Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Temos visto com grande frequência a importação de institutos jurídicos para a realidade brasileira. Em geral, com a expectativa de que os nossos problemas sejam solucionados, simplesmente são trazidas as respostas que produzem bons efeitos em outros países, como se a eficácia de algum instituto jurídico não dependesse de todo o contexto em que o mesmo é aplicado. É sobre isso que falaremos nesta coluna.
Um ponto inicial para esta reflexão relaciona-se ao fato de o Direito não representar uma única fórmula universal capaz de ser aplicada em todos os países com sucesso. Ao contrário, o Direito representa um conjunto de regras, regedoras de uma sociedade em busca do bem comum, que depende do tempo e do local onde ele é observado. Nesse contexto, convém lembrar que Clifford Geertz, em sua obra O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, demonstra que o pluralismo jurídico é o ponto central do Direito.[1]
Esse assunto veio à tona quando, em conversa com os nossos alunos, tentamos explicar a necessidade de contextualizar a aplicação dos institutos, e não apenas trazê-los do seu país de origem para aplicá-los no Brasil. Alguns alunos ficaram impressionados quando esclarecemos que, embora a transação penal, prevista na Lei 9099/95, tenha sido inspirada na plea bargaining norte-americana, não se deve confundir ambos os institutos justamente porque aplicados em realidades totalmente diferentes.
Ainda que não existissem muitas diferenças entre os Estados Unidos da América e o Brasil, a forma distinta adotada nos dois países para o ingresso na carreira do Ministério Público, por si só, já revelaria a presença de uma diferença muito significativa.
Enquanto na grande maioria dos Estados americanos o provimento dos integrantes do Ministério Público é feito através de eleições (as exceções estão apenas nos Estados de New Jersey, Connecticut, Rhode Island e Delaware, nos quais o provimento ocorre por nomeação), no Brasil, as pessoas ingressam no Ministério Público através de concurso público de provas e títulos, conforme expressamente dispõe o art. 129, § 3°, da Constituição Federal.
Tal distinção é importante para compreender a forma de atuação do prosecutor norte-americano e a forma de atuação do promotor de justiça brasileiro. Embora ambos atuem na acusação, as suas funções são desempenhadas de maneiras muito diferentes.
Justamente por ser eleito na grande maioria dos Estados americanos, o prosecutor tem um compromisso político com as pessoas que o elegeram. Isso significa que o seu desempenho também é influenciado por este fator político, já que tem a obrigação de prestar contas à comunidade na qual atua, sobretudo se a sua pretensão é ser novamente eleito ou buscar uma colocação política propriamente dita.
No Brasil, por ser aprovado em um concurso público de provas e títulos, o promotor de justiça não tem a mesma preocupação. A rigor, a sua atuação deve ser orientada apenas pelo cumprimento da legislação em vigor, inclusive no que se refere à fiscalização de sua aplicação por todos. Isso em nada diminui a sua importância. Muito ao contrário. Mas é importante perceber a distinção existente entre a atuação do prosecutor e do promotor de justiça.
A transação penal, prevista na Lei 9099/95, em regra, apenas tem aplicação nos delitos da competência dos Juizados Especiais Criminais, basicamente incluindo as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima prevista não ultrapassa o patamar de dois anos.
Portanto, apenas nas chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo, o promotor de justiça pode negociar com o suposto autor do fato a aplicação de alguma medida despenalizadora, cujo objetivo é evitar o oferecimento da denúncia e a consequente deflagração do processo criminal.
Além disso, ao tratar da transação penal, o art. 76, caput, da Lei 9099/95, expressamente dispõe que o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata da pena restritiva de direitos ou multa. Dessa forma, o legislador limita o campo de aplicação da transação penal e, também, a forma de sua incidência. Em outras palavras: o promotor de justiça não pode aplicar a transação penal quando quiser e como quiser. Existem parâmetros legais a serem observados.
A realidade americana é completamente diferente, tendo o prosecutor uma liberdade de atuação que não é conferida ao promotor de justiça brasileiro. Não pretendemos criticar as formas de atuação do prosecutor ou do promotor de justiça. Apenas buscamos diferenciá-las para que se possa compreender as suas significativas diferenças. Vejamos dois exemplos da realidade norte-americana que expõem de forma evidente tais diferenças.
No caso Bordenkirsher v. Hayes, a Suprema Corte norte-americana evidenciou que apenas situações extremas devem limitar a atuação do prosecutor. No caso em exame, o Ministério Público, sabendo que o réu era reincidente, propôs a aplicação de uma pena de 5 anos de prisão pela falsificação de um cheque de U$ 88,30 e o alertou que, se ele não aceitasse a proposta, o prosecutor tentaria obter um indictment no júri com base em uma lei que punia o agente em caso de reincidência com uma pena de prisão perpétua. Veja-se a liberdade que o Ministério Público pretendia ter no caso concreto: seria buscada a condenação à pena de prisão perpétua pela falsificação de um cheque de U$ 88,30. Todavia, a Suprema Corte norte-americana decidiu pela invalidade da plea bargaining, entendendo que o prosecutor, quando usou o fato de o réu ser reincidente como elemento para persuadi-lo ao acordo, extrapolou a linha da negociação e fez uma verdadeira ameaça ao réu.[2]
No caso Alford v. North Carolina, o réu foi acusado pela prática de um homicídio de 1° grau, crime punido com morte, salvo se o júri recomendasse a prisão perpétua. Se o réu se declarasse culpado, a lei previa a prisão perpétua para o homicídio de 1° grau e a pena de 2 a 30 anos de prisão para o homicídio de 2° grau. No caso, o prosecutor aceitou fazer a acusação pelo homicídio de 2° grau, se o réu se declarasse culpado. O réu declarou-se culpado, afirmando que só o fazia para evitar o risco de ser condenado à prisão perpétua pelo júri, tendo sido condenado à pena de 30 anos de prisão. O caso chegou à Suprema Corte norte-americana porque, depois, o réu alegou ter assumido a culpa por medo, pedindo novo julgamento. Mas a Suprema Corte reconheceu que a Constituição norte-americana não proíbe a imposição de uma pena de prisão a um acusado que não pretende admitir expressamente a sua culpa, mas que, perante difíceis alternativas, está disposto a renunciar ao seu julgamento e a aceitar a pena.[3]
Esses exemplos, na nossa avaliação, evidenciam de maneira contundente as diferenças existentes entre as formas de atuação do prosecutor norte-americano e do promotor de justiça brasileiro. São realidades diferentes. Cada qual tem a sua importantíssima função a ser desempenhada. Todavia, é importante perceber as diferenças para que não se faça uma comparação simplista entre prosecutor e promotor de justiça, entre plea bargaining e transação penal e entre tantos outros institutos que importamos na esperança de ver os nossos problemas resolvidos em um passe mágica.
Notas e Referências
[1] GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 339.
[2] COUTO, Ana Paula. Lei 9099/95: a influência norte-americana na transação penal. Rio de Janeiro: Letras e Versos, 2019, p. 66-67.
[3] COUTO, Ana Paula. Lei 9099/95: a influência norte-americana na transação penal. Rio de Janeiro: Letras e Versos, 2019, p. 69.
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