O vereador Layon Dias Silva do Partido Republicanos propôs Projeto de Lei Municipal que tem como objeto “a proibição de participação de crianças e adolescentes em parada do orgulho LGBTQIA+ ou qualquer evento público que tenha cunho de exibição de cenas eróticas e pornográficas, incentivo as drogas e intolerância religiosa no Município de Betim”. Segundo dispõe o art. 1º do referido projeto, “Fica proibida a participação de crianças e adolescentes em Parada do Orgulho LGBTQIA+ ou de qualquer evento público que tenha cunho de exibição de cenas eróticas e/ou pornográficas, incentivo às drogas e intolerância religiosa no Município de Betim, salvo expressa autorização judicial”.[1] No artigo 2º, o projeto cuida de estabelecer a sanção para o descumprimento da proibição de presença de crianças e adolescentes no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por hora de exposição. No art. 3º estabelece que é da obrigação dos organizadores do evento, patrocinadores e pais ou responsáveis garantir a ausência de crianças. O art. 4º contempla a cláusula de vigência.
O referido projeto recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Vereadores, tendo o órgão se manifestado pela inexistência de óbices regimentais, legais e constitucionais quanto à forma e à matéria para que a Câmara deliberasse,[2] assim como da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da Câmara Municipal de Betim.[3] Além disso, 1/3 dos vereadores apresentaram requerimento de urgência na apreciação do referido projeto, tendo sido já aprovado, no dia 11 de julho, em primeiro turno, com treze votos favoráveis e nenhum em contrário (sete vereadores não votaram).
Na justificativa do projeto, o vereador Layon Dias Silva diz que crianças e adolescentes expostos a eventos como a Parada LGBTQIA+ podem enfrentar dificuldades em discernir aspectos da sexualidade humana, uma vez que a falta de maturidade os torna vulneráveis à influência externa e a comportamentos imitativos. Menciona que há na exposição de crianças e adolescentes a referido evento sexualização precoce que causaria problemas psicológicos, emocionais e sociais. A própria justificativa do projeto já denota claramente qual é o seu objeto: trata-se de um projeto de lei voltado contra a Parada LGBTQIA+. Por isso, a utilização da expressão “ou de qualquer evento público que tenha cunho de exibição de cenas eróticas e/ou pornográficas, incentivo às drogas e intolerância religiosa no Município de Betim” é uma tentativa de escamotear o verdadeiro objeto: um projeto de Lei voltado contra a população LGBTQIA+.
Cabe já de início destacar a formalização explícita de preconceito contra a Parada do Orgulho LGBTQIA+. O autor do projeto acredita que o referido evento seria um desfile público cujo objetivo seria uma ode ao sexo e à pornografia.
A Parada do Orgulho LGBTQIA+ é simplesmente uma das maiores manifestações populares de caráter político-social do Brasil que ocorre em muitas cidades há décadas. Trata-se de um evento político-social cujo objetivo é dar visibilidade ao movimento e às constantes lutas por direito à diversidade das mais diversas minorias sexuais, de gênero, etc. A afirmação do orgulho “por ser quem se é” tem sido fundamental para que os membros daquela minoria possam ser e existir publicamente, e, justamente por estarem nas ruas, mostrando para outrem quem são, há ali um potencial de desnaturalização de preconceitos e ideias pré-concebidas – como aquelas que alimentam o PL. Tal evento se tornou, pouco a pouco, um patrimônio cultural do país.
O projeto supracitado é claramente inconstitucional. Em primeiro lugar – e já deveria ter sido objeto de análise da CCJ da Câmara de Betim – há uma inconstitucionalidade formal por atentar contra a competência privativa da União para legislar sobre direito civil, nos termos do art. 22, inc. I da CR/88. Explicamos: ao proibir a participação de crianças e adolescentes em evento público que ocorre durante o dia e que não tem o cunho de ser uma festa onde se praticam atos sexuais ou a exibição de pornografia, drogas, etc., assim como estabelecer a obrigação dos pais em impedir a ausência de crianças e adolescentes, acaba por se imiscuir no poder familiar, isto é, o dever-poder que têm ambos os pais de dirigir a educação e a criação de seus filhos, nos moldes do art. 1.634, inc. I do CC. Legislar sobre tais questões é, pois, de competência privativa da União.
Sem embargo da inconstitucionalidade formal, há gritantes inconstitucionalidades materiais no projeto de lei. A primeira delas, na esteira do quanto afirmado acima, o poder familiar é a pedra de toque para assegurar o desenvolvimento das famílias em suas mais diversas estruturas e também a proteção integral à criança e ao adolescente que decorre do art. 227 da CR/88 disciplinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90). Na medida em que o projeto proíbe os pais de levarem crianças e adolescentes a um evento público, sem que se considere concretamente sua inadequação por faixa etária e as razões e tendo em vista que o art. 75 e parágrafo único possibilita que crianças e adolescentes possam ter acesso às diversões públicas de acordo com sua faixa etária (apenas disciplinando que menores de 10 anos de idade devem estar acompanhados dos pais/responsáveis), se imiscui no dever familiar que têm os pais de zelar e cuidar de seus filhos.
Mais do que isso, imaginemos a situação esdrúxula: os pais que quiserem participar do evento deverão deixar seus próprios filhos em casa. Ora, é bom lembrarmos que não só os pais têm deveres em relação a seus filhos, mas também as crianças e os adolescentes têm absoluta prioridade em termos de cuidado, de proteção e de educação em razão da sua vulnerabilidade e visando ao seu pleno desenvolvimento como pessoas e cidadãos numa democracia constitucional, seja da família, do Estado ou da sociedade, na garantia de satisfação e concretização de direitos fundamentais.
Nesse caso, a proibição ofende de forma frontal a liberdade das crianças e adolescentes, direito fundamental previsto no art. 227 da CR/88 nas seguintes dimensões: a) em primeiro, a liberdade de locomoção ou de ir e vir, sobretudo em espaços públicos (art. 16, inc. I do ECA). Ao simplesmente proibir a entrada de crianças e adolescentes em tal evento, há um cerceamento da liberdade de ir e vir e estar em logradouros públicos; b) em segundo, a liberdade de manifestação e de opinião (art. 16, inc. II do ECA), já que tal evento é nada mais do que o exercício desse direito por parte da população LGBTQIA+ e de quem mais quiser participar; c) liberdade de participar da vida comunitária e política, sem discriminação (art. 16, inc. V e VI do ECA).
Veja-se que o projeto ofende, sobretudo, os filhos dos pais pertencentes à minoria LGBTQIA+, uma vez que impede que os filhos possam participar juntamente com seus pais desse evento político-social. Há uma grave e direta intromissão na relação entre pais e filhos, sobretudo da população LGBTQIA+. Há um impedimento para que, ao menos no momento do evento, pais possam conviver com seus filhos. É bom lembrar que se trata de um momento além de político, festivo e de alegria. Não há nada mais desumano do que impedir que qualquer dos pais partilhem momentos de alegria com seus filhos.
A essa altura do breve texto parece ter ficado claro o caráter discriminatório do projeto. Desconsidera que a Constituição alberga, no art. 226, §4º, a pluralidade das entidades familiares, cujo liame que as formam é o afeto.
E é importante relembrar que não há uma única forma de afeto, nem de sexualidade. O projeto faz crer que as únicas formas de afeto e de sexualidade socialmente reconhecidas é a heteroafetiva e heterossexual. Que as manifestações de afeto que não sejam hetero são formas “pornográficas” (sic), gerando “sexualização precoce” (sic) nas crianças e adolescentes.
As crianças e adolescentes que são filhos de pais pertencentes à população LGBTQIA+ não podem manifestar afeto? Qual a diferença, para a criança e o adolescente, entre o afeto hetero e não hetero? Não é o amor e o cuidado que os pais destinam às crianças e aos adolescentes o que realmente importa e os fazem ter um desenvolvimento sadio?
A justificativa do projeto crê que não. Que expor crianças e adolescentes ao afeto de pessoas LGBTQIA+ irá ocasionar problemas de ordem psicológica, emocional e social.
Ao partir do suposto de que, por ser um evento organizado e frequentado por pessoas LGBTQIA+, logo, envolveria pornografia, drogas, ataques a religiões, etc., o que há, aqui, claramente, é a repetição de um estigma que acompanha a LGBT+fobia desde sempre, qual seja, a associação daquela minoria à hipersexualização, drogas, etc.; em poucas palavras, ao desvio da “normalidade” e à “depravação moral”. É dizer, “nada de novo sob o sol”, mas apenas a velha “falácia do espantalho” para reforçar pânicos morais. A desculpa de se “proteger as crianças/adolescentes” serve apenas para mal esconder atitudes que o Supremo Tribunal Federal já declarou serem espécie de racismo, ao julgar a ADO n. 26 e o MI n. 4.733. Ou seja, não se está aqui “apenas” discutindo inconstitucionalidades, mas possível prática de crime.
Enfim, são esses os fundamentos LGBT+fóbicos e discriminatórios que motivam o projeto de lei. No fundo, um projeto contra o direito à igualdade e o respeito à diversidade, que deve ser rechaçado. Acaso o projeto aprovado e sancionado, a lei deve ser julgada inconstitucional, seja por ADI no âmbito do TJMG ou por ADPF diretamente no STF.
Enquanto fechávamos o presente artigo para publicação, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais por meio da Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação expediu a Recomendação 01/2023 atestando todas as inconstitucionalidades apontadas acima para recomendar ao Prefeito Municipal de Betim, Vittorio Medioli, o exercício da sua atribuição constitucional de veto ao projeto de lei por sua manifesta inconstitucionalidade.
Notas e referências
[1] Texto do projeto e tramitação disponível em: https://legislativo.camarabetim.mg.gov.br/Materia/DadosMateria/47479?tabSelected=1, acesso em 17 de julho de 2023.
[2] Parecer disponível em: https://legislativo.camarabetim.mg.gov.br/Materia/DadosMateria/47598?tabSelected=1, acesso em 17 de julho de 2023.
[3] Parecer disponível em: https://legislativo.camarabetim.mg.gov.br/Materia/DadosMateria/47731?tabSelected=1, acesso em 17 de julho de 2023.
Imagem Ilustrativa do Post: Parada do Orgulho LGBT na UnB // Foto de: Universidade de Brasília // Sem alterações
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