O Processo Penal do Espetáculo no contexto de pandemia e as fissuras legais do Júri Virtual

09/07/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

“Diante desse cenário de risco total em que o processo penal se insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias mínimas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mais sim assumir os riscos e definir uma pauta de garantias formais das quais não podemos abrir mão. É partir da premissa de que a garantia está na forma do instrumento jurídico e que, no processo penal, adquire contorno de limitação ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo.” (LOPES, 2018)

O espetáculo estava para acontecer. Prepararam as cortinas, elaboraram o roteiro. Como nos tempos dos “suplícios”, historicamente registrados por FOUCAULT (1999), o público aguardava efusivamente mais uma distração. Diziam: a partir de agora “muito mais pessoas poderão assistir a sessão”. Tudo estava posto sem anuência alguma dos(as) autores(as) principais daquela sessão: os(as) verdadeiros(as) juízes(ízas) da causa e os(as) réus(és), protagonistas daquela cena. E mais, haviam ignorado que o veredicto final daquele espetáculo tinha um destinatário, o “outsider” (BECKER,2019), que não seria convidado para aquele espetáculo.

Esse contexto de espetacularização do processo penal em detrimento do sujeito de direitos, já vem há muito sendo denunciado por Rubens Casara na obra Processo Penal do Espetáculo (2018):

O enredo do ‘julgamento penal” é uma falsificação da realidade, uma representação social distante da complexidade do fato posto à apreciação do Poder Judiciário. Em apartada síntese, o fato é descontextualizado, redefinido, adquire tons sensacionalistas e passa a ser apresentado, em uma perspectiva maniqueísta, como uma luta entre o bem e o mal, entre os mocinhos e os bandidos. O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser a consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica o sujeito, o “vilão” escolhido para o espetáculo.

Era esse o cenário do enredo montado para realização das sessões do Júri durante o período de pandemia, por meio de uma proposta de resolução do CNJ, que trazia em seus principais artigos (2º, §3º e 11, §1º) o seguinte: 

"os representantes do Ministério Público e da Defesa, bem como o réu, se estiver solto, poderão optar entre comparecer pessoalmente à sessão de julgamento ou virtualmente por videoconferência, devendo, em qualquer caso, providenciar os equipamentos e a rede de internet necessários à sua participação”

“No caso de réu preso, ele deverá acompanhar o seu julgamento pelo sistema de videoconferência, em sala própria no estabelecimento prisional onde se encontrar.”

A minuta de resolução que, felizmente, teve sua votação sustada em razão das vozes oponentes trazia a realização do júri sem a presença de réu preso, facultando-se o comparecimento da Defesa, do Ministério Público, do réu solto, das testemunhas e da vítima. A obrigatoriedade de comparecimento ficou restrita a alguns sujeitos, destaque especial merece a obrigatoriedade de comparecimento dos jurados, que sob a ótica processual encontra razoabilidade – considerando a impraticabilidade de um júri com ausência física dos(as) julgadores(as) da causa – contudo, é fator indispensável considerar a implicação humanitária advinda dessa obrigatoriedade ao cidadão, requerendo a análise pormenorizada do ônus àquele que presta um serviço público relevante[1] na atual conjuntura, bem como a observância da contrapartida Estatal nas garantias desses indivíduos, conforme será exposto a seguir.

A partir desse panorama, serão tecidas algumas considerações acerca da minuta de resolução que regulamenta a realização do júri instrumentalizado pela videoconferência.

     

1. A INCONSTITUCIONALIDADE DA MINUTA DE RESOLUÇÃO ELABORADA PELO CNJ

1.1 A IMPOSSIBILIDADE DE OITIVA DE RÉU E TESTEMUNHAS POR VIDEOCONFERÊNCIA:

Nenhum direito a menos

Não podemos negociar

O direito de presença é salutar

A defesa está a falar

Inicialmente, antes de adentrar propriamente nas consequências de ordem prática que maculam a realização do ato em comento, é preciso ultrapassar problemas de ordem normativa. Porquanto, embora a situação de pandemia suscite um contexto legal de excepcionalidade (conforme argumentações de algumas defesas), é inadmissível que tal contexto seja utilizado para justificar a flexibilização de normas de cunho constitucional por atos normativos hierarquicamente inferiores, sob pena de afronta ao próprio Estado Democrático de Direito.

Não se pode conceber que em uma ordem democrática, ainda que em um período de pandemia, seja editada uma resolução exclusivamente pelo Poder Judiciário – que não é eleito pelo povo – que venha a regulamentar normas de ordem processual penal, sem que haja discussão entre os atores envolvidos e afetados pela problemática.

A temática de reserva legal nesse aspecto, inclusive, já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 88.914, ocasião em que fora acolhida por unanimidade a tese de inadmissibilidade de interrogatório por videoconferência por ausência de previsão legal, decretando-se nulo o interrogatório realizado antes da edição da Lei nº 11.900/2009. No mesmo sentido, restou consignado no HC nº 90.900 que somente Lei Federal pode regulamentar matéria processual.

A matéria também foi tratada pelo Superior Tribunal de Justiça na decisão do HC 98.422-SP, sendo declarada a nulidade do interrogatório realizado por videoconferência, em virtude da ausência de previsão legal no momento da sua realização, e por entender que violava o direito à ampla defesa previsto constitucionalmente.

Nesse caso, é preciso lembrar o óbvio: normas de matéria processual são reservadas à lei em sentido estrito e são de competência legislativa exclusiva da União[2]. O Código de Processo Penal, em seu artigo 185, traz hipóteses taxativas nas quais são admitidas no curso de um processo penal a oitiva do réu por videoconferência, e em momento nenhum possibilitou ou deu margem para alguma interpretação que autorizasse a realização dessa oitiva no plenário do júri. Tal hipótese sequer poderia ser aventada mediante medida provisória[3], o que nos faz concluir pela impossibilidade de criá-la por meio de ato administrativo.

 

1.2 A IMPOSSIBILIDADE DE COMUNICAÇÕES POR ATO PROCESSUAL

Ainda sobre a preservação do aspecto formal estabelecido pela legislação pátria, merecem análise os atos de comunicações processuais, que igualmente impedem hipótese ampliativa por meio de ato normativo infralegal, sob pena de fragilizar a harmonia da técnica processual e das garantias constitucionais.

“Comunicações processuais” são atos jurídicos que geram efeitos entre as partes,  não podendo ser tratados como atos meramente procedimentais, nem tampouco ser regulamentadas por ato de caráter administrativo, vale dizer: não se pode permitir a comunicação de atos processuais, tais como intimações, por meio virtual quando estamos tratando de matéria que implique efeitos na relação processual penal.

Nesses termos, a realização do Tribunal do Júri, da forma como foi proposta na minuta de Resolução do CNJ já violaria, no mínimo, os artigos 185, 351 e seguintes, e 432 e seguintes, todos do Código de Processo Penal, confrontando o papel do Poder Judiciário de guardião de normas processuais e constitucionais.

Com efeito, ainda que ultrapassados todos os obstáculos legais e constitucionais que se apresentam à espécie, sob o fundamento de tratar-se de uma situação imprevista e emergencial de pandemia, há impossibilidades de ordem processual, prática e estrutural que, por ora, não têm solução legal, sobre as quais discorreremos adiante.

 

2. A INDEVIDA DISTINÇÃO ENTRE RÉUS SOLTOS E RÉUS PRESOS:

Nenhum direito a menos

As grades da prisão estão a falar

Se esse projeto se consolidar

Pretos, pobres, esgualepados

São eles que irão pagar

A proposta de elaboração do plenário semivirtual, ou com apoio de videoconferência, como alguns preferem denominar, estabelece uma clara distinção no tratamento oferecido ao réu solto e ao réu preso (artigo 11, e seus parágrafos), expondo de forma expressiva aos jurados a situação de prisão dos réus que respondem ao processo sob custódia do Estado. Ressalte-se que essa exposição aos jurados vinculada à simbologia que remeta à situação de cárcere já foi objeto de discussão e vedada pelo Superior Tribunal de Justiça no RMS 60.575, oportunidade em que afirmou o direito de os réus apresentarem-se em plenário trajando suas roupas civis, uma vez que entendimento em sentido diverso fulminaria os princípios da não culpabilidade, da plenitude de defesa e da presunção de inocência.

A motivação da referida decisão evidenciou que a apresentação do réu preso pode influir indevidamente no ânimo dos jurados, afetando-lhe a íntima convicção, e que qualquer impedimento de apresentação do réu preso tal qual é apresentado o réu solto, sem algemas e com roupas civis, constituiria uma afronta à plenitude de defesa, princípio ínsito à instituição do Tribunal do Júri.

Ora, se não há possibilidade de o réu apresentar-se com uniformes prisionais, porque esses representam a massa encarcerada brasileira, dado o grau de influência que essa forma simbólica exerce sobre os jurados, resulta inconteste a flagrante ofensa aos princípios supramencionados ao permitir a oitiva do réu de dentro do próprio estabelecimento prisional, local que reúne todos os condenados que carregam a pecha de culpados atribuída pelo Estado. Se o juízo já considera aquela pessoa perigosa o suficiente para não conviver em sociedade, mantendo-a encarcerada, quem será o jurado que ousará entender diferente e permitir sua absolvição? Eis a grande pedra de toque que levou o STJ a apreciar a questão sob o manto da possibilidade de vestimentas civis naquela decisão. Essa é a mesma razão de decidir que impede a distinção realizada pela retomada dos plenários na forma como consta na referida resolução.

Além disso, há nessa resolução uma clara afronta ao denominado direito de presença extraído do art. 5º, inciso LV da Constituição, do art. 457, § 2º do Código de Processo Penal. Tal direito também encontra-se presente no art. 8.2, d, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que preceitua que é direito do acusado “DEFENDER-SE PESSOALMENTE ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor” e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.3, d), que determina como garantia do acusado “ESTAR PRESENTE NO JULGAMENTO e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha”.

Segundo o dicionário Aurélio, “pessoalmente” significa: “sem ser através de outra pessoa, diretamente, sem intermediário, presencialmente, por si mesmo, por si próprio, corporalmente, fisicamente”.

Sendo assim, “pessoalmente” não é por meio de videochamada. É presença física e isso é incontestável, sendo inimaginável considerar que tal direito seja subtraído por meio de uma resolução.

Tamanha é a importância de tal direito que o art. 457, §2º, do Código de Processo Penal dispôs que:

Art. 457.  O julgamento não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto, do assistente ou do advogado do querelante, que tiver sido regularmente intimado.          

§ 1o Os pedidos de adiamento e as justificações de não comparecimento deverão ser, salvo comprovado motivo de força maior, previamente submetidos à apreciação do juiz presidente do Tribunal do Júri.          

§ 2o Se o acusado preso não for conduzido, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido da mesma reunião, salvo se houver pedido de dispensa de comparecimento subscrito por ele e seu defensor.   (grifamos) 

Importante consignar que não se desconhecem precedentes do STJ que permitiram a realização de plenário com apoio do sistema da videoconferência (RHC 83.318/RJ TJ, HC 497.745/BA), fundamentados de forma muito criteriosa e a partir de cada caso concreto, o que torna mais ainda evidente que o regramento jurídico é claro: a presença física do réu preso é a regra, devendo qualquer exceção ser fundamentada em casos concretos e excepcionais. Sendo assim, a dispensa no comparecimento da pessoa julgada depende de seu consentimento e do consentimento da defesa técnica, salvo raríssimas exceções que devem ser justificadas caso a caso.    

Dessa forma, o exercício da pretensão acusatória não pode ocorrer sem que haja, no mínimo, opção do réu em comparecer ou não a seu julgamento, esteja ele em situação de prisão ou não, razão pela qual também não há nenhuma sustentação na proposta da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)[4], que contrapôs a minuta de resolução do CNJ com a realização do plenário do Júri virtual em sua integralidade.

Tal raciocínio nos faz concluir que não há nenhuma razão para a retomada de júris de forma semivirtual, especialmente no que concerne aos réus que se encontram soltos. Por outro lado, em se tratando de réus que respondem aos processos encarcerados, caso haja insistência na realização, tal retomada deveria estar condicionada à faculdade de o réu comparecer ou não em plenário para prestar a sua versão dos fatos.

 

3. O DIREITO DE PRESENÇA FÍSICA DA DEFESA TÉCNICA:

Do mesmo modo que a lei presumiu prejuízo ao réu com sua ausência física em audiência, há de presumir prejuízo na ausência física da defesa técnica, agravando a violação aos direitos de defesa a previsão contida no art. 2º, §2º, da minuta de Resolução, que facultou à defesa técnica a presença física na audiência.

Para os casos em que a defesa faz parte do grupo de risco do COVID-19, há imposição indevida que afeta a paridade de armas ao se permitir que um dos polos do processo (defesa ou acusação) fique em casa, enquanto o outro comparece ao plenário.

Tal implicação traz uma consequência grave para os advogados particulares que se encontram em grupo de risco, por exemplo, que terão que escolher entre sua vida e o seu “ganha pão”. Por outro lado, em se tratando de Defensoria Pública os danos são ainda maiores, uma vez que não há possibilidade de escolha nominal de seu(sua) defensor(a) por parte do destinatário da defesa, visto que a instituição é direcionada à defesa das pessoas hipossuficientes, arcando o réu com uma defesa deficitária caso o(a) profissional que lhe foi designado opte por qualquer razão por não comparecer em plenário, não havendo possibilidade de impugnação.

Assim, caso essa minuta de resolução se concretize – o que se espera que não aconteça – não é razoável que caso a defesa opte por postergar sua atuação para momento pós pandemia, seja ela particular ou pública, eventual opção não venha a incorrer em excesso de prazo atribuído exclusivamente à defesa, devendo a prisão ser relaxada caso configurado excesso.

Além disso, surge um outro problema em razão da distância física entre o acusado e o defensor que não pode ser suprimido pela entrevista prévia por videoconferência ou telefone, que por si só já é problemática. Isso porque é decorrência dos direitos de presença e da plenitude de defesa que o réu pode sugerir perguntas e apontamentos a serem realizadas pela sua defesa durante os debates, eis que a pessoa acusada, mais do que ninguém, dispõe de informações que podem ser decisivas para comprovação de sua inocência

Assim, a oitiva do réu por videoconferência, evidentemente, furta essa possibilidade de participação ativa no debate, que permite oportunidades reais e efetivas de apresentar elementos que apontem para uma outra versão dos fatos. Suprimir esse direito é assumir uma defesa deficitária e o prejuízo poderá ser irreparável.

 

4. A IMPOSSIBILIDADE DE AUDIÊNCIA EM CONTINUAÇÃO DADA AS PARTICULARIDADES DO PLENÁRIO DO JÚRI

Outra questão inafastável são as limitações de comunicações decorrentes do uso da tecnologia, tais como queda de sinal, ruído na comunicação e até bloqueio na internet das várias pessoas envolvidas na comunicação virtual, como é o caso do próprio juízo e das pessoas que desejem exercer seu ofício em suas casas.

Como se sabe, a defesa no Tribunal do Júri guarda particularidades que tornam o plenário algo singular, tanto que muitas vezes a defesa opta, como estratégia defensiva, por dispor de teses tão somente durante o plenário. Tal prática, inclusive, é corolário do princípio da plenitude de defesa, afeto tão somente ao Tribunal do Júri.

Sendo assim, quaisquer problemas de conexão de rede após a exposição da tese defensiva, tornando impossível a continuação do julgamento, pode significar o adiantamento para a acusação de estratégia defensiva inédita, comprometendo toda a defesa, com prejuízo dificilmente recuperável, o que nos faz concluir pela impossibilidade de realização da sessão sem a presença também da acusação.

 

5. A IMPOSSIBILIDADE DE INCOMUNICABILIDADE DOS JURADOS

Outra questão que não pode ser ignorada é a garantia da incomunicabilidade entre jurados com o sorteio em suas residências. Isso porque a previsão legal do art. 466 do CPP não deixa dúvidas: a incomunicabilidade começa quando é realizado o sorteio dos jurados. Senão, vejamos: “O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código”.

Em tempos de comunicação fluida e instantânea, que supera distâncias físicas, quem garante que entre o sorteio e a sessão não haverá combinação de votos entre os(as) jurados(as) sorteado(as)?

Outrossim, em tempos que provavelmente todos(as) os(as) jurados(as) têm a sua disposição um telefone celular com acesso à internet e uma gama de informações de toda espécie, incluindo aí matérias jornalísticas de cunho sensacionalistas que maculam frontalmente a presunção de inocência de qualquer cidadão em razão da consagrada liberdade de imprensa, é demais temário imaginar que entre o sorteio e a chegada no fórum possam os jurados pesquisar informações a respeito do caso ali julgado, influenciando-lhes a formar sua convicção com base no que a internet põe como informação.

 

6. A INCOMUNICABILIDADE DAS TESTEMUNHAS E VÍTIMA:

Outro ponto que merece ser refutado, por questões óbvias, é a possibilidade de participação remota das testemunhas e vítima para oitiva (art. 2°, § 2º, da Resolução).

Além das dificuldades naturais de identificação dessas pessoas por videoconferência, não há como garantir que haja incomunicabilidade entre elas, uma vez que mesmo estando em locais diversos, é perfeitamente possível a comunicação em rede entre si durante todo o procedimento.

Do mesmo modo, e ainda mais preocupante, é que não há como garantir que a testemunha não venha a ser coagida ou ameaçada durante sua fala a dizer algo diferente do que deseja, comprometendo, evidentemente, além da sua segurança, a proteção ao célebre princípio da “busca pela verdade”, que permeia o processo penal.

A problemática exposta se eleva sobremaneira se houver a disponibilização de link com a transmissão ao vivo da sessão de plenário para acesso ao público em geral, podendo as partes alinharem seus depoimentos conforme as perguntas e respostas de cada uma.

 

7. DA PREJUDICIALIDADE NA REINQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS.

 Ainda, como parte dos impedimentos para oitiva de testemunhas de forma remota, temos um obstáculo na concretização do art. 476, § 4º do CPP, que possibilita a reinquirição de testemunhas já ouvidas em plenário na ocasião da tréplica e réplica.

Isso porque, muitas vezes, a necessidade de reinquirição dessas pessoas surge justamente em razão das falas proferidas em plenário. Sendo assim, estando as testemunhas em suas residências, não há como garantir a incomunicabilidade entre elas durante o lapso temporal que vai entre sua oitiva e a sua reinquirição. Não há, dessa forma, como chancelar com tal forma de inquirição.

 

8. A PREJUDICIALIDADE NA ANÁLISE DA NARRATIVA DA VÍTIMA, TESTEMUNHAS E RÉU

A par de todos os fundamentos processuais já mencionados, tais como a possibilidade de comunicação virtual entre vítima e testemunhas, bem como a possibilidade de coação ou ameaça no momento de sua fala, tem-se outro óbice que não foi considerado na ocasião de elaboração da minuta da contestada resolução.

Eis que, em razão da plenitude de defesa, a defesa em plenário tem a possibilidade de lançar mão de inúmeros elementos que permitem contribuir com a elucidação da veracidade dos depoimentos ali prestados.

 Os profissionais que militam no Júri têm a compreensão que a utilização de elementos de linguagem corporal pode ser decisiva na elucidação da verdade dos fatos. Tais elementos passam pela experiência sensorial, que é única para cada jurado(a) e, não raras vezes, determinante para obtenção do édito absolutório.

Toda essa gama de aparelhamento cognitivo resta incompleta e prejudicada com a transmissibilidade do depoimento por meio audiovisual, que capta tão somente parte do corpo (já que na minuta não há nada em sentido diverso) e ainda que viesse a captar o corpo inteiro, certamente as limitações dessa filmagem – que dependerá de fatores como qualidade da câmara, qualidade do ângulo filmado –, dificultam a captação de expressões faciais e corporais em sua integralidade.

 

9. OS PROBLEMAS DE ORDEM ESTRUTURAL E DO RISCO IMPOSTO AS PESSOAS QUE ESTARÃO PRESENTES

Com o devido respeito, ainda que praticado de forma semipresencial, como encontra-se disciplinado na referida minuta de resolução, a formação do plenário do júri depende da presença de um número considerável de pessoas, tais como funcionários da justiça, pessoas envolvidas na limpeza do ambiente, membros da segurança pública, jurados e juradas, além daquelas pessoas a quem for facultada a presença e que desejar comparecer.

A presença dessas pessoas em um ambiente fechado, sem ventilação natural e com reais possibilidades de propagação do vírus, potencializada com a circulação de pessoas nesses espaços, é algo inadmissível e desarrazoado diante do benefício que se pretende obter com a concretização desse procedimento, sobretudo para pessoas que são obrigadas a se fazerem presentes sem receberem qualquer contrapartida do Estado, sem que haja sequer a disponibilização de vacina para elas.

 

10. A VULNERABILIDADE DIGITAL DAS PESSOAS NATURALMENTE ENVOLVIDAS NO PROCESSO PENAL, ESPECIALMENTE AS PESSOAS DEFENDIDAS PELA DEFENSORIA PÚBLICA:

Há ainda um outro obstáculo, intransponível pela atual conjuntura social de nosso país, que não pode ser ignorado especialmente no que diz respeito à atuação da Defensoria Pública no Processo Penal: o público-alvo da Defensoria Pública é formado, quase que em sua totalidade, por pessoas carentes de recursos econômicos, que concentram em si uma gama de vulnerabilidades relacionadas à questão da hipossuficiência, com destaque, nesse caso, à vulnerabilidade digital.

O contexto de pandemia nos revelou um dado até então invisível: segundo o último censo do IBGE, 46 (quarenta e seis) milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso à internet[5]. São pessoas que em virtude das diversas dificuldades não possuem recursos financeiros para aquisição de equipamentos tecnológicos que possibilitem o acesso, nem mesmo condições de custear o próprio serviço de internet.

Outros tantos que possuem não têm equipamento de qualidade que permitam uma adequada transmissão de som e imagem, tampouco um serviço de Internet qualidade que permita uma comunicação sem oscilações.

São essas pessoas que servirão à justiça na qualidade de testemunha e réus nos processos penais, sobretudo por estarem de alguma forma ligadas aos que são comumente julgados em plenários do Júri, aqueles que são alvo dos processos de criminalização estável, a nata seletividade penal: as pessoas carentes de recursos financeiros. A faculdade de comparecimento para essas pessoas é algo tão distópico para elas quanto temerário para o processo.

11. O DESVIO ÉTICO NA VERTICALIZAÇÃO ESTABELECIDA NA RELAÇÃO ENTRE OS ATORES DO SISTEMA DE SISTEMA

Quem faz o controle dos corpos?

Na lógica do biopoder?

Nenhum direito a menos

Não vamos permitir, vocês vão ver

Por fim, a realização do plenário semivirtual ou “com apoio da videoconferência” como preferem algumas pessoas, traz um problema ético irremediável que, por si só, deve impedir a realização do plenário virtual: eis que ao facultar a presença do Ministério Público, Defesa Técnica, Réu, vítima e testemunhas, e colocar como imposição a presença dos servidores da justiça, sobretudo dos jurados que nada recebem para tanto – faz uma valoração indevida de vidas.

Ainda que haja um esforço no sentido de excluir da lista de jurados(as) pessoas que façam parte do grupo de risco, o cenário de pandemia é algo novo do qual ninguém pode sair, de certeza, imune. Para além, muitos jurados que não fazem parte do grupo de risco podem conviver com pessoas que dele façam parte, e a exposição indevida ao vírus pode ser para elas fatal, situação em que não haverá indenização que pague o preço de uma vida perdida em nome da celeridade processual.

12 CELERIDADE X PLENITUDE DE DEFESA - UMA ANÁLISE A PARTIR DO CASO RUANO TORRES E OUTROS Vs. DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 

Não se ignoram as preocupações ocasionadas pelo contexto de crise do COVID-19 em razão da paralisação parcial das atividades judiciais e a preocupação legítima do sistema judiciário com a retomada das atividades forenses, mormente em obediência ao princípio da celeridade, único pilar de fundamento para a realização de plenário do júri nos termos propostos pela referida minuta de resolução.

Não obstante, temos clara a posição a respeito da necessidade de se fazer uma ponderação de valores entre os princípios que norteiam a realização do Tribunal do Júri, buscando-se a máxima otimização de cada um desses princípios, evitando-se o seu sacrifício integral, para que se atinja ao máximo possível a vontade constitucional. É o que se pretende propor aqui.

A instituição do Tribunal do Júri é orientada, desde a sua redação originária, por quatro princípios (art. 5º, inciso XXXVIII): a plenitude da defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência mínima para julgamentos dos crimes dolosos contra a vida.

Todos esses princípios servem ao processo penal como freio ao excesso punitivo do Estado, principalmente quando estamos diante de crimes tão complexos, como os praticados contra a vida, que possibilitam a aplicação das maiores sanções penais por parte do Estado juiz. A razão dessa complexidade trouxe ao exercício da pretensão acusatória um obstáculo: a plenitude de defesa.

Foi pensando em dar mais eficácia ainda a algibeira normativo legal brasileira, que o constituinte derivado trouxe para o ordenamento jurídico constitucional, mediante emenda (EC 45/04), o princípio que se quer proteger com essa pretensa resolução: o princípio da celeridade (art. 5º, inciso LXXVII), trazendo para o ordenamento jurídico brasileiro um ponto de intersecção para equilibrar a aplicação de uma prestação jurisdicional célere e capaz de promover a pacificação social. Certamente, a proposta constitucional veio no intuito de se harmonizar com a aplicação de tudo que já existia no ordenamento jurídico brasileiro, jamais se sobrepor a nenhuma outra norma principiológica.

Nessa toada, qualquer interpretação que visa dar efetividade ao princípio da celeridade não pode, jamais, ser dissociada do princípio da plenitude de defesa, que  comporta o direito de audiência (presença), participação (LOPES, JUNIOR, 2005), o direito de informação e reação (DINAMARCO, 2005),  todos eles dependentes de um conjunto de linguagens que só se concretizam com a dinâmica da comunicação presencial perfectibilizando uma defesa diligente, efetiva e com reais possibilidades de refutar a acusação, como já relatado exaustivamente nos tópicos anteriores.

A violação aos direitos de defesa a partir do que vem disciplinado na questionada proposta de resolução do CNJ, pode, inclusive, ensejar condenação do Estado Brasileiro a nível internacional. Nesse sentido, tem-se o precedente do Ruano Torres e outro vs. El Salvador,  oportunidade em aquele órgão deixou consignado que a pessoa acusada no processo penal deve ser tratada com sujeito de direitos, e não como objeto do processo, devendo o Estado-nação garantir condições para o exercício regular tanto da defesa técnica, como da defesa pessoal, o que obviamente não pode ser garantido com a realização do júri a partir da proposta de resolução aqui questionada.

Na ocasião, a Corte entendeu necessário que “a defesa pública seja dotada de garantias suficientes para sua atuação eficiente e em igualdade de armas com o poder acusatório”, não podendo se constituir em uma mera “formalidade processual”. Tais direitos encontram-se previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos (arts. 8.2.d e 8.2. da CADH) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14,3,d), como já mencionado em tópico anterior e a sua violação fatalmente poderá implicar em responsabilização do Brasil a nível internacional.[6]

 Não há outra conclusão, portanto, diferente da proposta nessas breves linhas: o princípio da celeridade não pode ser compreendido de forma isolada e antagônica ao restante do texto constitucional e das normas internacionais que regem a matéria, sob pena de desfigurar a instituição do Júri em sua essência e romper com o equilíbrio do sistema processual penal, invertendo-se a lógica de todo arcabouço processual penal, criado para garantir direitos aos que sentam no banco dos réus, tornando-os meros objetos do processo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Nenhum direito a menos

Não podemos tolerar

Os números que estão a gritar

O que insistem em ignorar

Por fim, registramos que direitos e garantias individuais podem ser manipulados para servir ao processo penal, algo intangível, que tem como única finalidade conter o poder punitivo do Estado. O Processo Penal somente se legitima para garantir efetividade do sistema de garantias previsto na constituição. Caso contrário, não terá razão de existir. Nesse sentido, vale trazer a lição de Aury Lopes Jr. (2018)

O processo penal não deve ser visto como um simples instrumento ao poder punitivo (direito penal), senão pelo que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.

(...)Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (regras do devido processo legal);

Nesse sentido, a contraposta da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) é um tanto mais absurda do que a minuta de resolução do CNJ. Não se contestam nem se ignoram a todas as dificuldades ocasionadas pela pandemia do COVID-19, inclusive justificando o anseio do judiciário pela urgência de uma resposta a todo esse contexto. Cabe esclarecer, no entanto, que não se pode anuir com nenhum procedimento que venha a ferir direitos fundamentais, tampouco permitir a realização de procedimentos que inviabilizem a participação adequada de pessoas que vivem imersas em uma gama de vulnerabilidades, que sequer têm o que comer, quiçá acesso a sistemas de informática. Não é possibilitando fissuras na legislação que promoveremos uma justiça ampla e efetiva, capaz de promover a paz social.

Seguindo toda a lógica até aqui exposta, o plenário do júri somente deve acontecer se houver possibilidade concreta de realização consciente e voluntária de todos os atores envolvidos nos processos (defesa, acusação, testemunhas, jurados e membros do sistema de justiça). Nos casos em que isso não for possível, o judiciário deve atuar no sentido de evitar que pessoas continuem presas enquanto respondem seus processos, evitando-se a configuração de excesso de prazo.

Nesse sentido, cabe pontuar que apesar da paralisação de alguns atos processuais (em matéria criminal) durante o período de pandemia e da redução do superencarceramento, orientada pela Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[7], dos presos que deixaram as prisões desde março em razão da pandemia, conforme informações CNJ, apenas 2,5% voltaram para os presídios, incluídos nesse percentual aqueles que regrediram de regime por quebrar medidas impostas, tais como saída da zona domiciliar.

Tais dados rebatem os argumentos contrários ao relaxamento das prisões por excesso de prazo e às demais solturas de pessoas presas como consequência da pandemia, influenciados pela sanha dos punitivistas de plantão, que imaginariam um caos social. Do contrário, o crescimento de facções dentro dos presídios de todos os estados brasileiros sugerem um movimento oposto a esse: quanto mais prisões mais crimes.

Tal fenômeno, há muito fora estudado e documentado por Michel Foucault, na obra Vigiar e Punir que, ao observar os dados do encarceramento na França durante o século XIX, constatou que o aumento da prisão não diminuiu a taxa de criminalidade, mas, ao contrário, poderia ter aumentado, atuando, em verdade, como verdadeira “fábrica de delinquentes”(1999).

Nesse ponto de nossa democracia, em que em meio à crise pandêmica o clamor pelo direito penal torna-se ainda cada vez mais evidente, nada disso parece ter valor. Segue-se tão somente a ânsia por uma resposta punitiva em meio ao espetáculo. O(a) acusado há muito já fora amordaçado(a), algemado(a) e atado(a) ao pelourinho, como bem lembrou o Defensor Público Bheron Rocha (2016). Sigamos, então, na penumbra, de mãos dadas com o nosso livro de feitiçarias, o Código de Processo Penal (ROCHA 2016), refutando até o fim qualquer tentativa de objetificação dos(as) sujeito(as) de direito do processo. É justamente nesses momentos que devemos estar ainda mais vigilantes na preservação de direitos e garantias fundamentais.

 

Nenhum direito a menos

Não é só sobre direitos

É sobre cegueira branca

Como Saramago já escreveu

 

Já éramos cegos no momento em que cegamos

Chegamos até aqui

E nesse ponto, pronto, paramos

 

Nenhum direito a menos

Não podemos consentir

E se ninguém quer se arriscar

A palavra de ordem é SOLTAR!

 

Notas e Referências

 

CASARA, Rubens RR: Processo Penal do Espetáculo: e outros ensaios/Rubens RR Casara.- 2ed. – Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. Vol. 1.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: 20 ed. Vozes, 1999.

PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie. Jurisprudência internacional de direitos humanos. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017.

ROCHA, Jorge Bheron. O Processo Penal do Espetáculo. Interceptações telefônicas, conduções coercitivas e impeachment.

[1] Código de Processo Penal, art. 439.  O exercício efetivo da função de jurado constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade moral.  (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

[2] Art. 22, I, CF.

[3] Art. 62, §1º, “b”, CF. É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: direito penal, processual penal e processual civil.

[4] https://www.conjur.com.br/2020-jul-03/magistrados-sao-favor-sessoes-juri-videoconferencia

[5]https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet#:~:text=A%20Pesquisa%20Nacional%20por%20Amostra,n%C3%A3o%20tem%20acesso%20%C3%A0%20internet.

[6] La Corte estima que la responsabilidad internacional del Estado puede verse comprometida, además, por la respuesta brindada a través de los órganos judiciales respecto a las actuaciones u omisiones imputables a la defensa pública. Si es evidente que la defensa pública actuó sin la diligencia debida, recae sobre las autoridades judiciales un deber de tutela o control. Ciertamente, la función judicial debe vigilar que el derecho a la defensa no se torne ilusorio a través de una asistencia jurídica ineficaz. En esta línea, resulta esencial la función de resguardo del debido proceso que deben ejercer las autoridades judiciales. Tal deber de tutela o de control ha sido reconocido por tribunales de nuestro continente que han invalidado procesos cuando resulta patente una falla en la actuación de la defensa técnica.  (Trecho da decisão).

[7]https://www.cnj.jus.br/judiciario-registra-baixos-indices-de-reentrada-de-pessoas-soltas-em-razao-da-pandemia/

 

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