De há muito estamos alentando a vontade de escrever um texto que trate, de forma exaustiva, deste tema tão relevante para a própria estrutura do processo penal.
Entretanto, ainda não será desta vez que vamos concretizar esta nossa proposta. O tema exige um estudo aprofundado e, até mesmo, interdisciplinar. Exige estudo e grande reflexão prévia. Exige espaço e tempo não curtos.
Desta forma, vamos aqui tão somente explicar, em linhas gerais e superficiais, o esboço de nosso entendimento sobre o princípio da verdade real no processo penal. Por brevidade, damos a este nosso texto uma forma mais tópica.
O nome que se dá às coisas e mesmo às categorias jurídicas, por vezes, acabam provocando um certo desvio no aprofundamento de seu estudo, no enfoque de seu estudo. Talvez isto esteja ocorrendo com o princípio de que ora falamos.
Primeiro: como está evidente, a expressão “verdade real” acarreta uma grande redundância. Se não é real, não é verdade. Se é verdade, não pode deixar de ser real!!! Assim, esta expressão vem se opor ao princípio da verdade formal, que vigora no processo civil, quando em jogo direitos disponíveis.
Como se sabe, no processo civil, o juiz pode reputar como verdadeiros fatos não provados, desde que não impugnados pela parte contrária. No processo penal, até mesmo a confissão do réu não dispensa a existência das demais provas, conforme dispõe expressamente o art.197 do Cod. Proc. Penal. Mesmo os fatos incontroversos são objeto de prova no processo penal.
Por outro lado, quando o princípio em estudo se refere à “verdade”, dispara uma enxurrada de críticas de toda a ordem. Seja no plano filosófico, na teoria do conhecimento, seja no plano das chamadas ciências exatas, vários estudos sérios questionam o que seja verdade, questionam a impossibilidade de o ser humano a ela consiga chegar, seja pela razão, seja pelos nossos sentidos.
Desta forma, cabe explicar que nós, estudiosos do processo penal, não temos a ingenuidade de pensar que, através dos meios de prova e da dialética do processo, possa o juiz criminal atingir a verdade absoluta dos fatos pretéritos, relevantes para o julgamento. Explicamos abaixo.
Entendemos que o indevidamente chamado de “princípio da verdade real” significa que o juiz penal não pode considerar como verdadeiros fatos que não sejam regularmente provados nos autos do processo. O comportamento omissivo das partes não autoriza que o magistrado dele tire ilações no campo probatório, consoante ocorre no processo civil, quando em jogo direitos disponíveis.
É sabido que, no processo penal, está sempre presente o interesse público, seja em aplicar corretamente a lei penal incriminatória, seja na tutela da liberdade das pessoas e de outros direitos fundamentais.
Por isso, tal princípio significa que o juiz, no processo penal, deve ter algum poder instrutório, ainda que supletivo à atividade probatória das partes. Este poder outorgado ao magistrado deve ser desempenhado apenas em último caso, após a instrução processual (salvo casos excepcionais de medida cautelar de antecipação da prova perecível), de modo a não macular o nosso sistema processual acusatório e a imparcialidade dos julgadores. Esta é a interpretação que deve ser dada ao inc. II, do artigo 156 do Cod. Proc. Penal.
Desta forma, estando o juiz em dúvida sobre ponto relevante para o seu julgamento, estando também exauridos os meios probatórios, só lhe resta absolver o réu, tendo em vista o princípio do “in dubio pro reo”. Desde a penúltima década do século passado, venho sustentando que, no processo penal, o ônus da prova é todo da acusação. (Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, Juspodium, 15ª.edição, em parceria com Pierre Souto Maior Amorim, p.309/322).
Entretanto, se ainda houver algum meio de prova disponível, poderá o juiz determiná-lo, independentemente de provocação das partes, procurando formar um convencimento seguro sobre os fatos relevantes para o seu julgamento.
Certo que, em assim agindo, o juiz poderá afastar a absolvição em razão da dúvida anterior. Entretanto, não menos certo é que não devemos “aprisionar” o juiz na dúvida, se ainda há possibilidade de afastá-la. Não devemos apostar no fracasso do processo penal.
Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que condenar quem merece ser condenado é algo socialmente útil. A dúvida a todos atormenta...
Na realidade, não será este ato de ofício do juiz que estará comprometendo a sua imparcialidade. Isto sim é ingenuidade, pois há inúmeros outros fatores mais eficazes que podem comprometer a imparcialidade do magistrado. A realidade de nossos dias está aí para todos verem...
Pelo exposto, vamos reiterar o que já fizemos no início deste século: ao invés de chamarmos este princípio de “Verdade Real” deveríamos chamá-lo de “Princípio da Busca do Convencimento do Juiz”. Esta sugestão fizemos, de forma expressa, no prefácio do excelente livro do saudoso colega Francisco das Neves Baptista, intitulado “O mito de verdade real na dogmática do processo penal”, S.P., 2001, editora Renovar.
Assim, o juiz deveria buscar a prova para formar o seu convencimento, sempre de forma discreta e após a atividade probatória das partes, tendo em vista os postulados do sistema acusatório (não me refiro ao danoso sistema adversarial).
Formado o seu convencimento, diante da prova dos autos do processo, se for o caso, o juiz prolatará a sua decisão. Agora, se ele realmente chegou à verdade – se é que existe verdade absoluta – ele nunca saberá, morrerá sem nunca sabê-la (até mesmo autor e vítima talvez não a saibam e nunca saberão...).
Em resumo: no processo penal, não se busca a verdade plena (talvez impossível de alcançar), mas sim que o convencimento do juiz seja formado exclusivamente em razão dos fatos efetivamente trazidos à sua apreciação e que estejam nos autos.
Lógico que a prova trazida aos autos do processo há de ser submetida ao crivo do contraditório processual, exigido na Constituição da República.
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