O que Donald Trump tem a ver com Dória? Administração Pública e Dominação Carismática em Tempos de Crise – Por Leonel Pires Ohlweiler

26/01/2017

O ano de 2017 começou mal, muito mal, não somente pela tragédia da morte do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascky, em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas da queda do avião, fato sobre o qual desenvolverei em outra coluna, mas em virtude dos protestos e críticas reiteradas por ocasião da posse de Donald Trump, o 45º Presidente dos Estados Unidos da América, e o sentido representado por ele em termos de Administração Pública.

Pelas bandas de cá no Brasil, os acontecimentos não são mais alvissareiros.

Logo no início do ano, o Prefeito de São Paulo João Dória, para cumprir uma das promessas de campanha, vestiu-se de gari na manhã do dia 02/01/2017 para o que chamou de “ação simbólica”. Como diz a reportagem publicada na Folha de São Paulo[1], de fato não limpou a Praça 14 Bis, local da “apresentação”, mas posou para fotos com o uniforme, varrendo pequeno trecho da calçada.

Os dois fatos, por óbvio de dimensões completamente diversas, de algum modo remetem para o tema das críticas que foram desenvolvidas pelos meios de comunicação sobre o populismo na Administração Pública. O jornal Folha de São Paulo destacou a manchete: “Trump assume Casa Branca com Discurso populista e patriótico.[2]” Há inúmeras publicações discutindo o significado da expressão populismo, variando a análise sobre dimensões mais positivas e com a hodierna atribuição de sentido pejorativo ao administrador adjetivado como tal, pois relacionado com alguém cujo propósito é enganar e utilizar a retórica de promessas com fácil circulação, mas que jamais serão cumpridas[3]. Portanto, ultrapassado o estágio no qual significava alguém de fato preocupado e próximo do povo, disposto a atender as demandas da comunidade, transforma-se, em especial no contexto brasileiro, expressão capaz de indicar ações demagógicas[4]. O mais curioso e interessante é quando o populismo erige-se em situações de regimes democráticos, na medida em que não se trata mais de impor ordens de pensamento e ações por intermédio de movimentos marcados pela repressão, mas alimentados em diversas frentes pela persuasão das massas por uma liderança carismática[5].

Sobre o tema, portanto, para bem compreender as relações entre o discurso de Donald Trump e o nosso gari tupiniquim de ocasião, impõe-se a referência a Max Weber quando examina os tipos de dominação, elencando a dominação carismática como aquela “baseada na veneração extracotidiana da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas[6]”. Como o próprio autor destaca, os três tipos de dominação – além da carismática, a dominação racional[7] e a dominação tradicional – historicamente não ocorrem em forma realmente pura, inter-relacionando-se durante o exercício do poder. De fato, no âmbito das Administrações Públicas denota-se o exercício das prerrogativas baseado na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles nomeados para exercer a dominação (dominação legal), no caso, em virtude de processos democráticos de eleições. No entanto, é revelador o recurso à simbologia das sagradas tradições vigentes, como modo de institucionalizar o caráter de autoridade (dominação tradicional), mas com crescente aumento do carisma, considerando o atual descrédito nos processos racionais de exercício do poder.

A circunstância de o bilionário Donald Trump sustentar como plataforma de governo que governará para o povo é, no mínimo, estranha, mas também não faltaram promessas polêmicas, cujo aspecto ético pouco importa: é preciso colar na imagem do carisma e daquilo que o senso comum conversador quer de fato ouvir. Nessa linha estão os projetos de desmontar a Lei de Saúde Acessível, construir o muro na fronteira com o México, proibição à entrada de muçulmanos nos EUA e adotar uma política para retirar restrições sobre compradores e vendedores de armas[8]. Como refere Max Weber, em relação ao carisma, o modo como a qualidade pessoal do líder carismático deve ser analisada em termos de postura correta ou não, pouco importa, o relevante é como de fato tal qualidade é avaliada pelos carismaticamente dominados[9].

No caso brasileiro, o recém-eleito Prefeito de São Paulo, ao posar para as fotografias amplamente divulgadas na mídia, disse colocar-se assim em pé de igualdade com eles. Ora, sorrisos fartos, abraços burocráticos e uniforme limpinho de gari, são elementos distantes de qualquer concepção de igualdade em relação a tais profissionais; aliás, essenciais para o desenvolvimento cotidiano da cidade. Tal espetacularização insere-se na construção de uma imagem carismática para sustentar o início do poder. A cena foi mais surpreendente quando a reportagem realizada revelou que enquanto o Prefeito tirava fotografias, “secretários, também vestidos com uniforme de gari, ficaram parados esperando.[10]

É sintomático como a principal contradição, referente às condições precárias de trabalho dos garis, perde-se no discurso fácil do líder carismático e dos seus quadros administrativos presentes no “ato simbólico”.

Como aludido antes, o populismo relaciona-se também com a forma como as lideranças carismáticas relacionam-se com as massas e o aspecto de substituição de elites políticas em crise por novos dirigentes[11], cujo processo de sucessão é alimentado por diversos fatores decisivos como jovialidade, imagem de empreendedor, conservadorismo popular, etc.

O contexto acima desenhado decorre da circulação fácil de discursos proféticos, considerando a atual crise econômica, social e institucional. Há um diálogo interessante entre Zygmun Bauman, recém falecido, e Carlos Bordoni sobre o sentido da expressão “crise”. Para Bauman – e isso explica muitas coisas – “a crise é um momento de decidir que procedimento adotar, mas o arsenal de experiências humanas parece não ter nenhuma estratégia confiável para se escolher”[12].

Por ocasião de sua posse, Trump foi revelador, assumindo-se como o líder carismático responsável pela reconstrução do país – saída da crise - e proferindo palavras messiânicas de caos para justificar o chamamento da comunidade, além de explicitar o propósito de “transferir o poder para o povo”[13]. Aqui em terra brasilis, Dória prometeu um governo conciliador e que “colocará São Paulo nos trilhos”, bem como a “prioridade será aos mais humildes e mais pobres da nossa cidade”[14].

Mas, por fim, não se pode olvidar que está na gênese da dominação carismática a relação social estritamente pessoal, determinada por qualidades individuais do Agente Público, sendo que quando tal relação assume o caráter permanente a tendência é modificar para mesclar-se com as outras formas de dominação – tradicional e racional, como alude Max Weber, pois se o carisma é decisivo para a entrada no poder, é insuficiente para o desenvolvimento cotidiano das ações da Administração Pública.

E aqui começam os problemas, pois quando as ações efetivadas no dia a dia já não são mais capazes de sustentar o carisma, desvela-se a frustração pelo não cumprimento de promessas que, sob outro viés, eram difíceis ou impossíveis de serem postas em prática, circunstância obnubilada pelo véu do discurso simbólico.

Isso não quer dizer que no início, e durante algum tempo, os governos carismáticos não realizem atos com efeitos pirotécnicos, não apenas para confirmarem-se como autoridade suprema, mas garantir o processo de dominação. É preciso garantir a imagem de que “Tornaremos a América Grande Outra Vez” ou vestir roupa de gari significa “humildade, igualdade e capacidade de trabalho”! Mas a (pós)modernidade tem suas surpresas e os populistas conservadores, premidos pela desconstrução da retórica, por vezes, são capazes, de fato, de materializarem algumas promessas de atos desenraizados de qualquer parâmetro mínimo de racionalidade. Em tais ocasiões, a democracia é algo um tanto sinistra, pois o mundo já está repleto de insanidades.

Não poderia deixar de referir, pelo caráter inusitado, outra demonstração de governo carismático, mas agora sob as luzes da explícita revogação da laicização: o Decreto nº 1, de 02 de janeiro de 2017, do Prefeito de Guanambi, ao entregar a chave da cidade para Jesus Cristo, com ato administrativo publicado no Diário Oficial.

O ano de 2017 será bem difícil...


Notas e Referências:

[1] Folha de São Paulo, Cotidiano, 03/01/2017.

[2] Folha de São Paulo, 21/01/2017.

[3] Cf. CERVI, Emerson Urizi. As Sete Vidas do Populismo, In: Revista de Sociologia e Política, 17, p.151-156, nov. 2001, p. 151.

[4] Cf. CERVI, Emerson Urizi. As Sete Vidas do Populismo, p. 151.

[5] Cf. CERVI, Emerson Urizi. As Sete Vidas do Populismo, p. 151.

[6] Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Volume 1. UNB: Brasília, 2015, p. 141.

[7] A dominação racional é aquela “baseada na crença da legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação (dominação legal)” e a de caráter tradicional “baseada na crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a autoridade (dominação tradicional)”, conforme Max Weber (Economia e Sociedade, p. 141).

[8] Conforme reportagem da Folha de São Paulo, 10 Promessas de Trump, 21/01/2017.

[9] Economia e Sociedade, p. 159.

[10] Reportagem da Folha de São Paulo, Dória se Veste de Gari e Diz Que Vai Limpar as Ruas de SP Todas as Semanas, 03/01/2017.

[11] Cf. CERVI, Emerson Urizzi. As Sete Vidas do Populismo, p.154.

[12] BAUMAN, Zygmunt e BORDONI, Carlos. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 20.

[13] Folha de São Paulo, Íntegra do Discurso de Donal Trump, 24/01/2017.

[14] Reportagem Doria Assume SP, Promete Conciliação e Diz Que Recuará Quando Necessário, Folha de São Paulo, 01/01/2017.

BAUMAN, Zygmunt e BORDONI, Carlos. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

CERVI, Emerson Urizi. As Sete Vidas do Populismo, In: Revista de Sociologia e Política, 17, p.151-156, nov. 2001.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Volume 1. UNB: Brasília, 2015.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Donald Trump // Foto de: Gage Skidmore // Sem alterações

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