O processo penal democrático e o direito à privacidade mental: é possível buscar a “verdade” perdida na mente?

15/05/2016

Por França Júnior - 15/05/2016

Pilar Cebrián foi morta em abril de 2012. A desafortunada dona de casa, diz a investigação, teria sido esquartejada e espalhada por lugares até então desconhecidos. O fato ocorreu na comunidade autônoma de Aragón, na Espanha, mais propriamente em Zaragoza. Ela era esposa de Antonio Losilla, apontado como o principal suspeito, contra quem se moveu a investigação criminal. Ao final da fase preliminar da persecução, mesmo com a negativa da autoria, mas com versões contraditórias sobre o desaparecimento da esposa, os investigadores alegaram não ter dúvidas, prendendo e apontando Losilla como seu algoz. Submetido a julgamento, acabou por receber uma pena de 14 anos de prisão. Ocorre que, o caso despertou interesse da comunidade científico-jurídica europeia pelo fato de os investigadores terem se utilizado, contra a vontade do investigado, de um meio de prova, no mínimo, inabitual: o P-300.

No entanto, antes de melhor conhecê-lo, cumpre-nos destacar que a busca pelo convencimento judicial sempre foi um dos pontos mais complexos e discutidos da história moderna do processo penal. Tentar construir um ambiente comunicativo e de relativa harmonia entre o livre convencimento, os ideais de verdade e de certeza, bem como a forma para alcança-los, sempre esteve presente no contexto evolutivo do processo penal como uma das maiores ambições dos processualistas democráticos. No atual estágio da discussão, o que se pode afirmar com relativa segurança é que a confissão expressa do investigado, outrora rainha absoluta das provas, se não perdeu sua coroa, tem de vê-la ser dividida com as inúmeras vertentes probatórias científicas em voga, estas, por consequência, tendencialmente mais valorizadas por seguirem regras cada vez mais “assépticas” sob o ponto de vista ideológico.[1]

Assim, na lida forense, o que se sabe é que uma prova revestida de caráter científico goza inegavelmente de um “valor reforçado”, seja num processo penal ou não. Vejam-se, por exemplo, os exames de paternidade (ou maternidade), nos processos cíveis. Nesse sentido, passando ao largo das discussões (tão importantes quanto) sobre a falibilidade dos métodos científicos, diante de um meio de prova como o P-300, dois questionamentos básicos precisam ser feitos: 1º) Tem alguma validade científica? 2º) Será admissível no nosso ordenamento jurídico brasileiro? Sobre o primeiro questionamento, que negligenciaremos propositalmente por conta do tempo e do espaço que nos são escassos, seria preciso, a priori, sabermos se, de fato, trata-se de um método científico, se existem publicações e divulgações de eventuais taxas de erro, se já existem regras e protocolos para operacionaliza-lo e se genericamente o mesmo é aceito pela comunidade científica.

Partiremos do pressuposto (trata-se apenas de uma hipótese) de que o primeiro questionamento tenha recebido uma resposta afirmativa, logo, é de se questionar: seria o P-300 admissível no ordenamento jurídico brasileiro? Afinal, no que consiste esse método? Passemo-lo em revista: consiste em submeter o investigado a uma espécie de máquina, com eletrodos de superfície no couro cabeludo, que lhe tirará uma espécie de “impressão mental”. Grosso modo, estimula-se o cérebro exibindo-se imagens, geralmente da cena do suposto crime ou de objetos colhidos no local, para que se possam medir as ondas elétricas que são emitidas, ou seja, capturam-se as reações elétricas do cérebro diante das informações que lhes são prestadas durante o interrogatório. Com a análise daquela coleta seria possível, por exemplo, constatar se aquela informação dada era nova ou se o investigado já a conhecia. É, pois, uma espécie de “teste da verdade”, parecido com o polígrafo, mas ao contrário deste, não mede variáveis fisiológicas, como níveis de ansiedade e estresse, o que lhe garantiria maior grau de segurança, pois praticamente insuscetível de falseamento a emissão das ondas elétricas pelo cérebro naquelas circunstâncias.

Ainda há muitas dúvidas sobre a utilidade e validade do P-300 em matéria de investigação criminal, sobretudo nos casos de falsas memórias, assunto este cuja literatura jurídica e neurológica atualmente é cada vez mais vasta.[2] Outros métodos científicos parecidos, também voltados para o cérebro, como o uso da ressonância magnética, já estão em desenvolvimento ao redor do mundo, especialmente nos Estados Unidos (brain fingerprinting). No caso que nos serve de parâmetro, a utilização do exame no investigado se dá quando ele se nega taxativamente a colaborar com as autoridades, o que, por regra, não lhe deveria pesar, pois age assim nos estritos limites do nemo tenetur se ipsum acusare. Ou seja, mesmo resguardando-se ao silêncio, apegando-se ao ideal democrático de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, a utilização de exames como o P-300 teria o condão de proporcionar uma eventual confissão. Teríamos, portanto, uma espécie de declaração colhida do investigado que optou por permanecer em silêncio durante a investigação.

Ao chegarmos até aqui, antes de sucintamente respondermos a indagação há pouco feita (é isso juridicamente admissível?), cumpre salientar que a abordagem problematizada acima não é originalmente nossa. Nesse passo, obriga-nos nossa consciência a esclarecer que a mesma pertence à Doutora Susana Aires de Sousa, professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal, e que nos dá a honra da orientação no curso de Mestrado. A ideia de analisar as implicações jurídicas da utilização de métodos como o P-300 foi levada a cabo no dia 11 de março de 2016, na sala 7 da já mencionada faculdade, contando com as presenças do jubilado Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias e da Professora Doutora Maria João Antunes. Naquela oportunidade, no intervalo de 1 hora, a professora, sob a perspectiva do ordenamento português, apresentou-nos sua análise jurídica do tema “os novos métodos neurocientíficos e o processo penal: em busca da ‘verdade’ perdida (na mente)?”. Assim, voltando ao curso planejado, a complexidade das circunstâncias apresentadas é flagrante.

Como lidar com um método que, mesmo não sendo invasivo fisicamente, consegue retirar do investigado aquilo o que ele se negou (justo porque não era obrigado) a fornecer? Nossa perspectiva sobre o tema passa necessariamente pela ideia que nutrimos sobre a natureza dos direitos humanos. Tal como Norberto Bobbio[3], defendemos que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Os novos métodos científicos, tais como os que hoje invadem a investigação criminal, numa espécie de “efeito CSI”, trazem-nos novas exigências frente às liberdades individuais, no que o filósofo italiano chamaria de “direitos de quarta geração”. O direito à privacidade mental, portanto, surgiria como resultado desse empoderamento científico do processo penal. Resta-nos saber, se o mesmo encontraria guarida, ainda que implícita, no Direito brasileiro, em especial no rol de cláusulas pétreas do Art. 5º da Constituição de 1988.

Ingo Wolfgang Sarlet[4] nos dirá que o rol do mencionado artigo, se observado a partir de seu §2º, segue uma tradição republicana, de inspiração norte-americana, traduzindo o entendimento de que “para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo”. O que nos leva a concluir, na mesma esteira do que sustenta J. J. Gomes Canotilho[5] para o Direito português, que o catálogo encontrado no Art. 5º de nossa Constituição, pela importância que possui na manutenção de um Estado Democrático de Direito, “apesar de analítico, não tem cunho taxativo”. É de se reconhecer, portanto, seguindo-se esse raciocínio, a existência de “direitos fundamentais implícitos”, sendo clara a abertura material da Constituição a respeito dos direitos individuais.

Nesse sentido, não há qualquer problema em se admitir validamente, diante das circunstâncias já apresentadas alhures, a existência de um “direito à privacidade mental” como um corolário do nemo tenetur se ipsum acusare. Logo, apesar de não proibidos expressamente, exames como o P-300, aplicados a contra gosto do investigado, teriam sim o potencial de violar estruturas implícitas importantes de um sistema acusatório[6] – como o nosso pretende ser –, comprometendo substancialmente os valores democráticos com essa desenfreada busca pela “verdade”. Se no continente europeu a utilização de tal exame, mesmo que ainda incipiente, já se apresenta como bastante discutível em contraponto com os direitos individuais, no Brasil, que tradicionalmente replica “modelos marginais”[7], todas as reservas possíveis devem ser postas, sempre na tentativa de evitar que o vício autoritário, ainda enraizado[8] e por vezes camuflado na retórica democrática, consiga se expandir.


Notas e Referências:

[1] Sobre o que se disse nesse parágrafo, como literatura para aprofundamento se recomenda: TORRES, Anamaria Campos. Natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. Do convencimento judicial o atual sistema do livre convencimento. In: SILVA, Ivan Luiz da; CARDOZO, Teodomiro Noronha; HIRECHE, Gamil Föppel El. Ciências criminais no século XXI – estudos em homenagem aos 180 anos da Faculdade de Direito do Recife (11.08.1827 – 11.08.2007). Recife: Editora Universitária UFPE, 2007, p. 55-76; KHALED JR., Salah Hassan. A busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013; FIDALGO, Sónia. Determinação do perfil genético como meio de prova em processo penal. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, 2006; PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas – tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 2011.

[2] ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal - a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2013.

[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 79-80.

[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992.

[6] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório – a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

[7] Não se trata de vira-latismo, tal como futebolisticamente descrito outrora pelo escritor brasileiro Nelson Rodrigues, mas do reconhecimento da realidade extremamente deficiente e seletiva no que toca ao funcionamento de nosso sistema de investigação oficial.

[8] Vejam-se as exposições de motivos de nossos códigos.


França Junior

. França Júnior é Advogado criminalista, professor de Direito Penal, mestrando em Direito pela Universidade de Coimbra, especialista em Psicologia Jurídica e em Ciências Criminais, pesquisador vinculado ao CNPQ, coordenador adjunto do laboratório do IBCCRIM em Alagoas. Contato: francajuniordireito@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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