Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil
No último Congresso da AMPDIC, realizado nos dias 28 a 30 de junho de 2023 na cidade de Viçosa-MG, ao responder uma pergunta da plateia, a palestrante Elisa Cruz, mestre e doutora em Direito, Professora da FGV e defensora pública no Rio de Janeiro, disse que a guarda de filhos deveria acabar. Confesso que, em um primeiro momento, fiquei impactado com a fala, mas depois comecei a pensar melhor nos argumentos trazidos na resposta e em diversos textos e autores que eu já tinha estudado.
No Código Civil de 1916 (CCB/1916), a guarda de filhos aparece nos dispositivos que regulam a dissolução da sociedade conjugal, que se dava pelo desquite, especificamente em um capítulo dedicado à proteção à pessoa dos filhos. Em dois curtos artigos, o CCB/1916 previa que, sendo o desquite amigável, os pais acordariam sobre a guarda e que, se houvesse litígio, os filhos ficariam na guarda do cônjuge inocente. Sendo ambos culpados, a guarda das filhas e dos filhos até seis anos seria da mãe e, após essa idade, o pai seria o guardião (325 e 326 do CCB/1916/1916). Aqui começa uma tradição do Direito civil nacional de não conceituar e nem delimitar a abrangência da guarda.
A guarda passa então a ser utilizada como um termo de significado e de operacionalização fossem indiscutíveis, sem que houvesse lastro legal nesse sentido, como se fosse um topoi descrito por Viehweg em sua tópica. Isso fez com que a prática forense criasse um sistema, que durante muito tempo foi pouco questionado, no qual o guardião seria o responsável pelas decisões referentes ao filho, enquanto o pai não guardião teria o direito de visitação (geralmente em fins de semana alternados) e o dever de pagar alimentos. Curiosamente, esse arranjo foi cristalizado mesmo com a disposição expressa, no art. 381 do mesmo código, que o “desquite não altera as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos (arts. 326 e 327).” Ainda dentro da sistemática do CCB/1916, o pátrio poder pertencia ao pai e a mãe só o exerceria na falta ou impedimento desse pai (art. 380). Isso fazia com ocorresse a insólita situação de a mãe ser a guardiã, mas o pai o único responsável pelo exercício do pátrio poder.
Mesmo com o desenvolvimento social brasileiro e o advento de importantes leis, como o Estatuto da Mulher Casada, a Emenda Constitucional n. 9/1977 e Lei n. 6.515/1977 – que introduziram e regulamentaram o divórcio no país e previu que a guarda dos filhos ficaria com o cônjuge que já os tivessem em sua companhia –, além do Código Civil de 2002 (CCB/2022), que reafirmou que a concessão da guarda não altera o poder familiar (art. 1.632), pouco foi o aprofundamento teórico no que exatamente seria o instituto. Tampouco, os especialistas em Direito das Famílias procuraram dar à guarda de filhos a sistematização que fizeram com outros institutos como a tutela (Grisard Filho, 2000). Para o mesmo autor, a visão tradicional de guarda de filhos no direito pátrio seria a guarda unilateral e nela
[...] o genitor que obtenha a guarda exercerá sua autoridade parental em toda a sua extensão, por esta diretamente vinculado ao filho. Por sua vez, o genitor que não a obtenha terá enfraquecido seus poderes paternos, enquanto não os exercerá com a mesma intensidade e na mesma medida que o outro, por estar indiretamente vinculado ao filho. Vale dizer, os poderes que passarão a deter cada um dos genitores são desiguais.
Na pós-ruptura, o genitor que obtenha a guarda assume unipessoalmente o exercício de todos os direitos e deveres que antes eram cumpridos conjuntamente, sem prejuízo, entretanto, do direito do outro de ter uma adequada comunicação com o filho e supervisionar sua educação. Há, assim, uma redistribuição dos papéis parentais, com evidente privação do essencial de suas prerrogativas ao genitor não-guardião. (Grisard Filho, 2000, p. 88).
A guarda, portanto, interferia diretamente no exercício do pátrio poder e, posteriormente, poder familiar mesmo a legislação nacional prevendo o contrário. Isso fez com que o instituto ganhasse maior importância do que deveria e acabasse sendo confundido com o próprio poder familiar (Teixeira, 2009).
Partindo de uma análise sistemática das normas do Direito da Criança e do Adolescente, Marcelo Vieira (2020) defende que o conteúdo da guarda de filhos poderia ser extraído do art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dispositivo que trata de guarda de terceiros. Dessa forma, o guardião teria a obrigação de prestar “assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”. Para Elisa Cruz (2021), compreender esses deveres previstos no mencionado art. 33 da Lei n. 8.069/1990 como o conteúdo da guarda é adequado, uma vez que eles representam de forma fiel o atual fundamento do instituto: o cuidado com as crianças e os adolescentes.
Todavia, essa interpretação não foi compreendida pela comunidade jurídica que continuou a se preocupar pouco com o conteúdo da guarda. A confusão conceitual agravou-se em 2008, quando foi introduzida, no Direito brasileiro, a guarda compartilhada, pela Lei n. 11.698/2008. Esse instituto é utilizado em ordenamentos jurídicos estrangeiros, conceituada como “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (art. 1.583, §1º do CCB/2002). Posteriormente, a Lei n. 13.058/2014 previu que:
A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos. (art. 1.583, §5º do CCB/2020).
Se em um exame mais raso, os dois dispositivos sugerem que houve uma inovação positiva no ordenamento jurídico nacional, em uma análise mais profunda, nota-se que ambos fazem pouco sentido quando se compreende que o real problema da guarda dos filhos no Brasil é a não compreensão da relação entre a guarda e o poder familiar. Ana Carolina Teixeira (2008) ensina que a guarda compartilhada é utilizada em países nos quais é atribuído o poder familiar a somente um dos pais quando há o rompimento da sociedade conjugal, o que não acontece no país. A autora reconhece o caráter simbólico da lei e a sua capacidade de estimular uma participação mais efetiva dos pais na vida dos filhos, mas afirma que, em uma análise estrutural e funcional do instituto, a guarda compartilhada é desnecessária no direito nacional, já que mesmo com a atribuição da guarda a um dos pais, ambos devem se responsabilizar conjuntamente pelo exercício do poder familiar (Teixeira, 2008).
O §5º do art. 1.583 também é igualmente inútil, uma vez que o dever de fiscalização de qualquer um dos pais no interesse dos filhos é decorrência do poder familiar, devendo também ser atribuído ao guardião quando o filho estiver na companhia do pai não guardião. Além disso, o texto é especialmente perigoso, uma vez que, em uma análise contrária à definição de guarda compartilhada – art. 1.583, §1º do CCB/2002 –, poderia se compreender que, havendo guarda unilateral, os pais não seriam responsáveis em conjunto pelo exercício do poder familiar.
Mesmo entendendo que os dispositivos têm um inegável caráter simbólico e podem ajudar a promover uma maior participação dos pais na vida dos filhos, deve-se reconhecer que eles contribuem para perpetuar a compreensão que a guarda modifica os deveres do poder familiar, muitas vezes, até se sobrepondo a esse poder, mesmo ela sendo apenas um dos atributos deles (art. 1.634, II do CCB/2002). Nesse contexto, a guarda mais atrapalha do que propriamente ajuda a prática do Direito das Famílias no Brasil, uma vez que o que deve ser regulado quando não há sociedade conjugal é o exercício do poder familiar.
Foi a partir dessa visão que, no Seminário “Reforma do Código Civil: contribuições de Minas Gerais”, promovido pela AMPDIC (Associação Mineira do Professores de Direito Civil), pela Faculdade de Direito da UFMG, pelo IAMG (Instituto dos Advogados de Minas Gerais) e pela ESA-MG (Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais), o grupo de trabalho sobre Famílias aprovou por unanimidade a sugestão de extinção da guarda e a sua substituição por um plano de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Art. 1.583. Não havendo sociedade conjugal e sendo os filhos crianças e/ou adolescentes, qualquer um dos pais ou eles em conjunto apresentarão um plano de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o qual respeitará as necessidades e os interesses do filho e abordará necessariamente:
I – a residência principal do filho;
II – a divisão do período de convivência e de tarefas referentes ao poder familiar a serem realizadas por cada um dos pais;
III – os valores referentes a alimentos.
1º. Para a fixação do plano de regulação do exercício das responsabilidades parentais será respeitado o direito da criança ou do adolescente à participação, conforme determinado no art. 11 da Convenção dos direitos da criança de 1989.
2º. O plano poderá versar sobre outras questões referentes ao bem-estar dos filhos, incluindo o direito de convivência com outros parentes.
Art. 1.584. O plano de regulação do exercício das responsabilidades parentais deverá ser aprovado pelo juiz após Manifestação do Ministério Público e poderá ser modificado a qualquer tempo para atender os interesses e necessidades da prole, mediante requerimento das partes ou do próprio filho, devendo ser novamente homologado pela Poder Judiciário.
1º. Havendo comprovada urgência, o juiz determinará um plano provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que será reavaliado na audiência de conciliação.
2º. O juiz realizará audiência de conciliação, na qual ouvirá as partes e esclarecerá a elas sobre o compartilhamento do poder familiar e a necessidade da participação dos pais na vida dos filhos.
3º. Entendendo necessário e havendo consenso entre as partes, o juiz poderá encaminhar os pais para procedimento de mediação familiar.
4º. Não havendo consenso entre os pais sobre o plano ou sobre conteúdo de determinada cláusula ou entendendo o juiz que o plano apresentado não atende aos direitos da criança ou do adolescente, autoridade poderá, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, para estabelecer regulamentação diversa.
5º. A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula do plano poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu descumpridor.
A redação dos artigos contou com a minha participação e a das professoras Ester Norato e Laura Souza Lima, além da inspiradora desse debate, Elisa Cruz. Sugerir a extinção de um instituto tão antigo é algo que causará um espanto nos juristas mais conservadores. Entretanto, o direito deve se adequar às necessidades dos novos tempos, não podendo a sociedade ficar refém de algo que traz mais confusões do que soluções e que não se coaduna com o Direito das Famílias plural e participativo. A substituição da guarda por esse plano de regulação das responsabilidades parentais acabaria de vez com a confusão existente entre guarda e poder familiar e auxiliar na compreensão do exercício dos deveres parentais. Essa solução já foi adotada no Direito argentino, no qual há esse plano que regulamenta o regime de tempo de cada genitor com o filho (incluindo a definição desse nas férias escolares e datas comemorativas), o sistema de comunicação quando a criança ou o adolescente estiver com o outro pai, o lugar de residência e as responsabilidades de cada um dos pais.
O fim da guarda no Direito brasileiro não teria maiores impactos no Direito nacional, já que ela está dentro do poder familiar e este não é modificado quando não há sociedade conjugal. Sua extinção seria mais positiva se ela fosse substituída por um sistema que fosse capaz de efetivamente promover a corresponsabilidade parental focada no desenvolvimento dos filhos. Nesse contexto, o plano de regulação das responsabilidades parentais poderia ser uma solução. Contudo, esse não foi o caminho adotado pela subcomissão de Direito de Família da Comissão do Senado Federal para revisão e atualização do Código Civil, que manteve a guarda em sua proposta, repetindo as inconsistências do instituto aqui apontadas.
Notas e referências
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