decisões arbitrárias de juízes e autoridades da Justiça Eleitoral que pretendiam impedir a manifestação em Universidades com uma interpretação no mínimo enviesada do art. 37 da Lei 9.504/97[1].

Um dia após o resultado das eleições presidenciais de 28 de outubro de 2018 e, de qualquer forma, talvez se aproveitando do cenário político-conservador que paira sobre a arena pública, a AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – ofertou um pedido de ingresso como amicus curiae buscando demonstrar que as decisões jurisdicionais prolatadas em face de diversas instituições de ensino estariam embasadas em fatos e na jurisprudência acerca da correta interpretação do art. 37 da Lei 9.504/97 e, portanto, não poderiam ser suspensas pela decisão da corte. Embora na própria peça de ingresso a Associação informe que a tese da PGR estaria correta, assevera que a autonomia universitária não poderia prevalecer sobre as condutas ilícitas de campanha eleitoral.

Em verdade, a AMB pretende defender os atos jurisdicionais inconstitucionais praticados pelos mais diversos juízos eleitorais. Ainda que tais atos jurisdicionais estivessem fundamentados de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Regionais Eleitorais, a questão principal está longe de ter sido enfrentada por estes órgãos jurisdicionais, a saber, do fato de que condutas que expressam liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de ensino e livre exercício da autonomia universitária não podem ser tidas como ilícitas dentro de um Estado Democrático de Direito. Aliás, como salientamos naquele artigo, “a proibição contemplada no referido ato normativo se expressa em relação aos atos diretamente praticados pelos candidatos e à forma de divulgação da campanha eleitoral e não propriamente à veiculação do pensamento por parte de cidadãs e cidadãos que livremente expressam suas ideias. Ainda que - com uma grande má vontade democrática - se acreditasse entender que não se poderia veicular ‘propagandas eleitorais’ de qualquer forma nas instituições universitárias, porquanto são bens pertencentes à União ou cujo uso depende de permissão da entidade federativa, tal entendimento deve sofrer uma interpretação conforme à Constituição para se coadunar ao Estado Democrático de Direito”.[2]

Assim, a peça processual da AMB mais parece uma defesa ideológica/corporativista das decisões proferidas nos casos concretos. De qualquer sorte, o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade não visa exercer controle correcional das decisões jurisdicionais nos casos em concreto, mas fornecer uma interpretação/aplicação da Constituição, ainda que para tanto seja preciso reconstruir o caso concreto[3].

A intervenção de um amicus curiae, pois, depende do preenchimento dos requisitos do art. 7º, §2º da Lei 9.868/99 e exige, conforme a orientação jurisprudencial do STF, natureza meramente colaborativa de contribuir efetivamente com a questão debatida no exercício da jurisdição constitucional.[4] Daí que é possível dizer que, conforme apresentada a intervenção, não agrega em nada ao debate acerca da amplitude da liberdade de manifestação do pensamento, da autonomia universitária e da liberdade de ensino, apenas sendo uma peça ideológica da defesa dos atos jurisdicionais em concreto.

Logo na primeira sessão plenária após a concessão da liminar pela Min. Carmen Lúcia o STF julgou e referendou por unanimidade a liminar que determinou a suspensão de todos os atos administrativos e jurisdicionais e impediu o ingresso de agentes públicos nas instituições universitárias[5].

Obviamente, a decisão acima citada está de pleno acordo com o Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988 com seus objetivos de redemocratização e garantia de liberdade de pensamento, amplamente solapado no regime ditatorial de 1964.

Efetivamente, a decisão cautelar proferida na ADPF n. 548 passa, sem dúvida, a constituir um poderoso precedente de garantia da liberdade acadêmica e da autonomia universitária. Foi a primeira vez que o STF tangenciou os contornos da própria liberdade acadêmica, apartando-a, mas também correlacionando-a com a liberdade de manifestação do pensamento.

No exato momento em que a onda conservadora e autoritária parece querer exercer policiamento ideológico nos sagrados espaços escolares, a decisão na ADPF n. 548 constitui de certa maneira uma lição cidadã para aqueles que pretendem sabotar a liberdade de pensamento daqueles que pensam de forma distinta. Há, inclusive, o Projeto de Lei 7.180/2014 em trâmite na Câmara dos Deputados que, de forma incisiva, busca constranger epistemologicamente os professores dos mais diversos níveis do ensino a, da forma como foi exposta, simplesmente deixar de pensar e fazer circular suas ideias entre os alunos.[6]

Lenio Streck de forma contundente explicita que a neutralidade ideológica é impossível e seria até mesmo paradoxal: “Pensar que é possível uma ESP, que, na verdade, quer dizer Escola Sem Valoração-Ideologia (o ‘partido’ é por conta de quem defende a tese, uma vez que nada tem de partidário contar fatos históricos — como já falei, se há exageros, estes devem ser resolvidos no plano da discussão, e não da proibição), é pensar que é possível fazer juízos neutros ou avalorativos, distinguindo fato e valor. Quem diz que é possível separar fato e valor já está fazendo um juízo de valor. O valor está no fato de que é bom separar fato e valor! Simples assim. Ou tem de desenhar? Alguém grita: ‘Não se discute questão moral’. Pois é. Aquele que disse isso assumiu uma posição sobre uma questão moral, assumiu também uma posição moral substantiva de primeira ordem. Só se fala da moral de dentro da moral. Quem quer sair disso tem de, primeiro, sair do paradoxo”.[7] Sequer precisamos recorrer aos ensinamentos filosóficos profundos de Heidegger, Gadamer, Habermas, etc. para entendermos que nós constituímos nossa história, nosso caminho, a estrada que percorremos.

É importante entender qual o significado da liberdade acadêmica, principalmente para a construção de um Estado Democrático de Direito. É bem evidente que não há qualquer liberdade absoluta e a liberdade acadêmica está inserta dentro do contexto de uma democracia conflituosa, para dizer com Chantal Mouffe. Entretanto, a própria democracia tem como condição de possibilidade a liberdade de ensinar, de pensar, de pesquisar e de expor os resultados dos trabalhos, não só como garantia dos professores e pesquisadores, mas como uma garantia de livre circulação de ideias dentro de um contexto de pensamento plural.

Há um núcleo essencial da liberdade acadêmica consistente na vedação da coercibilidade das atividades de ensinar, publicar e pesquisar entendendo o professor/pesquisador como parte integrante da sociedade que tem sua liberdade de pensamento da mesma forma que os demais: “Não discordamos que há uma legítima expectativa social de que professores e pesquisadores do ensino superior demonstrem uma alta qualificação e respeito recíproco ao tratarem temas sensíveis com que trabalham, reflexo dos deveres e responsabilidades funcionais que lhe são inerentes. Mas esta circunstância não pode ser traduzida como uma espécie de intimidação disciplinar-funcional, configurando, ela própria, uma restrição desproporcional da liberdade de expressão, em sua cláusula geral, do membro da comunidade acadêmica enquanto mais um participante da sociedade”.[8]

A proibição da censura implica, deste modo, levar a sério não só a crítica ao poder público, mas a possibilidade de livre circulação de ideias contrastantes dentro de uma democracia sempre aberta ao porvir. O referido projeto e o movimento acima citado têm, na verdade, o objetivo claro de criar um ambiente daquilo que, nos EUA, chamam de chilling effect, ou seja, frear e esfriar as críticas[9] às autoridades públicas para evitar as denúncias de atos autoritários.

Vale somar mais um dado às nossas questões: sabendo que o Ministério Público, no regime da Constituição de 1988, assumiu as funções de fiscal da ordem democrática, como conciliar a ideia de que muitos de seus membros venham a público defender o movimento Escola Sem Partido[10] sendo que, como demonstramos, a própria liberdade acadêmica é uma das possíveis vias para a crítica e a denúncia de atos contrários à ordem democrática?

Quando parcela de juízes, parlamentares e membros do Ministério Público atuam para promover o cerceamento da liberdade de ensino (e, logo, da liberdade de expressão correlata) vemos que há algo de muito errado em nossos sistemas jurídico e representativo. A liberdade de ensino é pedra fundamental para a construção de uma sociedade plural, livre, justa e solidária (art. 1º da CR/88). Em tempos nos quais “notícias falsas” minam a credibilidade de instituições e do processo eleitoral, mais do que nunca, é preciso que sejam desenvolvidas novas teorias e novas ferramentas e é no livre pensar e pesquisar que tais soluções hão de vir.

Nenhuma nação venceu seus graves problemas sociais cerceando a ciência – muito ao contrário, foi justamente o incentivo à pesquisa e ao ensino a chave para o desenvolvimento. Ao contrário, um dos primeiros direitos que qualquer ditadura cerceia é, justamente, a liberdade de ensino. Uma vez mais somos desafiados a responder à pergunta sobre quem somos e quem projetamos ser para o futuro. Tertium non datur.

 

Notas e Referências

[1] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A garantia da liberdade de expressão, da liberdade acadêmica e da autonomia constitucional das universidades como pilares da democracia constitucional na ADPF n. 548. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-garantia-da-liberdade-de-expressao-da-liberdade-academica-e-da-autonomia-constitucional-das-universidades-como-pilares-da-democracia-constitucional-na-adpf-n-548, acesso em 11 de novembro de 2018.

[2] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A garantia da liberdade de expressão, da liberdade acadêmica e da autonomia constitucional das universidades como pilares da democracia constitucional na ADPF n. 548. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-garantia-da-liberdade-de-expressao-da-liberdade-academica-e-da-autonomia-constitucional-das-universidades-como-pilares-da-democracia-constitucional-na-adpf-n-548, acesso em 11 de novembro de 2018.

[3] Sempre defendemos que o chamado controle de constitucionalidade em abstrato na verdade não prescinde da reconstrução das situações fáticas para a correta interpretação, daí que falar em controle de constitucionalidade em abstrato nos parece uma contradição em termos (BACHA E SILVA, Diogo. Ativismo no controle de constitucionalidade: a transcendência dos motivos determinantes e a ilegítima apropriação do discurso de justificação pelo STF. Belo Horizonte: Arraes editores, 2013; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: confl ito entre interesses público e privado. Curitiba: Juruá, 2009; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, CARVALHO NETTO, Menelick de. Legitimidade e efetividade como tensão constitutiva (conflito concreto) da normatividade constitucional. LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto e ALBUQUERQUE, Paulo de Menezes (orgs.) Democracia, Direito e Política: Estudos Internacionais em Homenagem a Friedrich  Müller . Florianópolis: Conceito, 2006).

[4] Não é sem razão, pois, que o STF considera que não há direito subjetivo de qualquer entidade em atuar como amigo da corte (STF, Pleno, ADI 5591 ED-AgR / SP, rel. Dias Toffoli, j. 24.08.2018).

[5] Notícia disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=394447, acesso em 11 de novembro de 2018.

[6] Pelo absurdo do texto legislativo, permitimo-nos transcrever: “Art. 3º No exercício de suas funções, o professor:

I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

II - não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

IV - ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria; V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções; VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula”.

[7] STRECK, Lenio. Escola Sem Partido significa: "é possível dizer que a terra é plana". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-08/senso-incomum-escola-partido-significa-possivel-dizer-terra-plana, acesso em 11 de novembro de 2018.

[8] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo, PRATES, Francisco de Castilho. A liberdade acadêmica em disputa: um olhar com e contra a Suprema Corte dos Estados Unidos, Direito UFOP, Ouro Preto, n. 3, pp. 148-180, set./out. 2017, p. 153.

[9] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo, PRATES, Francisco de Castilho. Liberdade de imprensa e autoridades públicas: apontamentos a partir do Estado Democrático de Direito. Quaestio Iuris, vol.10, nº. 01, Rio de Janeiro, 2017. pp. 219-240, p. 225.

[10] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/mais-de-100-promotores-e-procuradores-lancam-manifesto-contra-professores-militantes-e-ativistas/, acesso em 12 de novembro de 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: justita // Foto de: pixel2013 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/justitia-goddess-goddess-of-justice-2597016/

Licença de uso:  https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura