O Processo de Kafka e o impeachment

03/05/2016

 Por Walter Gustavo da Silva Lemos – 03/05/2016

Numa das obras-primas da literatura do século XX, temos a figura da Josef K., no livro O Processo, de Franz Kafka, como um jovem bancário muito bem quisto e solícito, que apresenta ótimo desempenho na sua função e que se vê envolto numa trama de um processo em que não se sabe as razões pela qual é acusado.

O personagem acaba preso sob a acusação de ter cometido um crime, só que os fatos a ele imputados sequer são apresentados ou descritos pelas autoridades que vão se apresentando.

E assim, desde a sua prisão até a sua execução, Josef K. é posto diante de uma série de episódios onde se cobra a sua confissão e que ele demonstre a sua culpa com o crime, mesmo não tendo o acusado sequer conhecimento do que lhe é imputado.

Então, vão se passando cada vez mais personagens, de hábitos e ações bastante diferentes, caricatas e inescrupulosas, que lhe exigem sempre a mesma declaração de culpa, o que não é possível ser dado pelo personagem principal, por este não conhecer das acusações que lhe faziam.

Tais atuações vão ocorrendo, sempre de forma nebulosa e estranha, impedindo que Josef K. tome conhecimento dos motivos de sua prisão e das acusações feitas, sendo que os fatos que lhe vão imputando são dos mais diversos e que vão sempre se modificando.

Assim, o livro vai narrando as mais diversas situações derivadas das variações inconscientes do personagem e a sua incapacidade de se declarar culpado no processo, já que Josef K. é impossibilitado de promover sua defesa de forma ampla por não toma conhecimento do que lhe acusam.

Isso se dá por lhe serem tolhidos os direitos mais comezinhos descritos do processo judicial, sendo que isso é possível se ver numa passagem do livro tal situação, onde se exclama que: “De modo que os expedientes da justiça e, especialmente, o escrito de acusação eram inacessíveis para o acusado e o seu defensor, o que fazia com que não se soubesse em geral ou ao menos com precisão a quem devia se dirigir a demanda”.

Portanto, são imposto ao personagem uma série de obstáculos injustos e desumanos, impedindo-o de realizar a sua defesa e o real conhecimento dos fatos, sendo que a todo o tempo lhe pedem uma declaração de culpa, mas o ninguém pode ter acesso aos autos, justamente para que não soubesse nada esclarecedor que fornecesse subsídios para elaborar a defesa.

Assim, o livro trata da realização de um processo para que a punição do personagem por um crime que não é totalmente claro para o personagem e para os seus procuradores, onde se impõe uma série de subterfúgio para impedir que este tenha conhecimento dos fatos, não lhe dando o real direito de defesa e promovendo-se as argumentações mais estapafúrdias como causa de acusação que lhe pesa. Ao final do livro, o personagem do livro é morto, após uma das decisões promovidas no processo, quando este já passava a se resignar com todo aquelas ilegalidades que lhe eram cometidas. Josef K. acaba por sucumbir às próprias acusações infundadas que lhe são feitas, de forma que passa a acreditar que seja culpado, mesmo não sabendo do quê.

Este texto bem demonstra a necessidade do cumprimento dos fundamentos e objetivos que importam na construção de um Estado Democrático de Direito, já que a permissão do descumprimento destes direitos importam na impossibilidade da promoção da própria justiça.

Numa análise do presente tema, percebe-se que o caso de Josef K. se assemelha com o caso do impeachment que o Brasil está passando.

Há uma relação clara com as situações que envolvem o pedido de impedimento da Presidente, já que esta é acusada de uma série de atos, sendo que numa análise totalizante destes fatos, grande parte não poderia se dar na promoção do presente processo de impeachment. Ou seja, as acusações se dão de forma bem análoga à realizada com Josef K. no livro descrito acima, já que as acusações vão mudando e se permeando de conteúdo dos mais distintos possíveis, tudo de forma a impedir a realização do seu processo de defesa e para se adequar às nossas realidades que vão se impondo.

Esta estranheza já é sentida na denúncia que é realizada perante a Câmara, onde primeiramente o seu Presidente descreveu que não havia motivos para a sua recepção (fatos não descritos nos autos, mas descritos em vários outros meios, inclusive em meios de comunicação de massa), pois após certas situações não devidamente explicadas, passou a aceitar tais argumentos e acaba por recepcionar tal pedido e passando se a processá-lo.

Tal processo teria como motivação a realização do pedido do impedimento da Presidente da República por supostamente atentar contra a probidade na administração e a lei orçamentária. Tais alegações se dão por promover as supostas pedaladas fiscais no ano de 2014 e 2015 ao promover o atraso do repasse dos pagamentos dos serviços realizados pelos bancos públicos a uma série de programas sociais ou atos das mais diversas de obrigações da União, bem como ainda descreve que houve a realização de uma série de decretos não numerados que promoveram a concessão de crédito suplementares realizado pela Presidência da República no ano de 2015.

Assim, estes atos foram os que motivaram o processo de impeachment e podemos se correlacionar diretamente com o livro O Processo, de Kafka, pois tais razões inicialmente descritas no pedido não foram as mesmas que se levaram a diante na realização do pedido.

Durante ao processamento do pedido, outras razões foram se somando ao pedido, desde questões relativos à operação lava jato até a impopularidade da Presidente da República, ou seja, da mesma forma descrita na ficção, várias razões que não eram ligadas ao crime que ele cometeu passam a ser incrementadas no processo.

Não se tinha certeza das acusações que se realizavam a Josef K. e o mesmo se repetiu com a Presidente neste julgamento. Estes pleitos primários e outras razões que foram incluídas e discutidas pelos deputados na Comissão que recepcionou o processo de impeachment, o que levou a promoção de um Mandado de Segurança ao STF pela Presidência da República, onde se descreveu que a votação do recebimento deste processo pelo plenário da Câmara de Deputados deveria se dar somente sobre os fatos descritos na denúncia que fossem relativos ao pedido formulado e que fossem relativos ao ano de 2015, já que não se poderia promover o julgamento de atos anteriores ao atual mandato.

E assim as acusações iam mudando, modificando e se alterando até a data da votação da aceitação do presente pedido de impeachment pela Câmara, quando, então, os deputados, não se atendo diretamente aos limites descritos para a realização de tal ato, acabaram por incrementar uma série de outras motivações para a recepção do pleito, o que ainda mais faz parecer o caso concreto com a ficção descrita.

O processo de impeachment, então, passou ao próximo passo, para a apreciação do Senado e ali se encontra aguardando o seu prosseguimento.

A semelhança entre as duas situações residem na promoção de um processo onde as acusações não deixam de mudar e de se alterar, de uma forma bastante inquisitória, com dificuldades na promoção da defesa e no conhecimento das acusações que lhe são feitas, com provas que são frágeis, controversas e dúbias, usando argumentos dos mais diversos para o julgamento, mas sem a garantia de todos os direitos descritos no Estado Democrático de Direito, inclusive, no caso ocorrido na realidade, por via de uma atuação que importa numa interpretação extensiva para a realização de discussão jurídica que é de direito penal.

Há de se perceber que os direitos mais básicos descritos para o ser humano foram vilipendiados na promoção d´O Processo, sendo certo que a realização do direito nunca pode se dar por via da supressão de garantias para que se atinja um suposto bem que se acha comum. Ainda mais não há de se permitir a realização de um processo por via da atuação do inquisitório, quando o próprio direito para existir peça a promoção de outro tipo de atuação.

Numa leitura da Constituição Federal, há que se estabelecer que os direitos e garantias descritos naquela carta, principalmente com relação processo, devam ser respeitados, sob pena de promovermos a permissão de uma primeira atuação em regime de exceção, tudo com o intuito de se punir aquele que achamos que merece. Para depois acabar por se fazer permitir que a exceção de mitigação de direitos e garantias vire regra, pois com o tempo aquilo que temos como garantias será pensado como privilégio e o nosso Estado Democrático de Direito, será somente um Estado, nada Democrático e muito menos de Direito. Isso é o que se sente na leitura de Kafka.

Assim, a crítica promovida ao Poder Judiciário como um todo, que é realizada n´O Processo, tem como objetivo revelar as falhas dos sistemas judiciários em geral, a partir das políticas de condução errôneas dos processos e de aplicação incerta da lei ao caso concreto, o que também se aplica ao processo de impeachment ora em andamento. Portanto, não é se restringindo direito que se aplica a justiça, isso tem outro nome, é Inquisição!!


Walter Gustavo da Silva Lemos. Walter Gustavo da Silva Lemos é advogado e professor universitário em Porto Velho/RO, formado pela UFGO, com pós-graduação em Direito Penal e P. Penal pela Ulbra/RS, em Direito Processual Civil pela FARO/RO, Mestrado em Direito Internacional pela UAA/PY e em História pela PUC/RS. Professor de Direito Internacional Público e Privado e de Hermêneutica Jurídica da FARO/RO e da FCR/RO. Ex-Secretário-Geral Adjunto da OAB/RO. Membro do IDPR.


Imagem Ilustrativa do Post: 8. I do like such titles much more then normal "preinterpreting" ones. But nevertheless often I fail to give mater-of-fact titels. // Foto de: senscience // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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