É comum encontrarmos, na doutrina do Direito Processual Penal, a assertiva de que, na dúvida, se deve admitir a acusação para que o processo seja instaurado ou para que os réus sejam julgados pelo Tribunal do Júri, nos crimes dolosos contra a vida.
Entretanto, é importante partir de duas premissas bastante claras e evidentes:
1 - o princípio da obrigatoriedade do exercício do direito de ação só incide se presentes as chamadas condições da ação e os pressupostos processuais;
2 - a regra constitucional que presume a inocência veda a inversão do ônus da prova em qualquer fase do processo penal, ou mesmo em algum procedimento preliminar.
O equívoco decorre de se tomar como parâmetro o mérito do processo, que não cabe ainda valorar. Em outras palavras, nesta fase inicial do processo, não é tempestivo examinar se a pretensão do autor procede ou não, ou mesmo se temos dúvida sobre tal procedência.
Vale a pena repetir: neste momento, o juiz tem de se ater a constatar se estão ou não presentes os requisitos para admitir a peça acusatória, tendo em vista a regra do art.395 do Cod. Proc. Penal. No caso do rito do Tribunal do Júri, consultar os artigos 413 e 414 deste mesmo diploma legislativo.
Desta forma, havendo dúvida sobre um dos requisitos para o recebimento da denúncia ou queixa, elas não devem ser recebidas. Vale dizer, se o julgador estiver em dúvida sobre a demonstração dos requisitos elencados no supra citado art.395, não deve admitir a acusação.
Evidentemente, isto vale também para a decisão de pronúncia, nos crimes da competência do Tribunal do Júri. Dizendo de outro modo, havendo dúvida se os requisitos do art. 413 estão presentes, o réu não deve ser pronunciado, nos termos do artigo 414 do Cod.Proc.Penal.
Lógico que tais decisões não impedem que se continue investigando para que se obtenha a prova faltante, inclusive do fato caracterizador da tipicidade alegada. Basta que surja notícia de fato novo.
Importante notar que, no juízo de recebimento ou não da denúncia ou queixa, descabe valorar a eventual prova conflitante, ém descabe também optar por uma ou outra vertente probatória. Isto se faz no julgamento de mérito. O mesmo se aplica ao juízo de admissibilidade feito na decisão de pronúncia, no rito especial do Tribunal do Júri.
Em resumo: trata-se de apenas constatar a existência de prova mínima de tudo que está narrado na acusação (quarta condição para o regular exercício do direito de ação), ou da existência dos requisitos previstos no art.413 do Cod.Proc.Penal (Tribunal do Júri). Cuida-se de constatar a existência da prova e não de valorá-la. Este é o sistema.
No plano normativo, caberá examinar a presença ou não dos pressupostos processuais e da justa causa (tipicidade evidente dos fatos imputados que, pela atual redação do art.395 do Cod.Proc.Penal, não mais pode ser considerada uma condição da ação penal condenatória. Entretanto, a existência de suporte probatório mínimo continua como uma condição para o regular exercício da ação penal condenatória).
Destarte, se o magistrado estiver em dúvida sobre o preenchimento de uma condição para o exercício da ação (inclusive prova mínima), de um pressuposto processual ou da justa causa, ele deve rejeitar a denúncia ou a queixa. Se o juiz estiver em dúvida sobre os requisitos do artigo 413 do Cod.Proc.Penal, ele deve impronunciar o réu acusado de um crime doloso contra a vida.
Assim, evidentemente, não é ônus da defesa, que ainda não se faz presente, de forma realmente eficaz, neste momento procedimental, provar que a acusação não é admissível. É da parte autora o ônus de provar que a acusação deve ser admitida ou que existe prova suficiente para sujeitar o réu ao julgamento do Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida).
Em conclusão: o impropriamente chamado princípio do “in dubio pro societate” não existe em nosso sistema processual penal.
Imagem Ilustrativa do Post: Image from page 22 of "Bibliography, its scope and methods, with a view of the work of a local bibliographical society" (1917) // Imagem de: Murray, David, 1842-1928
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