O Problema da Natureza Humana (Parte 1)

10/07/2015

Por Atahualpa Fernandez - 10/07/2015

“El mayor obstáculo al pensamiento calmado, razonado y basado en evidencias sobre la naturaleza humana es la propia naturaleza humana.” John Derbyshire

Posto que somos seres históricos e culturais, há que desfazer-se da ideia de natureza humana? Pese a que esta classe de rechaço da natureza humana tem uma larga história filosófica em importantes correntes de pensamento e desde lugares filosóficos diferentes, parece difícil mantê-la atualmente em sério fora de certos contextos muito específicos de argumentação. Se pode dizer, inclusive, que é uma insensatez afirmar que os seres humanos carecem radicalmente de natureza ou que “sua essência consiste em não ter essência” (L. Ferry): “Hay rasgos característicos de los seres humanos en cuanto tales; hay intereses, deseos y tendencias humanas ancladas en nuestra biología. ¿Cómo dudarlo?”[1]. ( J. Riechmann)

Pois bem, em filosofia, geralmente o ponto de partida determina o resultado da investigação, ou ao menos o delimita sensivelmente (A. MacIntyre). Ainda mais relevância cobra esta constatação se pensamos na antropologia filosófica como “filosofia primeira” à maneira de Ernst Tugendhat: já que em tal caso “según la ideia de la condición (o naturaleza) humana que nos hagamos, así será la filosofía que forjemos”. Sendo assim, o que me importa é afinar todo o possível o tema a partir de uma concepção naturalista da natureza humana - quero dizer, compatível com uma visão evolucionista do ser humano -, a fim de que o leitor (a) tome uma posição pessoal que seja produto de uma reflexão bem informada[2]. Tratarei de não exagerar.

Como os demais antropóides africanos, ninguém ignora que a natureza do ser humano é essencial e intensamente social: nossa condição é a de um primata que nasceu para viver em comunidade. A expressão latina unus homo, nullus homo  expressa bem essa natureza que nos caracteriza como espécie social: o humano se funda no interhumano[3]. A interpretação mais comum deste fato em termos de evolução por seleção natural é a de entender que, para nossos antepassados, representou uma vantagem adaptativa a constituição de uma vida socialmente organizada: “El humano aislado, sin una comunidad social en la cual pueda plasmar su existencia —por no hablar de su libertad o dignidad—, no es tal”.

Fomos desenhados pela seleção natural para desenvolver-nos,  aprender a viver e a prosperar em um entorno social, no marco das restrições de um mundo natural. O fenômeno da competência liguística, por exemplo, põe muito bem de manifesto esta integração de natureza e sociedade. No modelo apresentado por Noam Chomsky, a competência linguística é um traço inato que deve atualizar-se mediante a pertença a uma família, a uma tribo ou a uma sociedade. A capacidade humana para desenvolver uma linguagem não se consegue sem os sinais fonético-semânticos procedentes de um grupo social.

As consequências desta soma de competência e atuação — ou, melhor dito, de sua integração complementária — são importantes para entender a necessidade de afastar ou recusar o dualismo, a separação “insalvável” entre o inato  e o adquirido. Por razões  que têm que ver com a aparição, há aproximadamente 7 milhões de anos, do único traço derivado humano compartido por todo o conjunto dos hominídeos, a bipedia, as cadeiras dos membros de nossa linhagem se transformam. O incremento do volume cranial no gênero Homo que se produz a meio caminho na evolução da família dos hominídeos, a partir de 2,5 milhões de anos atrás, converte em um problema o nascimento de seres com cérebros cada vez maiores cujas mães têm um canal pélvico estreito.

A solução que a seleção natural impõe é a de nascer com o cérebro muito pouco desenvolvido. Deste modo, durante sua infância, cada novo ser humano aumenta e completa seu cérebro mediante um processo que necessita dos sinais procedentes do grupo e do entorno para poder realizar-se. Não é somente a linguagem o que faltaria se uma criança crescesse afastada de qualquer grupo. É o próprio cérebro o que não poderia amadurecer. E o que dizer de outros elementos pertencentes a nossa constituição como indivíduos?

A hipótese mais razoável estabelece que a natureza humana e, consequentemente, o sentido do self (assim como todas as nossas ações, sejam ou não conscientes) é o resultado combinado de uma mescla similar a do caso da linguagem: uma amálgama em que genes, neurônios e sinapses por uma parte, e experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida sociocultural, por outra, confluem para dar o resultado final de um indivíduo inseparável da sociedade.

Dito de outro modo, as disposições e os padrões de conduta dos seres humanos, incluídos o caráter, a personalidade e as atitudes, refletem os complexos efeitos de nossos genes (normalmente múltiplos genes), cujas expressões são modeladas “a lo largo de la vida por múltiples determinantes ambientales. Lo que somos y lo que llegamos a ser emerge y refleja la interacción, un estrecho entrelazamiento, de influencias genéticas y ambientales en una coreografía enormemente compleja, que sencillamente no cabe reducir a una parte o a la otra: lo que los genes hacen (y qué partes de nuestro ADN se expresarán y qué otras quedarán ignoradas) depende de los entornos en que funcionan. La naturaleza y la educación son inseparables y se determinan mutuamente” (W. Mischel). Como assinalou em certa ocasião Pasco Rakic: “Los genes nos dan las oportunidades y el entorno nos permite hacerlas realidad”[4]. Isso somos.

 Daí que quando se fala de natureza humana e de seus efeitos práticos, é, pois, viável – e inclusive exigível —  o desenho de novos critérios para que os setores do conhecimento próprios da moral e do direito sejam revisados à luz dos estudos decorrentes da ciência cognitiva, da genética do comportamento, da antropologia, da biologia evolutiva, da primatologa, da psicologia e da neurociência entre outras disciplinas que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie. Em palavras de Patricia Churchland, boa parte da filosofia moral (e jurídica) contemporânea, por muito venerada que seja no âmbito acadêmico, está totalmente desvinculada do «tangível»; quer dizer, não guarda uma estreita relação com a evolução, o cérebro ou a natureza humana e, como tal, corre o perigo de seguir vagando em um mar de simples opiniões com sutis maquinações de um jogo puramente especulativo-argumentativo, por muito convincentes que pareçam – sem lugar a dúvidas, os clérigos medievais também se mostravam muito convencidos de suas teorias.


Notas e Referências:

[1] Por isso tem razão Steven Pinker quando afirma que “la cultura es crucial, pero la cultura no podría existir sin las facultades mentales que permiten a los humanos crear y aprender una cultura, de entrada.” Somos seres biossociais, seres com certa natureza biológica situados em contextos sociais concretos – e não anjos de “anti-naturaleza revoloteando por el cielo de las ideas”.

[2] Ao que por certo devemos estar constantemente alerta é para a tentação de tribuir fraudulentamente à natureza humana traços contingentes de culturas humanas concretas.

[3] Como recorda Tzvetan Todorov: “La sociabilidad no es un accidente ni una contingencia: es la definición misma de la condición humana.[…] Esta “vocación” significa que tenemos una necesidad imperiosa de los otros, no para satisfacer nuestra vanidad sino porque, marcados por una incompletad original, les debemos nuestra existencia misma”. Nada obstante, há que ter em conta que por muito que vivamos com e para outros, “cada uno de nosotros es solo “uno”, que camina por una senda individual a través del mundo desde el nascimiento hasta la muerte. Cada persona siente únicamente su dolor, y no el de otro. Cada persona muere sin que ello entrañe de modo lógico la muerte de nadie más. Debemos tener en cuenta estos hechos tan básicos cuando oímos hablar de la ausencia de individualismo en ciertas sociedades. Incluso las formas más intensas de interacción humana, por ejemplo, la experiencia sexual, son formas de sensibilidad individual, no de fusión. Si se hace de la fusión una meta, el resultado irá acompañado de un amargo desengaño”. (M.  Nussbaum)

[4] Também desde o território das neurociências se concebe a dialética entre o neuronal e o cultural baixo o conceito de “epigênese”: “Según la teoría de la epigénesis cultural, las estructuras socioculturales y neuronales se desarrollan en simbiosis, y cada una es causalmente pertinente para la otra. La arquitectura de nuestros cerebros determina nuestra identidad y nuestro comportamiento social, incluso nuestras disposiciones  morales y los tipos de sociedades que creamos, y viceversa: nuestras estructuras socioculturales influyen en el desarrollo del cerebro”. (K. Evers)


 

Confira a Parte 2 amanhã às 18h!


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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