Aos que escreveram linhas sobre o Direito Material e Processual do Trabalho em 2018, congratulações. A Lei 13.467, de 2017, importou num choque epistêmico na comunidade jurídica, e os que bravamente, nesse país, tendem fazer doutrina, tomaram vários dos pontos alterados por aquela lei e, de modo corajoso, teceram praticamente as primeiras palavras sobre a avalanche normativa que recaiu sobre o ramo juslaboral brasileiro.
Na coluna Atualidades Trabalhistas do site Empório do Direito, os autores trataram da nova equiparação salarial, da representação dos trabalhadores nos locais de trabalho, da ampliação da terceirização, da alteração no custeamento sindical, dos efeitos de uma certa mitigação da gratuidade de justiça no âmbito processual trabalhista, da malfadada Medida Provisória nº 808, entre outros temas objeto da “Reforma”.
No entanto, em período de festas e de encerramento e início de ano, é preciso refletir.
Tal qual as comidas de festejo natalino e de passagem de ano que possuem sabor agridoce, para alegria de muitos e horror de outros, as próximas palavras podem ser motivo de confusão sensorial. Assuma-se um caráter de vigilância e alerta.
Receia-se que se esteja edulcorando as posições doutrinárias a respeito da lei reformista sobre a CLT e as relações sociolaborais no Brasil.
Mantém-se a posição já firmada em outros escritos[1], de que a Lei 13.467, de 2017, não é uma autêntica “reforma”, pois reconstruir a CLT significa aboli-la, e, finalmente, legar ao Brasil do século XXI um Código do Trabalho e um Código de Processo do Trabalho.
A intitulada “Reforma Trabalhista” foi elaborada de maneira sofrível, com pouco ou quase nenhum debate, sem, nem mesmo, ter tido uma comissão de juristas encabeçada por um grande nome do Direito do Trabalho. E o resultado não poderia ser outro o reflexo: enquanto a CLT “reformada” é alvo de críticas, algumas poucas palavras são no sentido de lhe conferir elogios.
De mais a mais, o legislador não satisfeito, após 11 de novembro de 2017, já conseguiu aprovar as Leis 13.509 e 13.545, ainda em 2017, e, também, as Leis 13.660 e 13.767, no ano de 2018, que alteram a CLT.
De modo geral, em pontos cuja relevância é menor frente o quadro normativo intentado pela própria Lei 13.467, de 2017, destacam-se os seguintes: da suspensão dos prazos processuais entre 20 de dezembro de um ano a 20 de janeiro de outro ano, em mimetismo ao CPC de 2015; passando pela equiparação da estabilidade gestante ao empregado adotante e a licença-maternidade, inclusive, para a empregada adotante ou que obtenha guarda judicial, além do pagamento do intérprete judicial pelo sucumbente, salvo se beneficiário da justiça gratuita (contra, inclusive, às intenções da Lei 13.467); e, finalizando, até meados de dezembro de 2018, com uma nova hipótese de interrupção do contrato de trabalho.
A intenção ventilada de conduzir as relações laborais e o Direito do Trabalho para um modelo reformista liberalizante é ilustrada por uma tal carteira de trabalho “verde e amarela”[2], além da pretensão[3] de extinção do Ministério do Trabalho, existente no Brasil, como pasta governamental autônoma, desde os anos 1930, outrora chamado de “Ministério da Revolução”[4]. Sobre essas propostas haverá muito que se opinar em 2019.
Outro viés que conduzirá as letras a serem escritas é o enfrentamento pelos tribunais dos efeitos decorrentes dos dispositivos alterados na CLT, mormente pelo Supremo Tribunal Federal na temática da constitucionalidade dos enunciados normativos alterados pela lei.
Nos últimos dias de 2018, noticiou-se[5] que a Procuradoria-Geral da República ofertou três pareceres contrários aos desígnios da Lei 13.467/2017, cada qual deles na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 58/DF e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.867/DF (ambas tratando da correção dos depósitos judiciais pelos índices de poupança e da atualização dos créditos decorrentes de condenações judicial pela Taxa Referencial, que a PGR opinou como violadoras do direito de propriedade), bem com na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.870/DF (sobre a tarifação do dano extrapatrimonial, opinada como violadora da dignidade humana).
Ao seu modo, o TRT da 3ª Região (Minas Gerais) vem se conduzindo como resistência à Lei 13.467 tendo editado, inclusive, a Súmula de nº 72[6]. Por sua vez, o TRT da 14ª Região (Rondônia e Acre) já declarou no processo nº 0000147-84.2018.5.14.0000 a inconstitucionalidade do §4º do art. 791-A da CLT[7]. A mesma questão está pendente de julgamento pelo Tribunal Pleno do TRT-3 em determinada arguição de inconstitucionalidade (ArgInc-0011811-21.2018.5.03.0000[8]). Lá e cá, a preocupação vem sendo a redução dos efeitos da gratuidade de justiça na nova cara dada à CLT, em contradição ao plexo normativo que existia na redação celetista que trata das custas e emolumentos.
Há de se afirmar que a consequência mais imediata a ser tratada em 2019 é aquilo que vem sendo chamado de “ativismo judicial”, ou, ainda, o seu risco. E a Lei 13.467, de 2017, é um campo fértil para isso.
A propósito, o Presidente do STF já pautou para o dia 12 de junho de 2019[9] ação e recurso que enfrentam pontos que foram objeto da “Reforma Trabalhista”. A ADI 5.826/DF, que tem em seu apenso a ADI 5.829/DF, irá se deparar com o contrato para prestação de trabalho intermitente; ao passo que o Recurso Extraordinário 635.546 (recurso autuado em 2011), com repercussão geral já reconhecida, enfrentará o tema da terceirização, um dos pilares da Lei 13.467, que procedeu a alterações na Lei 6.019, de 1974, e a isonomia salarial entre empregados terceirizados e a Administração Pública Indireta (no caso, a Caixa Econômica Federal).
Reitere-se, diante do quadro de demandas pendentes de decisões judiciais, se o ativismo judicial irá ganhar força no cotejo da compatibilidade da “Reforma” trabalhista, aprovada em 2017, com o sistema constitucional de 1988.
Maria Benedita Urbano[10] leciona que o ativismo aparece quando (i) os juízes constitucionais se opõem a uma decisão política contida numa norma com base em critérios e racionalizações políticas, ainda que juridicamente fundamentados; (ii) quando os juízes constitucionais criam direito “do nada”, ainda que para combate à inércia do legislador; (iii) quando os juízes constitucionais não se limitam a aplicar a Constituição, ainda que de forma construtiva, visam complementá-la ou corrigi-la; (iv) ou, ainda, quando os juízes constitucionais, mais que corrigem uma norma constitucional, a derrogam. Como o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade adota o modelo dual ou paralelo[11], onde todos os juízes e tribunais brasileiros possuem o poder de reconhecer a inconstitucionalidade de certa norma, seja mediante a via excetiva, seja como objeto principal da ação, a despeito do conceito que se queira adotar sobre o termo “ativismo”, afirma-se que a Lei “reformista” potencializa o risco do que já se convencionou atribuir “a dificuldade contramajoritária”[12] dos Tribunais (em verdade, a expressão está mais ligada ao papel das Cortes constitucionais)
A contramajoritariedade está no cerne de quem se propõe perquirir sobre a legitimidade das instâncias jurisdicionais, que não são eleitas, ao exercerem a função de verdadeiros legisladores negativos, abolindo ou afastando a incidência de leis que transpassaram o processo legislativo. Em 2019, viver-se-á a tensão existente entre os que produziram a norma que se propôs alterar as bases ideológicas do Direito do Trabalho brasileiro, e aqueles que estão a apreciar se os escopos adotados abarcam as intenções sobrelevadas das normas constitucionais de 1988[13].
Homero Batista, em postagem em seu perfil no Instagram (@professorhomero), ilustrada com a frase “Daqui para onde?”, do dia 15 de dezembro de 2018, alerta que nada é mais difícil que em períodos de tormenta. Deve-se manter a ética e a postura que os antepassados ensinaram, praticando a perseverança, e, mais do que tudo, segundo o jurista, “não esmorecer na crença de que o mundo ainda possa mudar mais pela força da palavra do que pela força das armas”.
Às palavras, então.
Que venha o ano de 2019.
Notas e Referências
[1] Como exemplo, MACHADO, Marcelo Ferreira. Alterações na CLT pela Lei 13.467/2017: artigos comentados. Juris Plenum. Ano XIII, n. 78 (nov./dez; 2017). Caxias do Sul, RS: Editora Plenum, 2017. p. 9 e nota 1.
[2] BRASIL DE FATO. O que se sabe sobre a carteira de trabalho "verde e amarela" proposta por Bolsonaro? https://www.brasildefato.com.br/2018/11/18/o-que-sabe-sobre-a-carteira-de-trabalho-verde-amarela-proposta-por-bolsonaro/. Acesso em 26 dez. 2018.
[3] JORNAL DO BRASIL. Extinção do Ministério do Trabalho poderá demandar projeto de lei. https://www.jb.com.br/pais/2018/12/967773-extincao-do-ministerio-do-trabalho-podera-demandar-projeto-de-lei.html. Acesso em 26 dez. 2018.
[4] VIANNA, Luiz Werneck Vianna; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 2. p. 42.
[5] CONJUR. Raquel Dodge emite pareceres contra dispositivos da reforma trabalhista. https://www.conjur.com.br/2018-dez-25/dodge-emite-pareceres-dispositivos-reforma-trabalhista. Acesso em 26 dez. 2018.
[6] Arguição Incidental de Inconstitucionalidade. Pagamento de custas. Beneficiário de justiça gratuita. §§ 2º e 3º do art. 844 da CLT (Lei 13.467/2017). São inconstitucionais a expressão "ainda que beneficiário da justiça gratuita", constante do § 2º, e a íntegra do § 3º, ambos dispositivos do art. 844 da CLT, na redação dada pela Lei 13.467/2017, por violação direta e frontal aos princípios constitucionais da isonomia (art. 5º, caput, da CR), da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CR) e da concessão de justiça gratuita àqueles que dela necessitarem (art. 5º, LXXIV, da CR). (RA 145/2018, disponibilização: DEJT/TRT3/Cad. Jud. 19, 20 e 21/09/2018). Disponível em: BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Súmulas. https://portal.trt3.jus.br/internet/jurisprudencia/uniformizacao-de-jurisprudencia/sumulas. Acesso em 26 dez. 2018.
[7] DICAS TRABALHISTAS. Disponível em: https://dicastrabalhistas.com.br/wp-content/uploads/2018/11/inconstitucionalidade-justic%CC%A7a-gratui%CC%81ta.pdf. Acesso em 26 dez. 2018.
[8] BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Consulta processual. Disponível em: https://pje-consulta.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/DetalhaProcesso.seam?p_num_pje=273712&p_grau_pje=2&p_seq=0011811&p_dig_cnj=21&p_ano_cnj=2018&p_vara=0000&cid=475.
[9] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pautas de Julgamento. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/pauta/listarCalendario.asp?data=12/06/2019. Acesso em 26 dez. 2018.
[10] URBANO, Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional: evolução histórica e modelos de controlo de constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2013. p. 96-97.
[11] MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 10.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018. p. 666.
[12] O termo “the counter-majoritarian difficulty” é encontrado na obra de BICKEL, Alexander. The Last Dangerous Branch: the Supreme Court at the bar of politics. 1.ed. Indianapolis, New York: The Bobbs-Merrill Co. Inc., 1962. p. 16-23.
[13] Essas intenções podem ser condensadas, em acolhimento aos ensinamentos de José Afonso da Silva, na consagração de um (i) “princípio da constitucionalidade”, donde “a constituição que dirige a marcha da sociedade e vincula, positiva e negativamente, os atos do Poder Público”; de um (ii) “princípio da proteção dos direitos fundamentais”, compreendendo os direitos individuais, coletivos, políticos e sociais; e de um (iii) “princípio democrático”, onde se realiza a democracia representativa, participativa e pluralista (Teoria do Conhecimento Constitucional. 1.ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 265-289. Passim.)
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