O princípio esquecido chamado fraternidade e sua importância para o Direito – Por Ana Cristina Bacega De Bastiani, Mayara Pellenz e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

24/09/2015

Antonio Maria Baggio[1] é um filósofo italiano que concentra sua pesquisa no tema Fraternidade. Ministra palestras com esse enfoque em muitos países e já esteve no Brasil em mais de uma oportunidade. Esse autor propõe uma reflexão política, jurídica e social sobre o tema, ressaltando que a Fraternidade precisa ser vivenciada, em âmbito local e global. Formou-se em Filosofia na Universidade de Padova em 1978 e em mestre em Filosofia em 1988, em Roma. Em 2006 concluiu, também em Roma, seu doutorado na mesma área. Atualmente, é docente em Filosofia Política no Instituto Universitário Sophia em Firenze, na Itália.

A obra em comento discorre sobre Fraternidade[2] e suas diversas facetas. A categoria se refere à relação de comunidade humana universal, ou seja, a Fraternidade como vetor da dignidade capaz de equiparar aqueles que são diferentes, viabilizando a Liberdade e a Igualdade que se manifestam ao mesmo tempo. Em outros termos, Liberdade e Igualdade, quando não observadas a partir desse “meio termo” denominado Fraternidade, tendem a criar cenários de exploração, de privilégios, de “esquecimento” acerca do nosso vínculo antropológico comum.

Não é o objetivo de Baggio buscar respostas últimas ao tema, mas, sim, de estabelecer alguns pontos de referência, especialmente de aplicação do Direito. O mencionado filósofo enfatiza que a Fraternidade abre uma multiplicidade de abordagens, que estão em permanente construção. No que se refere a categoria em estudo, aduz-se, num primeiro momento, que essa se desenvolve, em sua plenitude de significado, como fenômeno universal.  A Fraternidade possibilita a base para o desenvolvimento de uma noção de Cidadania que possa ser aplicada a comunidade humana global, não excluindo as outras comunidades, mas concretizando o que o autor denomina de “comunidade de comunidades”[3].

O autor propõe, também, o desafio da Fraternidade e tentar realizá-la historicamente, por meio da experimentação e da convivência. Entretanto, essa tarefa não é fácil ainda que a categoria seja uma condição basilar de qualquer sociedade. A Fraternidade é o vetor para que a Liberdade e a Igualdade aproximem-se e possibilitem condições para uma vida qualitativa a todos no planeta, não obstante existam as adversidades multiculturais.

Nessa linha de pensamento, o caráter de universalidade das diferentes culturas é o que viabiliza a compreensão e práxis da Fraternidade em todos os lugares do mundo.  Por possuir uma finalidade em si, são necessários espaços em que se realize um encontro de consciências e de culturas, uma partilha de subjetividades e uma deliberação intersubjetiva em torno da vida que se compartilha. Por esse motivo, as vivências se tornam “nossas” e não apenas “de cada um”. No cotidiano, a Fraternidade é a condição humana que compartilhamos na vida cotidiana sempre no momento presente, mais e mais, vivo.

Em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como consequência da Revolução Francesa, a Fraternidade se evidenciou, ao lado dos ideais de Liberdade e Igualdade, os quais ultrapassaram as barreiras da harmonia social e do Cristianismo[4] para constituírem elementos de uma Sociedade política, capazes de interferir na forma de governo e integrar textos constitucionais.

Entretanto, na tríade da revolução: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, verifica-se que essa última categoria deveria estar na mesma dimensão de importância junto com as outras, mas a Fraternidade não ocupou papel importante na cultura política do Ocidente[5]. Essa situação ocorreu porque a Igualdade e a Liberdade permitem de maneira muito rápida, sob o ângulo jurídico[6] e político, a viabilidade de preservação do ser humano na sua dimensão individual e coletiva por meio das constituições. Assegurar Liberdade e Igualdade não reivindica nenhuma preocupação fraterna, nem qualquer responsabilidade[7] diante do Outro. Se ambas categorias – Liberdade e Igualdade – forem interpretadas nessa linha de pensamento, percebe-se a sua exclusão mútua, ou seja, uma se sobressairá à outra.

Liberdade e Igualdade foram inseridas no contexto jurídico, especialmente americano, em detrimento da Fraternidade, a qual ficou deslocada em virtude do teor cristão que lhe era característico[8]. O enfoque dado à Fraternidade era no sentido da educação, do assistencialismo, mas não adquiriu status jurídico, nem politico[9] e permaneceu como uma ideologia erguida na bandeira da Revolução Francesa apenas como motivação religiosa.

Mesmo que não houvesse a incorporação da Fraternidade pelos documentos jurídicos, não se pode deixar de mencionar o caráter revolucionário dessa categoria por ter sido um ideal norteador das Revoluções que marcaram a história da Humanidade, pois ampliou a proteção e o respeito aos Direitos Fundamentais, bem como a mitigação aos abusos e excessos cometidos pelo Estado[10]. A Fraternidade pressupõe uma relação de Igualdade e Liberdade do Homem para com seu semelhante e desse com o Estado. Por esse motivo, essa categoria não pode se apresenta como postura caridosa em relação ao Outro que passa fome, sofre pela marginalização, é eliminado pela intolerância religiosa ou racial – se é que se pode rememorar esse argumento -, mas impulsiona a reflexão sobre quais vetores têm capacidade de integrar, de edificar a unicidade humana no globo.

Não obstante se observe, com nitidez, a importância da Fraternidade como valor a pautar as relações humanas, essa não conseguiu se estabelecer, historicamente, como valor ético, político e jurídico na Modernidade. No entanto, com o passar do tempo e a conscientização de que o sentido empregado pelas pessoas à vida precisa ser redimensionado, o Direito incorporou esse valor como um princípio exigível pelos documentos oficiais, principalmente nas constituições dos países democráticos.

A Fraternidade[11] é a face oculta da Liberdade e da Igualdade, é o princípio esquecido das legislações e constituições, pois fomenta a comunhão universal e fortalece o vínculo antropológico comum. Esse vínculo, comum a todos os seres humanos, mitigam as exclusões sociais e as misérias humanas. Busca-se constituir uma sociedade mundial aberta, dialogal e pluralista na sua perspectiva multicultural.

É por meio da experimentação, da práxis cotidiana da Fraternidade por meio da Solidariedade[12] que a Humanidade criará vínculos, repletos de trocas de conhecimentos e aprendizagens para experiências genuinamente mais humanas. O cenário mundial revela, de modo intenso, não apenas modelos de convivência insustentáveis, mas insuportáveis, nas quais prevalece uma Razão Instrumental que põe o véu de nossa humanidade compartilhada pela competição desmedida, pela concentração do lucro, pela eliminação do estrangeiro, pela indiferença com a vida do Outro[13].

Somente com a participação de todos será possível combater o esmorecimento político, a fragilidade dos laços humanos, lutar contra as condições sub-humanas a que algumas pessoas são submetidas, seja pelo seu trabalho, pela sua cor, pela sua opção sexual ou religiosa, entre outras, fazendo com que as pessoas se articulem, se comprometam coletivamente para a construção de uma sociedade mais fraterna, solidária e justa. Os enunciados normativos acerca da Fraternidade e Solidariedade não podem, nem devem, reivindicar obrigações que se exaurem nos seus limites semânticos, mas precisam alargar ações e consciências sobre a necessidade de constituir junto com o Outro novos horizontes de integração e avanço civilizacionais.

A Fraternidade é um valor a ser considerado como essencial a orientar as condutas humanas porque desvela nossa humanidade escondida no Outro. É a partir da percepção, compreensão e incorporação desse valor à vida cotidiana que atitudes mais humanas poderão ser presenciadas. Essa é a raiz na qual expressa outros modos de vidas no globo possíveis, mas que insistem em ser silenciadas porque mostram a fragilidade das certezas habituais criadas pelos contornos fronteiriços do “Eu”. A Fraternidade expressa esse diálogo temporal e multicultural para se viabilizar, mais e mais, a seguinte relação: “Eu-Tu-Mundo-Nós”. Eis as utopias sempre carregadas de esperança[14].


Notas e Referências:

[1] Principal obra estudada neste artigo: BAGGIO, Antonio Maria. O princípio esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Trad. De Durval Cordas et. al. Vargem Grande Paulista, (SP): Cidade Nova, 2009.

[2] Para fins de se estabelecer um acordo semântico com nosso leitor ou leitora, apresenta-se um conceito operacional para Fraternidade: “A fraternidade é o cimento ou a amálgama de uma comunidade política – local, nacional e/ou global – que se observa como confiança generalizada. A fraternidade política fundamenta-se num consenso político que inclui dois componente individuais. Primeiro, a existência de procedimentos democráticos legitimados de participação, representação e tomada de decisões políticas, os quais também têm reconhecimento constitucional e que, em geral, favorecem a inclusão política. Segundo, a existência de uma atitude de empatia, preocupação ou solidariedade entre cidadãos, atitude que se expressa no reconhecimento constitucional de direitos sociais e em maiores graus de equidade social”. MARDONES, Rodrigo. Por uma exatidão conceitual da fraternidade política. In: LOPES, Paulo Munir (Org.). A fraternidade em debate: percurso de estudos na América Latina. Vargem Grande Paulista, (SP): Cidade Nova, 2012, p. 44.

[3] “A fraternidade, no entanto, no decorrer da história, foi adquirindo um significado universal, chegando a identificar o sujeito ‘humanidade’ – comunidade das comunidades -, o único que garante a completa expressão também aos dois princípios universais, a liberdade e igualdade. BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do ‘terceiro 1789’. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 17.

[4] A categoria para esta pesquisa se refere à Idade Média e define-se como “[...] a crença num Deus único manifestado em três pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – na redenção do mundo pela Encarnação, Paixão e Ressurreição de Jesus Cristo”. LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 107.

[5] “[...] fraternidade não faz parte de nenhum ensinamento consolidado nas diversas disciplinas  que têm a política como seu objeto. Não possuímos uma tradição de estudos que tenham aprofundado a fraternidade política. O próprio termo ‘fraternidade’, com raríssimas exceções, está praticamente ausente dos dicionários de política.” BAGGIO, Antonio Maria. Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Vargem Grande Paulista, (SP): Cidade Nova, 2009, v. 2, p. 9.

[6] “[...] Direito e Fraternidade possuem um caráter de complementaridade que atravessa séculos e que possivelmente, ser perpetuará no tempo, como forma de realização da vida em comunidade e da harmonização social. [...] Em que pese o fato de a fraternidade estar sedimentada como categoria jurídica, amplamente aceita no mundo moderno, é preciso que as práticas sejam socializadas no plano da vida, sob pena de tornar, novamente, um princípio esquecido. É preciso retomar as condições de fraternidade, que há séculos está inserida no corpo social, a fim de viabilizar a cooperação mútua entre as pessoas, em momento de crise onde o individualismo e o egoísmo estão cada vez mais presentes. Sob esta perspectiva, não é exagero dizer que a forma como se vive hoje é insustentável e a fraternidade pode ser uma alternativa para estas questões”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; DEBASTIANI, Ana Cristina Bacega; PELLENZ, Mayara; LOCATELLI, Huryel. O princípio da fraternidade e a Constituição Federal brasileira: aproximações para o direito no século XXI. In: COSTA, Carlos; LAIMER, Claudionor Guedes; CERICATO, Graziela; COPATTI, Livia Copelli; DILDA, Vanessa. Pesquisa científica: VIII mostra de iniciação científica da faculdade meridional – IMED. Passo Fundo, (RS): IFIBE, 2014, p. 130/131.

[7] “[...] Tanto a visão liberal quanto a socialista fazem essa responsabilidade recair principalmente sobre o Estado: uma, garantindo que o Estado assegure um mínimo de direito a todos, mas sem se interessar pelo fato de outros direitos serem efetivamente respeitados ou não, na livre disputa das forças econômicas e sociais; a outra, oferecendo uma gama mais ampla de direitos a serem defendidos, em especial os direitos econômicos e sociais, muitas vezes, porém, em detrimento das garantias de liberdade individual e do desenvolvimento harmônico das pessoas.” AQUINI, Marco. Fraternidade e direitos humanos. In: BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 138.

[8] “[...] Enquanto, porém, os princípios-deveres da igualdade e liberdade tiveram um desenvolvimento, a partir de 1789, e transformam-se em categorias políticas propriamente ditas, entrando, como princípios, nas Constituições de vários Estados, a mesma sorte não coube à fraternidade.” BAGGIO, Antonio Maria. Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Vargem Grande Paulista, (SP): Cidade Nova, 2009, v. 2, p. 9.

[9] “[...] fraternidade não faz parte de nenhum ensinamento consolidado nas diversas disciplinas  que têm a política como seu objeto. Não possuímos uma tradição de estudos que tenham aprofundado a fraternidade política. O próprio termo ‘fraternidade’, com raríssimas exceções, está praticamente ausente dos dicionários de política.” BAGGIO, Antonio Maria. Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. p. 9.

[10] “A fraternidade, todavia, não se apresenta apenas como enunciado de um conceito, mas como princípio ativo, motor do comportamento, da ação dos homens, com uma conotação essencialmente moral. Assim, ela deve ser considerada – a meu ver – estreitamente ligada ao mesmo tempo ao Preâmbulo, nas partes em que evoca a idéia da família humana e considera a Declaração um ideal comum a ser alcançado por todos os povos e nações, [...].” AQUINI, Marco. Fraternidade e direitos humanos. In: BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 133.

[11] “[...] A fraternidade, porém, pressupõe um relacionamento ‘horizontal’, a divisão dos bens e dos poderes, tanto que cada vez mais se está elaborando – na teoria e na prática – a ideia de uma solidariedade horizontal, em referência à ajuda recíproca entre sujeitos diferentes, seja pertencentes ao âmbito social, seja do mesmo nível institucional. A verdade é que algumas formas de ‘solidariedade horizontal’ tiveram como se desenvolver por meio de movimentos históricos concretos, no âmbito das organizações sociais, de defesa dos direitos humanos e, em particular, dos direitos dos trabalhadores, e também como iniciativas econômicas. Pensemos no movimento cooperativo e na economia social, que se desenvolveu nas últimas décadas”. BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do ‘terceiro 1789’. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 22.

[12] Solidariedade nem sempre constitui situação de paridade e reciprocidade. Por exemplo: pode-se ser solidário a uma determinada causa e empreender ações para cumpri-la, mas não significa que eu reconheço as pessoas envolvidas, inclusive aquele no qual viabilizou a iniciativa solidária, como iguais, ou seja, pertencentes ao vínculo antropológico comum, à família humana na qual destaca o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. AQUINI, Marco. Fraternidade e direitos humanos. In: BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 138.

[13] E complementa Ropelato: “[...] a categoria fraternidade universal apresenta-se nesse debate com peso considerável, capaz de interromper e, em certa medida, sanar os efeitos perversos da lógica que transforma inclusão em exclusão. Do ponto de vista político, a fraternidade coloca-se, antes de mais nada, como princípio de construção social, no qual o outro – se podemos definir-nos irmãos – não é diferente de mim, mas outro eu mesmo. Seu significado relacional e, portanto, dinâmico impele a buscar e a reconhecer mutuamente as fisionomias semelhantes entre os diversos sujeitos, grupos sociais e culturais. Além disso, a identificação de uma relação de fraternidade como pertencimento recíproco, entre os atores sociais e políticos, implica pôr em prática relações de partilha e de responsabilidade que certamente devem ser avaliadas em profundidade.” ROPELATO, Daniela. Notas sobre participação e fraternidade. In BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual da ciência política. p. 103.

[14] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 19.


 

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