Por Atahualpa Fernandez - 11/07/2015
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“La moralidad es una ilusión colectiva de los genes. Necesitamos creer en la moralidad y, por tanto, gracias a nuestra biología, creemos en la moralidad. No hay fundamento “ahí fuera” más allá de la naturaleza humana.” Michael Ruse
Este conjunto de ciências ponte, baseadas todas elas na dupla perspectiva indivíduo-sociedade (inato-adquirido, biologia-cultura), nos ensina que o comportamento humano se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa cognitivo de raiz filogenética com o ambiente sociocultural em que transcorre nossa ontogênese. Também nos indica que as representações culturais devem ser vistas como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata. A estrutura e o funcionamento destes mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se dentro da comunidade como resposta a condições sociais e ecológicas distintas. Em síntese, de que é a natureza humana a que impõe constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória de representações culturais, limitando o rol das variações sociais e culturais possíveis.
A um nível mais profundo, a existência destes mecanismos também implica que existe em nossa espécie uma considerável carga de conteúdo mental universal. Como sustentam as primeiras intuições de Charles Darwin acerca da natureza humana, nascemos com determinados instintos morais, em um marco em que a educação intervém para graduar os parâmetros e guiar-nos até a aquisição de sistemas morais e jurídicos particulares; de que há algo no cérebro humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-jurídicos e que permite sustentar a existência de universais morais em um sentido forte do termo (E. Tugendhat; M. Hauser). Para certas coisas, portanto, há uma só moral universal.
Se for assim, também haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais apreciados — justiça, liberdade, igualdade, autonomia, dignidade — a ideia de que somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana, podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida (S. Zeki). Não é possível compreender o sentido profundo do direito e da moral sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que os habilitam e que os sustenta, um conjunto que administra e gera o sentido da identidade, personalidade e conduta, da percepção do outro e da intuição de nossa própria condição enquanto seres morais.
Naturalmente que na filosofia sempre se tratou, em todo caso, do problema da natureza humana, ainda quando dito tema não era o núcleo central[1]. Mas, existe de fato uma natureza humana tal e como propõe a ciência atual? E, de ser assim, em que consiste aos efeitos da maneira como cabe entender a moral e o direito? Não poderia ser que fosse indiferente, que qualquer programa filosófico, inclusive de cariz religioso, bastasse para estabelecer o fundamento último ou as bases do fenômeno jurídico e do comportamento moral?
A resposta é negativa. Qualquer concessão ideológica ou meramente especulativa está ameaçada dos erros produzidos pelo desconhecimento. A história recente indica bem que a condição humana e seus atributos ligados à possessão de valores devem ser definidos em termos antropológicos e científicos e não políticos, meramente especulativos ou religiosos. O que nos faz ser o que somos? Como nossa natureza possibilita nossos comportamentos ético-jurídicos? Que abanicos nas análises evolutivas e neurobiológicas nos falam do sentido do direito e da justiça? A origem e a função do direito requerem um estudo renovado ante os resultados das investigações acerca da evolução e da natureza humana? De que maneira esta nova perspectiva cambiará nossa concepção acerca do homem como causa, fundamento, fim e sujeito de todo ordenamento jurídico, político e moral?
As respostas menos arriscadas são as que podem oferecer-nos os enunciados descritivos procedentes das ciências que a falácia naturalista pretendeu desqualificar, ainda que surpreenda a muitos o argumento de que, hoje em dia, resulte pouco confiável qualquer ciência social normativa que não tenha em conta o estudo de nossa natureza neurobiológica – e a partir desta natureza a cultura - à luz dos princípios da seleção natural.
Sucede que viemos ao mundo com um genoma determinado, empaquetado e repetido em cada uma de nossas células. Nascemos dotados com determinado aparato sensorial, que faz que possamos perceber certas luzes e sons e outros não. Estamos geneticamente preparados para aprender “un lenguaje con doble articulación”. Descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas e sabemos que somos essencialmente animais com qualidades físicas e uma série de predisposições genéticas e psicológicas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno. Sabemos que não há uma separação taxante, um “abismo ontológico” entre o animal e o humano, apesar de que possuímos certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais e que tudo isso conforma a condição humana. Sabemos que algumas propriedades fixas de nossa mente são inatas, que a matéria prima da cultura são representações mentais, pessoais e compartidas e que toda representação é, em última instância, obra de nosso cérebro - quer dizer, que nada ocorre, nem nada existe no mundo humano que não tenha sido percebido, filtrado, elaborado e construído pelo cérebro (o que inclui como pensamos, interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-jurídicas). E começa a acumular-se fortes evidências, desenvolvidas em campos disciplinares muito variados, sugerindo a existência de um “instinto moral”, uma faculdade moral equipada com propriedades universais da mente humana que restringe o âmbito da variação cultural, que guia inconscientemente nossos juízos de valor e que permite desenvolver uma reduzida gama de sistemas morais concretos.
Assim que a dimensão natural do ser humano (sua natureza biológica e sua origem evolutiva) passou a constituir uma dessas incômodas evidências empíricas que todo mundo aceita, mas que ninguém sabe, realmente, como gerir. Que o homem é um animal, uma parte indistinguível da natureza orgânica, edificado de acordo com os mesmos princípios genéticos que qualquer outro ser vivo, não é somente uma evidência científica indiscutível, senão também um lugar comum na literatura científico-social e humanística.
Basta, para isto, com entender: i) que parte de nossa natureza — o que caberia chamar em termos técnicos “traços primitivos”— apareceu graças à evolução por seleção natural milhões de anos antes de que aparecera nossa espécie; ii) que outras características exclusivas dos seres humanos — os “traços derivados”— se acrescentaram ou aperfeiçoaram ao longo de nossa história evolutiva separada, dentro da linhagem em que nos incluímos e a nossos antecessores não compartidos com nenhum símio; iii) que a hipótese mais verossímil afirma que as condições que correspondem a nossa psicologia moral, aquelas que sustentam a natureza humana, devem dar-se por plasmadas como traços ou bem primitivos ou derivados (em caso de negar-se tal evidência, é preciso oferecer explicações plausíveis, afastadas da invocação de valores supremos, acerca de como poderiam haver aparecido); e iv) que somente a comparação com as atitudes e valorações morais de outros seres podem dar pistas do caráter primitivo ou derivado da condição moral[2].
Depois de tudo, é precisamente a hipótese de que há uma natureza humana a que permite (i) o não ter que enredar-nos em determinados tipos de loucuras filosóficas, e (ii) o reconhecer que quanto mais e melhor entendamos nossa natureza melhor atuaremos na sociedade, na ética, na política e no direito.
Notas e Referências
[1] Um jurista positivista como Herbert L. A. Hart, por exemplo, defendeu em sua obra fundamental “El concepto de derecho” que a reflexão sobre certas características elementares da natureza humana e a interação social leva a aceitar a existência de um “contenido mínimo del derecho natural” no sentido de “ciertas reglas de conducta que toda organización social tiene que contener para ser viable”. As características da natureza humana que servem a Hart para derivar este “contenido mínimo” são: i) a vulnerabilidade humana; ii)a igualdade aproximada dos seres humanos; iii)o altruísmo limitado; iv) a existência em um mundo de recursos limitados; v) e a compreensão e força de vontade limitadas. Na mesma linha, Carlos S. Nino escreveu que há um acordo básico entre importantes filósofos (como Hart, Warnock e Rawls) acerca de quais são as circunstâncias fundamentais da vida do homem em sociedade que estão associadas com o direito e a moral: “Se mencionan, en primer lugar, las circunstancias que Rawls llama objetivas, como la escasez de recursos para satisfacer todos los intereses humanos, la vulnerabilidad de los hombres frete a ateques de otros, la igualdad aproximada de los hombres en el sentido de que nadie tiene la suficiente capacidad física e intelectual para dominar por sí solo al resto, la coexistencia de los individuos em áreas geográficas comunes. Luego están las circunstancias subjetivas, como que los intereses de los hombres son divergentes, su conocimiento y capacidad de raciocinio limitados y, sobre todo, el hecho de que la simpatía hacia los intereses ajenos, o sea la capacidad de identificarse hasta cierto grado con esos intereses como se fueran propios, es también limitada. La articulación y explicación de estas circunstancias constituye el contenido de una teoría de la naturaleza humana, y no hay duda de que lo que hay de acertado en posiciones iusnaturalistas es la idea de que una profundización en el desarrollo de esa teoría puede esclarecer aspectos importantes del derecho y de la moral”.
[2] Nota bene: Francisco Ayala argumenta que os seres humanos têm capacidade ética (outros autores preferem falar neste contexto de razão prática) como um atributo natural, pertencente a sua natureza biológica: “Esto se debe a la presencia de tres capacidades que, tomadas en conjunto, son condiciones necesarias y suficientes para la existencia de esta capacidad ética: (1) capacidad para prever las consecuencias de las propias acciones; (2) capacidad para formular juicios de valor, esto es, para valorar acciones u objetos como buenos o malos, deseables o indeseables; (3) capacidad para elegir entre diferentes vías de acción (esto es, autonomía en un sentido débil).
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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